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A educação pública na encruzilhada digital: o trabalho docente no alvo do desmonte

Ricardo Normanha*


Introdução


A encruzilhada assume, na linguagem cotidiana, diferentes significados e sentidos:  é o ponto de encontro entre vias que se dirigem a distintos destinos, mas também representa, simbolicamente, um momento decisivo em que escolhas cruciais podem determinar o futuro. Nas tradições religiosas de matriz africana, as encruzilhadas têm um significado profundo: são lugares onde o mundo material e o espiritual se entrelaçam, podendo estar acessíveis ou obstruídos. É nesses espaços que se cria a conexão entre o visível e o invisível, entre o terreno e o divino. Vivemos em uma encruzilhada digital onde caminhos distintos se apresentam e nos levam a lugares opostos. A grande variedade de recursos, aplicativos, plataformas e tecnologias digitais, onde o mundo material se conecta com o mundo digital - este, muitas vezes, obscurecido pelo véu da ideologia do progresso tecnológico -, nos coloca diante de um universo de opções que se apresentam apenas no nível da aparência, já que a realidade concreta mostra que esses caminhos estão previamente definidos por algoritmos, sobre os quais não temos nenhum controle.


A digitalização e a convergência de plataformas tecnológicas estão transformando profundamente vários setores da economia, inclusive a educação. Essas mudanças ampliam, em certa medida, o acesso à informação - ainda que esse acesso não seja sinônimo de democratização -, mas também modificam a forma como o conhecimento é criado, disseminado e assimilado, além de impactar o gerenciamento dos dados coletados por essas plataformas privadas.


No campo da educação, essas inovações afetam a rotina de trabalho dos docentes, as estratégias pedagógicas e até a organização das escolas. A adoção de tecnologias na educação brasileira, frequentemente apresentada como uma forma de diminuir disparidades no ensino e na aprendizagem, não é algo novo. Há pelo menos trinta anos, as instituições de ensino vêm integrando recursos digitais, principalmente na rede particular e em sistemas públicos com maior financiamento, como lousas digitais e programas educacionais, sempre fundamentada na premissa que estabelece uma relação direta e inexorável entre investimento em tecnologia e melhoria de desempenho escolar, ou seja, uma perspectiva salvacionista das tecnologias. Trata-se de um fetichismo da tecnologia que, assim como descrito por Marx n’O Capital (2014) sobre o fetiche da mercadoria, encobre as relações sociais inscritas no processo de produção desses aparatos, bem como os interesses por trás de seu desenvolvimento. 


A introdução das plataformas digitais na Educação Pública


Foram muitos os fatores que impulsionaram o uso de tecnologias na educação nos últimos anos, entre os quais destacam-se a Reforma do Ensino Médio, que flexibilizou e fragmentou os currículos e limitou os espaços para o desenvolvimento de atividades pedagógicas com caráter crítico e reflexivo, e a necessidade do ensino remoto emergencial durante os meses mais críticos pandemia da Covid-19 em 2020. Na rede estadual de São Paulo, a criação do Centro de Mídias da Educação de São Paulo (São Paulo, 2020) tornou-se um marco da expansão do uso de tecnologias digitais que emergiram no contexto da pandemia, mas que permaneceram mesmo após o fim da emergência sanitária. O estado do Paraná, governado por Ratinho Júnior (PSD) e que teve, até 2022, como secretário de educação Renato Feder, também é tido como um exemplo notório desse processo. 


Desde que assumiu o governo de São Paulo em 2023, Tarcísio de Freitas (Republicanos) têm intensificado a digitalização da rede pública de ensino, ampliando políticas iniciadas no governo João Dória (PSDB). Renato Feder assumiu a pasta em São Paulo implementando o mesmo conjunto de medidas que havia colocado em curso o processo no Paraná. As mudanças incluem sistemas e plataformas digitais que vão desde a gestão administrativa (como controle de frequência de alunos e professores) até o uso de tecnologias que incidem diretamente no processo de ensino-aprendizagem. 


Assim, observa-se um processo amplo de digitalização que envolve desde a introdução de plataformas digitais - muitas delas desenvolvidas por empresas privadas em contratos com pouca transparência - quanto a adoção do uso de materiais digitais previamente formatados, que determinam tanto os temas a serem abordados quanto a maneira como devem ser apresentados nas aulas, além de estabelecer a sequência em que esses conteúdos serão trabalhados¹. 


As plataformas digitais exigem o uso integrado de outras ferramentas digitais, criando um “sistema fechado” que privilegia (leia-se: impõem) materiais digitais em detrimento de recursos tradicionais, como os livros do PNLD. Esse modelo opera por métricas de acesso e uso, vinculadas a metas e bonificações.


A reestruturação curricular promovida pela Reforma do Ensino Médio, aliada à imposição de plataformas e materiais digitais padronizados, tem gerado efeitos alarmantes para a docência. Essa suposta modernização educacional não é neutra: fortalece o domínio do capital – materializado nas plataformas privadas – sobre a educação, restringindo a autonomia docente e degradando suas condições laborais.


Como destacam Venco e Seki (2023), o setor de tecnologias educacionais, controlado por startups e gigantes da tecnologia, submete a educação à lógica do mercado, esvaziando seu caráter público e intensificando a precarização do trabalho docente. Nesse cenário, a plataformização da educação converte processos pedagógicos em commodities de dados, inseridos em sistemas que buscam padronizar o ensino e moldar estudantes como consumidores passivos. Paralelamente, transforma professores em meros fiscalizadores de plataformas, distanciando-os de sua essência como mediadores do conhecimento.


As múltiplas formas de precarização do trabalho docente na encruzilhada digital


A Vigilância Digital e a Lógica do "Edunegócio"

A introdução das plataformas e materiais digitais na rede pública também intensifica a vigilância sobre o trabalho docente. Ferramentas como o Super BI transformam a educação em um jogo de números, onde o "sucesso" é medido por métricas de acesso, frequência e desempenho em testes padronizados. Escolas são ranqueadas, professores são pressionados a cumprir metas, e aqueles que resistem enfrentam sanções – desde dificuldades na atribuição de aulas até demissões.


Essa lógica, importada do mundo corporativo, reflete o avanço dos "edunegócios" na educação pública. Grandes empresas de tecnologia e startups educacionais lucram com a venda de plataformas e sistemas de gestão, enquanto o Estado repassa a elas funções que deveriam ser públicas. O resultado é uma educação cada vez mais alinhada aos interesses do mercado, onde o conhecimento é tratado como commodity e os professores, como funcionários descartáveis.


Em 30/05/2025, a morte da professora Silvaneide, vítima de um infarto dentro do Colégio Estadual Cívico Militar Jayme Canet (Curitiba-PR), revelou a crise nas condições de trabalho dos docentes. Os relatos de colegas e do sindicato dos professores da rede estadual do Paraná dão conta de que ela sofria cobranças da Secretaria de Educação pelo uso de plataformas digitais minutos antes do mal súbito.


As Secretarias de Educação do Paraná e de São Paulo priorizam as métricas de acesso a ferramentas como Leia, Redação, Tarefa, simulados do SAEB, entre outros, em detrimento da valorização do processo de ensino-aprendizagem real e significativo. Supervisores, dirigentes de ensino e até "embaixadores de plataforma" (representantes das empresas e da secretaria de educação que atuam como estimuladores do uso das plataformas) pressionam escolas por resultados, ignorando o bem-estar docente. Estabelece-se um sistema de punição e bonificação - com maior ênfase nas punições, diga-se de passagem - que atinge escolas, gestores, professores e estudantes, como vimos no processo de afastamento de diretores escolares da rede estadual paulista no mês passado.


A burocracia é asfixiante: planilhas de frequência, Power BI, notas das provas do sistema de avaliação externo consomem o tempo do trabalho pedagógico. A saúde dos docentes é o preço do ranking educacional – e Silvaneide pode ter sido mais uma vítima desse sistema que mercantiliza a educação, transformando professores em gestores de dados e alunos em números.


Autonomia docente e liberdade de cátedra

A digitalização do ensino impôs uma padronização que redefine radicalmente o trabalho docente, esvaziando-o de seu conteúdo. Professores tornam-se operadores de plataformas que ditam conteúdos, métodos e até o ritmo das aulas. Essa lógica está transformando o ensino em atividade cada vez mais mecânica, fazendo sucumbir a autonomia pedagógica e ignorando as necessidades específicas de cada turma.


O "sistema fechado" consolida uma educação bancária (Freire, 2016), onde estudantes são depositários passivos de informações fragmentadas. As plataformas, sob a justificativa de "flexibilização", impõem um currículo descontextualizado – "palavra oca", nas palavras de Freire. O docente, reduzido a intermediário do maquinário digital, enfrenta uma dupla alienação: do seu saber pedagógico e da relação educativa.


Como antevia Marx nos Grundrisse, a máquina (agora digital) subsume o trabalho humano: professores tornam-se "membros conscientes" - mas cada vez menos pensantes - de um sistema automatizado que dita sua prática. A questão que se impõe é: como resgatar a educação como ato libertador quando as políticas educacionais convertem professores em apêndices de plataformas?


O enfrentamento como tarefa da nossa geração 


Diante desse cenário, é urgente repensar as políticas educacionais e os modelos de gestão que têm orientado a educação pública. A luta por uma educação democrática e de qualidade passa necessariamente pela valorização dos professores, pela garantia de sua autonomia pedagógica e pela rejeição de modelos que subordinam o ensino aos interesses do mercado. 


Na encruzilhada digital em que se encontra a humanidade, apesar dos caminhos obscuros e das falsas promessas oferecidas pelas plataformas, há sim alguns caminhos possíveis a serem escolhidos e traçados. Podemos optar pela manutenção do véu ideológico que reforça o fetiche da tecnologia, que encobre a realidade tal como ela é, e seguir rumo aos níveis mais violentos de controle e exploração da humanidade em nome de um projeto societário voltado para a hipervalorização e acumulação de capital. Mas também podemos escolher o caminho da emancipação e da autonomia que poderá nos conduzir para um outro projeto de sociedade, cujas premissas sejam o bem comum e o bem viver, isto é, respeitando as identidades nacionais, adotando um modelo de produção econômica solidária e responsável, alterando profundamente os padrões de produção e consumo para práticas voltadas para a satisfação das necessidades de todos, reduzindo a jornada de trabalho, distribuindo empregos e vivendo em harmonia com a natureza, sem explorar seus recursos. Para seguirmos essa segunda trilha é necessário conhecermos a fundo os processos que nos levaram a essa encruzilhada, compreendendo as múltiplas determinações do fenômeno tecnológico situado no contexto do capitalismo tardio. 


Para entender mais sobre o assunto:


FENSELAU, Stephanie. Reforma totalitária e tecnicista na Educação de SP. Outras Palavras, 21 jan. 2025. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/reforma-totalitaria-e-tecnicista-na-educacao-de-sp/. Acesso em: 23 jan. 2025.


FREIRE, Paulo. A máquina está a serviço de quem? Revista Bits, maio 1984. Disponível em: https://acervoapi.paulofreire.org/server/api/core/bitstreams/3fd1a650-278e-4469-bed8-0959d3a2e521/content. Acesso em: 10 jan. 2025.


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.


MARX, Karl. Grundrisse - os elementos fundamentais para a crítica da economia política. In: MUSTO, Marcello (org.). O essencial de Marx e Engels - Escritos Econômicos. São Paulo: Boitempo, 2024.


MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.


POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Plataformização. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos, São Leopoldo, v. 22, n. 1, p. 2-10, jan./abr. 2020.


VENCO, Selma; SEKI, Allan Kenji. A docência à deriva: entre a tecnologia do futuro e a precariedade do presente. Debates em Educação, [S. l.], v. 15, n. 37, 2023.


VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.



*Ricardo Normanha é pai, sociólogo, professor e pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC), membro do Comitê São Paulo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Observatório das Tecnologias e Inteligência Artificial na Educação (Edutecia). 


¹ Cabe mencionar que desde 2023, o governo do estado vem desincentivando o uso de livros didáticos, chegando a anunciar que a rede pública estadual não iria aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2024 para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Após decisão judicial estimulada pela ação de parlamentares e com o respaldo do Ministério Público, a secretaria de educação voltou atrás na decisão (Após decisão da Justiça…, 2023). No entanto, apesar da volta atrás, é notável no cotidiano das escolas públicas paulistas, o boicote da secretaria ao uso de livros didáticos, impondo o uso dos materiais baseados no Currículo Paulista, em especial os materiais digitais.



 
 
 

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