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A luta jurídica como brecha na trincheira: resistência e limites na defesa da educação pública

Por Ricardo Normanha*


A transição digital na educação pública paulista representa a manifestação contemporânea da expropriação dos saberes críticos e do próprio futuro da escola. As plataformas e materiais digitais, a inteligência artificial e a captura, o processamento e a comercialização de dados são introduzidos sob o ideal do progresso inevitável, mas se materializam como a forma atual de um projeto de desmonte do trabalho docente e de padronização do ensino público. Esse processo esvazia o sentido da escola e do próprio trabalho pedagógico como espaço de pensamento crítico e de autonomia. A recente recomendação do Ministério Público de São Paulo (MPSP), por meio de seu Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC), para além de um documento técnico, é também um farol que ilumina o caráter destrutivo dessa transformação e aponta para um caminho de resistência.


A investigação do MPSP desnuda uma realidade que professores e alunos já sentem na pele desde, pelo menos, 2023: a tecnologia, que poderia ser uma ferramenta de apoio, tem sido um mecanismo de controle e coerção. A pesquisa realizada pelo órgão, que ouviu quase 30 mil profissionais da rede, é esclarecedora. A esmagadora maioria, representada por 27.805 respostas, afirma que o uso das plataformas digitais é, na prática, obrigatório. Esse caráter impositivo não vem de uma diretriz pedagógica clara, mas de um sistema perverso de vigilância e punição. Diretores são avaliados e ameaçados de remoção com base nos “índices de uso” das plataformas em suas escolas, criando um clima de assédio que força a adesão.


Esse dado, por si só, revela que, na percepção dos profissionais da educação, a presença e o uso frequente da ferramenta “plataforma digital” em sala de aula tornaram-se a regra — exigência que decorre, presumidamente, das medidas de avaliação de desempenho, sanções e orientações oficiosas adotadas pelo órgão central da Secretaria de Educação, embora não tenha sido editado um regulamento ou diretrizes claras e específicas sobre tal uso (MPSP, 2025).

O resultado é a precarização sistemática do ensino. Os mesmos profissionais relatam que os alunos chegam a passar mais de três horas por semana conectados a essas ferramentas apenas durante o período escolar, enquanto livros didáticos são abandonados e atividades culturais deixam de ser realizadas para cumprir as metas de acesso às plataformas. O tempo de aula — essencial para a interação, o diálogo e a exposição de conteúdo — foi drasticamente reduzido para dar lugar à burocracia digital, ao auxílio técnico aos estudantes e à garantia de que todos permaneçam conectados pelo tempo exigido.


Nesse modelo, o professor deixa de ser um intelectual que formula, cria e realiza a mediação do processo de ensino-aprendizagem e de construção do conhecimento, para se tornar um mero “operador de plataforma”. As aulas são padronizadas, e o material digital pré-produzido — muitas vezes com o auxílio questionável de IAs como o ChatGPT-4 — é imposto de forma inflexível, desrespeitando a autonomia e a liberdade de cátedra garantidas pela Constituição, revelando, portanto, a heteronomia do trabalho docente. Trata-se da desestruturação do trabalho pedagógico em sua forma mais explícita. Conforme aponta Raquel Goulart Barreto (2020):

(...) o professor não é exatamente retirado da cena, mas é relegado a um papel secundário, sendo suas ações tentativamente reduzidas a aspectos como o gerenciamento do tempo necessário à execução de tarefas determinadas, tendo como suporte materiais veiculados nas/pelas TIC (Barreto, 2020, p. 4).

O MPSP demonstra, com precisão, que essa política não é apenas pedagogicamente falha — ela é também ilegal. A imposição de metodologias e materiais representa uma afronta direta à liberdade de cátedra, pilar da educação democrática. As decisões verticais, tomadas nos gabinetes da secretaria, atropelam a gestão democrática do ensino e a autonomia das escolas, transformando os projetos político-pedagógicos em letra morta. Ao ignorar os riscos do uso excessivo de telas, sem oferecer qualquer suporte à saúde mental dos estudantes, a SEDUC descumpre seu dever básico de proteção, consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente.


O documento elaborado pelo Ministério Público de São Paulo aponta que a política de introdução e obrigatoriedade do uso de plataformas e materiais digitais na rede estadual de ensino viola um amplo e robusto arcabouço legal e constitucional. No âmbito da Constituição Federal, a afronta mais grave destacada é ao princípio da liberdade de cátedra, previsto no artigo 206, inciso II. Segundo o MPSP, a imposição de uma metodologia única e de materiais pré-produzidos retira do professor a prerrogativa de ensinar e de escolher seus próprios procedimentos didáticos. Atrelados a este, são violados os princípios do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (artigo 206, inciso III), da valorização dos profissionais da educação (artigo 206, inciso V) e, de forma central, da gestão democrática do ensino público (artigo 206, inciso VI), já que as decisões foram tomadas de modo vertical, sem diálogo ou participação da comunidade escolar. A recomendação também ressalta o descumprimento dos artigos 211 e 227, que tratam do dever de colaboração entre os sistemas de ensino e da proteção integral à saúde e aos direitos de crianças e adolescentes.


Na esfera da legislação federal, a recomendação aponta violações diretas à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), especialmente nos artigos que garantem a autonomia pedagógica e administrativa das escolas e definem os padrões de qualidade do ensino (artigos 4º, 13 e 15). Há também uma clara afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois a política de exposição exagerada e obrigatória às telas não zela pela saúde psíquica dos estudantes (artigos 3º, 4º, 7º, 53 e 70). Em âmbito estadual, o MPSP frisa o desrespeito ao Estatuto do Magistério Paulista, que assegura expressamente ao professor a liberdade de escolha de materiais e procedimentos didáticos (artigo 61, inciso IV).


Ainda são ignoradas normas infralegais do Conselho Nacional de Educação (CNE), como resoluções que orientam a implementação segura e democrática de tecnologias (Resolução CNE/CEB nº 4/2025) e que definem a centralidade do projeto político-pedagógico (Resolução CNE/CEB nº 4/2010), o qual é fragilizado pela padronização imposta. Por fim, o MPSP argumenta que a falta de acesso equitativo a equipamentos para todos os alunos viola o direito à educação em condições de igualdade, conforme estabelecido em tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente.


É por isso que a atuação do Ministério Público é tão importante e emblemática. As recomendações do GEDUC vão direto ao cerne do problema. Ao exigir que o uso das plataformas e do material digital se torne facultativo, o MPSP busca devolver ao professor o controle sobre seu próprio trabalho. Ao pedir a revogação de todos os atos normativos de punição e a anulação das penalidades já aplicadas, o órgão defende a dignidade dos profissionais da educação. E, ao demandar que se assegure a autonomia pedagógica das escolas para que a comunidade decida a melhor forma de usar as tecnologias, reafirma o princípio da gestão democrática, sufocado pela lógica gerencialista e vertical da Secretaria de Educação.


A recomendação do MPSP é um avanço importante para a defesa da educação pública. Ainda que uma pequena vitória em meio ao mar de lama no qual se encontra a escola pública no estado de São Paulo, a ação do Judiciário revela que é possível e necessário questionar o discurso tecnocrático que vende controle digital como eficiência e padronização do ensino como qualidade. No entanto, os desafios permanecem. O documento é um chamado para que toda a comunidade escolar — professores, estudantes, pais e gestores — se aproprie dessa luta. É crucial reconhecer que, embora a intervenção do Ministério Público seja um respiro nas trincheiras da resistência em defesa da escola pública, a atuação do sistema de justiça, em sua totalidade, impõe limites significativos a essa luta, evidenciando seu profundo caráter de classe. Como expressão jurídica da dominação política burguesa, a justiça tende a defender e legitimar os interesses do capital e das classes dominantes. As contradições desse sistema ficam claras quando se observa, por um lado, a suspensão do leilão para a privatização de escolas estaduais em São Paulo — uma ação que freou um projeto de desmonte do patrimônio público — e, por outro lado, o mesmo sistema, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), agiu de forma articulada aos interesses da extrema direita ao derrubar, por unanimidade, a liminar contra o programa de escolas cívico-militares em São Paulo, liberando um modelo que historicamente restringe a autonomia pedagógica, a liberdade de expressão e padroniza o ensino com base em uma lógica de disciplina militar, alinhada à agenda do conservadorismo.


É nesses momentos de aparente contradição que a ação judicial se torna fundamental não apenas pelas suas vitórias pontuais, mas por desnudar os limites do sistema e apontar as brechas nas quais a classe trabalhadora, seus movimentos e organizações podem se apoiar para seguir articulando a luta em defesa de uma educação pública de qualidade.

* Ricardo Normanha é pai, sociólogo, professor e pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC).

Referências


MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Grupo de Atuação Especial de Educação. Recomendação no Inquérito Civil nº 0738.0000455/2024. São Paulo, 2 out. 2025. Disponível em https://www.udemo.org.br/2025/Anexos/2025102-Recomendacao-MPSP-GEDUC.pdf. Acesso em 06 out. 2025.


BARRETO, R. G. A substituição tecnológica na padronização do ensino. In: Anais do XI Seminário Internacional de La Red Estrado. Ciudad de México, 2020. Disponível em http://redeestrado.org/xi_seminario/pdfs/eixo2/211.pdf. Acesso em 20 ago. 2025.

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