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Contra o genocídio: luta popular fora e dentro das prisões

Introdução e tradução por Vinicius Souza Fernandes da Silva*


Emory Douglas, 1971.
Emory Douglas, 1971.

Ao participar ou caminhar por uma manifestação pública dos movimentos negros brasileiros, uma das palavras de ordem mais comuns é aquela contra “o genocídio da juventude negra” ou “genocídio da população negra”. Trata-se da expressão de um protesto que sintetiza o levante contra as formas históricas do Estado brasileiro de buscar a completa eliminação física e simbólica dos negros e negras do país.


É inexorável: a população negra brasileira é vítima de um dos processos de genocídio mais sofisticados da história humana, pois não se resume, tão somente, ao pogrom[1]. Trata-se de um genocídio que se expressa na violência armada, na ausência de consolidação de direitos como saúde, educação, segurança alimentar e nutricional, na falta de acesso aos postos de trabalho e, também, no processo de encarceramento em massa vigente no Brasil.


Atualmente, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), o país conta com 850.377 pessoas privadas de liberdade. O perfil dessas pessoas encarceradas revela as táticas assumidas pelo Estado brasileiro no genocídio: 94,5% são homens, 70% são negros e 3 em cada 5 possuem até 34 anos[2].


Contudo, ao se falar em genocídio, é necessário refletir sobre como o Estado busca formas sofisticadas de violentar a vida do mesmo grupo. Segundo definição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), privação de liberdade é:


“Qualquer forma de detenção, encarceramento, institucionalização ou custódia de uma pessoa, por razões de assistência humanitária, tratamento, tutela ou proteção, ou por delitos e infrações à lei, ordenada por uma autoridade judicial ou administrativa ou qualquer outra autoridade, ou sob seu controle de fato, numa instituição pública ou privada em que não tenha liberdade de locomoção.”[3]


Quando são observados os dados relativos ao perfil dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa, a situação é extremamente semelhante à da privação de liberdade no cárcere adulto: 93,1% são meninos cis e 72,9% são negros. As formas de privação de liberdade previstas para adolescentes que praticam atos infracionais configuram a privação de adolescentes com perfil igual ao da privação de liberdade de pessoas adultas[4].


Esse perfil, no entanto, não se esgota nas formas de privação de liberdade previstas e aplicadas pelo Estado brasileiro. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as polícias brasileiras, em 2024, mataram 6.243 pessoas. Do perfil das pessoas que morreram por intervenção policial, 99,2% eram homens e 82% eram negros. Quando observada a faixa etária entre 18 e 24 anos, as mortes decorrentes de intervenção policial chegam a 9,6 por 100 mil habitantes; entre 25 e 29 anos, são 7,3 por 100 mil habitantes[5].


Analisando ainda os dados totais de mortes violentas intencionais no Brasil, foram 44.127 vidas perdidas em um ano. Das vítimas, 91% eram homens, 79% eram negros e 48,5% eram jovens (até 29 anos)[6]. E, mais uma vez, o mesmo perfil do cárcere, da medida socioeducativa e da letalidade policial aparece no total de mortes violentas intencionais. O mesmo perfil. As mesmas pessoas, o mesmo grupo, sendo encarcerado, assassinado e com seus direitos negados e violentados. Um genocídio extremamente sofisticado[7].


Esses dados apontam, por excelência, para a importância que o pensamento de George Jackson possui para o contexto brasileiro. Jackson, um jovem negro preso aos 19 anos por assalto à mão armada em 1961, passou uma década privado de liberdade (sete anos somente na solitária) e, em 21 de agosto de 1971, foi executado por um carcereiro. No entanto, enquanto esteve privado, fortaleceu sua mente através da leitura dos clássicos do marxismo do século XX, e fundou, junto aos companheiros de luta, a seção prisional do Partido dos Panteras Negras e fez parte da fundação da Black Guerrilla Family, além de publicar duas obras no cárcere: Soledad Brother e Blood in My Eye[8].


Uma vida, apesar de privada de liberdade, dedicada à mais genuína liberdade do seu povo, dentro e fora das prisões[9]. Neste relato de Angela Davis, escrito dois dias após o assassinato de George Jackson, por quem testemunhou sua bravura, dedicação e amor pelo seu povo, é possível observar a dor e a força de uma revolucionária pessoal e politicamente ligada à sua trajetória que, não por acaso, se tornou uma liderança mundial na luta contra o encarceramento em massa de pessoas negras e racializadas. O pensamento de ambos é fundamental para o país que é o terceiro do mundo que mais encarcera e que fez, historicamente, de suas prisões verdadeiros campos de concentração e extermínio.


Uma declaração sobre o nosso camarada caído: George Jackson


Por Angela Yvonne Davis


Publicado no The Black Panther de 23 de agosto de 1971


Uma bala inimiga, mais uma vez, trouxe dor e tristeza aos negros e a todos que se opõem ao racismo e à injustiça, que amam e lutam pela liberdade. No sábado, 21 de agosto, a bala de um atirador de elite de um guarda de San Quentin atingiu George Jackson e aniquilou aquele último resquício de liberdade com o qual ele havia perseverado e resistido tão ferozmente por onze anos.


Embora privado por tanto tempo da liberdade de movimento desfrutada por seus opressores, mesmo ao morrer, George era muito mais livre do que eles. Assim como viveu, morreu resistindo. Marechal de Campo do Partido dos Panteras Negras, George pertence a um tipo muito especial de líderes negros caídos, pois sua luta foi a mais perigosa.


Ele foi reconhecido como um líder do movimento que buscava aprofundar a consciência política dos prisioneiros negros e latinos, que constituem de 30% a 40% da população carcerária da Califórnia. Seu impacto na comunidade externa foi e continua sendo ilimitado. O exemplo de coragem de George diante do espectro da execução sumária, suas percepções aprimoradas no tormento de sete anos de confinamento solitário e sua perseverança diante de adversidades avassaladoras continuarão a ser fonte de inspiração para todos os nossos irmãos e irmãs, dentro e fora dos muros da prisão.


Seu livro, "Soledad Brother", uma crônica comovente do desenvolvimento da mais alta forma de fortaleza revolucionária e resistência, serve como guia para irmãos e irmãs presos em todo o mundo. Igualmente importante, este volume, talvez mais do que qualquer outro, impulsionou e moldou a direção do crescente movimento de apoio fora das prisões. George, por trás de muros aparentemente impenetráveis, colocou a questão da luta nas prisões diretamente na agenda do movimento popular por mudança revolucionária. Seu livro revela a natureza indivisível da luta fora do sistema prisional com a luta dentro dele. Estejam presos ou não, pessoas negras e do terceiro mundo são vítimas e alvos de um mesmo sistema de opressão e exploração. Apenas os métodos utilizados são diferentes.


As condições prevalecentes de exploração racial e de classe invariavelmente resultam no aprisionamento de um número desproporcional de pessoas negras e do terceiro mundo. Nossos irmãos e irmãs geralmente são presos por crimes que não cometeram ou por crimes contra a propriedade — crimes pelos quais jovens brancos recebem indulgência processual, judicial e penal. O próprio George era um jovem de 18 anos quando foi condenado a cumprir pena de um ano à prisão perpétua por um roubo envolvendo US$ 70 — um ano à prisão perpétua, ou onze anos de escravidão e morte súbita. Através da vida de George e da vida de milhares de outros irmãos e irmãs, a absoluta necessidade de estender a luta das pessoas negras e do terceiro mundo ao próprio sistema prisional torna-se inequivocamente clara.


O legado que George e seu falecido irmão, Jon, nos deixaram significa que devemos fortalecer o movimento de massas que, sozinho, é capaz de libertar todos os nossos irmãos e irmãs nas prisões. Sabemos que o caminho para a liberdade sempre foi perseguido pela morte. George sabia que o preço de seu intenso compromisso revolucionário era ter que viver cada dia lutando contra potenciais golpes de morte. Ele havia visto repetidamente a morte ser usada como uma represália padrão para negros que "saíam da linha". Em janeiro de 1970, ele viu seus irmãos prisioneiros, Nolan, Miller e Edwards, serem assassinados de forma cruel e sem mandado judicial no pátio da Prisão de Soledad. Em Soledad Brother, George descreveu de forma vívida como aprendera a frustrar as muitas tentativas anteriores de assassiná-lo.


As dimensões da tarefa que nos aguarda estão mais claras agora, mas o preço da nossa nova visão foi a morte de dois revolucionários brilhantes e corajosos, irmãos de sangue. O Diretor Associado Park nos promete que a nova onda de repressão que foi desencadeada em San Quentin não cessará com a morte de George. Em vez disso, ele inaugurou um novo terrorismo ao convidar abertamente os guardas a fazerem uma demonstração de força e esgotarem completamente sua vingança contra os próprios prisioneiros. Os esforços para reprimir a atividade revolucionária nas prisões não cessarão com um assassinato, diz Park, mas continuarão até que San Quentin seja expurgada de todos os revolucionários e de todo pensamento revolucionário. O jornal do partido de George, o Partido dos Panteras Negras, está proibido dentro dos muros de San Quentin. "Métodos prisionais à moda antiga", ou seja, brutalidade crua, sem seus adereços cosméticos, é oficialmente o novo regime. Os irmãos Ruchell Magee, Fleeta Drumgo e John Clutchette são identificados como alvos; outros no chamado Centro de Ajustamento que tomaram partido estão igualmente em perigo. Nossa responsabilidade se estende a todos esses irmãos contra os quais a guerra foi declarada — o povo deve garantir sua segurança e, em última instância, sua liberdade. As autoridades prisionais buscam apenas encobrir seus próprios crimes assassinos, tentando iniciar novas armações. Esses esforços devem ser combatidos de forma rápida e enérgica.


A família Jackson deve ser homenageada. Sua dor é profunda. Em pouco mais de um ano, dois de seus filhos, George e Jonathan, foram abatidos por balas fascistas. Expresso meu amor à Georgia e Robert Jackson, Penny, Frances e Delora.


Ele escreveu seu epitáfio quando disse:


“Arremesse-me para a próxima existência, a descida ao inferno não vai me deter. Eu irei rastejar de volta para perseguir o rastro deles para sempre. Eles não derrotarão minha vingança, nunca, nunca. Sou parte de um povo justo, que se enfurece lentamente, mas cuja fúria, quando liberada, não conhece limites. Nós nos reuniremos à sua porta em tal número que o estrondo de nossos passos fará a terra tremer.”



*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e coordenador do Conselho Editorial da Clio Operária e associado ao Instituto Hauçá, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e o papel da violência no desenvolvimento histórico do Brasil. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).


[1] Terminologia empregada a perseguição  violenta contra grupos étnicos e religiosos, seja pelo Estado ou por movimentos de massa.

[2] Observatório Nacional dos Direitos Humanos - ObservaDH. Acesso em: https://observadh.mdh.gov.br/.

[3] OEA. CIDH. Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas. 2009. Acesso em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/mandato/basicos/principiosppl.asp.

[4] Levantamento Nacional do SINASE - 2024/ Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania; Universidade de Brasília – Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 2025. Acesso em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/Levantamento_Nacional_SINASE_2024.pdf.

[5] Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1. 2006 - . – São Paulo: FBSP, 2025. Acesso em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/07/anuario-2025.pdf.

[6] Idem.

[7] Neste ponto, ainda cabe reflexão sobre os dados de produção de violação de direitos da população negra, como os dados de acesso à saúde, educação, terra, trabalho, cultura, mobilidade etc. Genocídio, enquanto projeto deliberado, ocorre de diversas formas além da eliminação física pela violência direta: “Genocídio s.m. (neol.) Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegra- ção de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos. Ex.: perseguição hitlerista aos judeus, segregação racial, etc.” (Dicionário Escolar do Professor. Organizado por Francisco da Silveira Bueno. Ministério da Educação e Cultura, Brasília, 1963, p. 580.).

[8] Ver: “Estudar, Jejuar, Treinar, Lutar: As origens do Agosto Negro. Acesso em: https://www.cliooperaria.com/post/estudar-jejuar-treinar-lutar-as-origens-do-agosto-negro.

[9] Ver: “Prisão e revolução de George Jackson”. Acesso em: https://www.cliooperaria.com/post/pris%C3%A3o-e-revolu%C3%A7%C3%A3o-de-george-jackson.


Referências 


NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.


 
 
 

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