A montanha de Silício e o fantasma da classe: quem paga a conta da obsolescência planetária?
- Professor Poiato
- há 2 dias
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Por William Poiato
No coração de Agbogbloshie, em Gana, há, por toda parte, plásticos e metais sendo queimados ao ar livre. Crianças — a maioria descalças — trabalham freneticamente em meio a carcaças de computadores, monitores de TV e smartphones descartados. Elas não estão em um aterro sanitário qualquer; estão na linha de frente de uma nova paisagem geológica: a montanha de lixo eletrônico. Nesse solo tóxico, onde o cádmio e o chumbo contaminam a água e o ar, o dilema do século se condensa: enquanto uma pequena parcela da humanidade desfruta da aceleração tecnológica, outra, invisível e precarizada, é forçada a habitar o seu descarte.
Esse cenário de fricção — a opulência digital de um lado e o lixão químico do outro — não é apenas um problema de logística reversa. Ele é o ponto nevrálgico onde duas grandes correntes das Ciências Humanas colidem. De um lado, a preocupação pragmática e imediata com a gestão ambiental e a economia circular; de outro, a análise implacável da luta de classes, que insiste que o problema não é o lixo, mas a estrutura de exploração que o produz.
A crise ambiental — neste caso, a do “e-lixo” — não é neutra. É intrinsecamente política e social. O Antropoceno, era geológica marcada pelo impacto humano, tem um endereço socioeconômico definido: ele é gestado nas salas de reunião do Primeiro Mundo e aterrado nos quintais do Sul Global. A questão que nos move é: será que podemos resolver a crise da matéria sem antes resolver a crise da exploração?
O mapa cartográfico da logística reversa vs. o rio da luta de classes
A primeira abordagem teórica, focada na gestão do lixo eletrônico, pode ser vista como um mapa cartográfico. É uma perspectiva que busca nomear, medir e estabelecer fronteiras de responsabilidade. Ela mapeia o problema (a geração de 2,2 milhões de toneladas de REE no Brasil em 2020), classifica as categorias do descarte (linha branca, azul, verde, marrom, por exemplo) e desenha o caminho ideal de solução: a logística reversa.
Essa “engenharia do retorno” tem seu mérito. Ancorada na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), propõe a responsabilidade compartilhada e a busca pela economia circular. É uma teoria da ação que se alinha aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS 12, 13 e 15), propondo que a reciclagem — que, no Brasil, mal alcança 3% do total — pode economizar até 70% de energia e 60% de matérias-primas virgens. Nessa visão, o problema é sistêmico, mas solucionável por meio de leis, metas de coleta e maior conscientização. O foco está na ação, na infraestrutura e na parceria entre o setor público, o privado e a sociedade. O lixo é visto como uma falha no sistema de produção, mas também como uma oportunidade de negócio e de sustentabilidade.
Contudo, se a primeira teoria é um mapa a ser seguido, a segunda — a da luta de classes — é o rio subterrâneo que desenha seu próprio curso. Para essa perspectiva, a gênese do lixo não está na falha de gestão, mas na estrutura fundamental de exploração e acumulação que rege o modo de produção. O conceito central é que a sociedade se divide em classes — grandes grupos que se diferenciam pelo lugar que ocupam no sistema produtivo e, crucialmente, pela sua relação com os meios de produção e a apropriação da riqueza, como define Lênin.
O que é o lixo eletrônico senão a materialização da obsolescência programada e do consumo acelerado? Para a ótica crítica, o problema da montanha de silício é o reflexo da exploração estrutural. A existência do lixo é objetiva e independe da consciência do consumidor; é um imperativo da lógica do capital, que necessita da renovação incessante de mercadorias para sobreviver. A tragédia em Gana não é a ausência de logística reversa, mas a reprodução de uma hierarquia global em que o ônus tóxico é transferido para aqueles que já estão à margem — numa negação de sua condição de “classe-para-si”, forçados a serem apenas “classe-em-si” (existência econômica) no lixão.
Conscientização vs. conscientização
É no ponto de convergência que o paradoxo se acentua. Ambas as teorias concordam que a crise ecológica é também uma crise política e que o sistema atual é insustentável. A logística reversa reconhece a responsabilidade compartilhada por meio de agentes (fabricantes, importadores, varejistas, consumidores). A luta de classes aprofunda essa “responsabilidade”, questionando quem define as regras dessa partilha.
A divergência, no entanto, é radical e define a utilidade de cada abordagem. A teoria dos resíduos eletrônicos aposta na conscientização da população e na melhoria da infraestrutura como motor da mudança. Sua solução é a reforma: aperfeiçoar o mercado, torná-lo circular, mais eficiente e menos poluente. O risco dessa visão é o tecnicismo, que trata um sintoma estrutural (o lixo) com soluções gerenciais, desviando o foco da causa raiz — a maximização do lucro acima de qualquer limite ecológico ou social.
Já a teoria da luta de classes exige um passo além: a transição da classe-em-si (a massa de consumidores e trabalhadores que sofre o impacto) para a classe-para-si (a organização política que luta para mudar o sistema produtivo). A preocupação aqui é evitar o “historicismo” de Thompson, que inverte a causalidade, e o “vanguardismo elitista” de Lukács, que atribui a consciência à intelectualidade. A solução não está na reciclagem eficiente, mas na revolução do modo de vida e de produção.
É neste hiato que reside a questão crítica: se a solução para o acúmulo de lixo eletrônico depende de uma responsabilidade compartilhada no sistema capitalista, por que as vozes que mais teorizam sobre a logística e a tecnologia da sustentabilidade são, historicamente, as mesmas que lucram com a obsolescência e a devastação? A pouca fiscalização e transparência — um dos desafios citados na gestão do REE no Brasil — não é uma falha operacional, mas um reflexo do desequilíbrio de poder entre as classes.
Um fim
O colapso ambiental, espelhado na montanha de silício de Agbogbloshie, pode ser a faísca que força essas teorias a se reconciliarem. A lógica da logística reversa nos dá as ferramentas para remediar o imediato — a infraestrutura de coleta, a tecnologia de processamento. Mas a lógica da luta de classes nos fornece a bússola para o futuro, lembrando que o Antropoceno só será superado quando o lucro incessante deixar de ser o motor da história.
E se a resposta para a crise planetária não estiver apenas na ciência ocidental, mas na fusão da engenharia da sustentabilidade com a radicalidade política? E se a luta de classes do século XXI for a luta pela desapropriação dos meios de produção da poluição? O desafio é fazer com que a classe dos descartados — os catadores, os habitantes dos lixões, os explorados pela obsolescência — não apenas recicle os destroços de nossa sociedade, mas se organize para exigir um modo de produção que não os gere mais.
O lixo eletrônico, com seu chumbo e ouro, é o paradoxo de nossa era: quanto mais a tecnologia avança e mais o planeta se afoga em resíduos tóxicos, mais as soluções de desaceleração e a teoria política radical de Lênin e Marx se tornam dolorosamente urgentes.
Referências
FREITAS, Natiele Cunha. Panorama dos resíduos eletrônicos gerados no Brasil e o sistema de logística reversa: uma revisão de literatura.
PEREIRA, Duarte. Das classes à luta de classes. Marxismo e ciências humanas, p. 227-238, 2003.




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