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Lixo estelar, lucro terrestre: a política celeste da ciência no capitalismo

Por William Poiato


Em silêncio absoluto, flutuando a 800 km da superfície da Terra, uma lasca metálica do tamanho de uma ervilha viaja a 28.000 km/h. Invisível a olho nu, ela representa um perigo tão real quanto um míssil: se colidir com um satélite ou uma estação espacial, pode provocar uma reação em cadeia devastadora. A essa altitude, não há oxigênio, mas também não há neutralidade. Cada fragmento de lixo espacial é um vestígio da corrida por lucro, poder e controle tecnológico que marcou — e ainda marca — nossa presença no cosmos.


Aqui, onde o céu deveria ser o limite, o capitalismo encontra sua fronteira final.


A crise acima de nossas cabeças


Por muito tempo, o espaço foi romantizado como a última fronteira da humanidade — um lugar puro, desabitado, onde a ciência floresceria livre dos conflitos da Terra. Mas hoje, a órbita terrestre está saturada de detritos. Satélites mortos, parafusos soltos, pedaços de foguetes, placas solares quebradas — um cemitério metálico flutua em torno do planeta como uma carcaça invisível do progresso.


O que está em jogo não é apenas a segurança das missões espaciais. O lixo orbital escancara um paradoxo: enquanto a ciência e a tecnologia são exaltadas como caminhos para um futuro sustentável, elas reproduzem — e até ampliam — os mesmos mecanismos de desigualdade, exploração e destruição que pretendem superar.


A produção do lixo espacial como mais-valia relativa.


Nos termos do marxismo, a introdução de tecnologia nos processos produtivos visa à produção de mais-valia relativa — ou seja, o aumento dos lucros não pela intensificação direta do trabalho, mas pela reorganização técnica da produção. Isso se aplica perfeitamente à corrida espacial.


A multiplicação de satélites e sistemas de comunicação serve não apenas à ciência, mas principalmente a mercados privados que lucram com vigilância, telecomunicações e transporte de dados. Quanto mais rápida a transmissão, mais lucro. Quanto mais autônoma a operação, menos custos trabalhistas. O espaço não é neutro: ele é o novo palco da exploração capitalista.


E os resíduos gerados por essa intensificação — os fragmentos de foguetes, os satélites desativados — não são apenas “danos colaterais”: são a prova concreta de que o avanço tecnológico não caminha, necessariamente, para o bem comum. O céu virou depósito da lógica do descarte.


Decisões técnicas, consequências políticas


É aqui que se impõe um dos principais mitos desfeitos pelo pensamento crítico CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade): o da neutralidade técnica. A ideia de que engenheiros e cientistas operam fora do campo político ignora o fato de que são decisões humanas, tomadas por instituições econômicas e estatais, que determinam o que vai ou não para o espaço — e com quais implicações.


O satélite destruído pela China em 2007 não foi apenas uma demonstração de força bélica: foi também um ato de poder simbólico sobre quem controla a órbita terrestre. A colisão entre os satélites Iridium e Cosmos, em 2009, por sua vez, escancarou o risco da ausência de governança global efetiva. O que está em jogo não é só a física orbital: é a geopolítica da tecnologia.


O Efeito Kessler como metáfora social


Donald Kessler, ainda em 1978, alertava: se os detritos se multiplicarem demais, suas colisões podem iniciar uma reação em cadeia capaz de inutilizar por séculos determinadas órbitas. Isso já não parece um cenário hipotético — parece um diagnóstico.


Mas e se estendermos essa ideia para além da mecânica celeste? A lógica do Efeito Kessler pode ser vista como uma metáfora do próprio sistema capitalista: um ciclo acelerado de produção e descarte, em que a busca por eficiência gera crises que ameaçam colapsar o próprio sistema. No caso do lixo espacial, a “externalidade” não desaparece — ela apenas muda de altitude.


Tecnologia como promessa ou armadilha?


Há quem veja nas tecnologias de mitigação — como as velas solares, os arpões e os raios tratores — um sinal de esperança. Mas uma crítica mais atenta nos leva a perguntar: essas soluções são pensadas para despoluir o espaço ou para viabilizar ainda mais exploração orbital? A história da ciência sob o capitalismo nos mostra que as “soluções técnicas” frequentemente servem para manter o motor do lucro girando, e não para interrompê-lo.

Essa é a crítica central ao determinismo tecnológico: a ideia de que a tecnologia evolui por si mesma, neutra e inevitável. Na verdade, ela é moldada por interesses de classe, por disputas políticas e pela lógica do capital.


Desafios éticos e educativos


Diante desse panorama, não basta formar engenheiros que saibam calcular órbitas. É preciso formar cidadãos críticos, capazes de compreender que cada inovação científica é também uma escolha moral, social e política. O referencial marxista propõe justamente isso: desnaturalizar o desenvolvimento técnico e entendê-lo como parte de uma rede de relações sociais historicamente determinadas.


Ao invés de ensinar que o problema do lixo espacial será resolvido por um “gênio” ou por um “algoritmo”, talvez devêssemos perguntar: quem lucra com a sujeira no céu? Quem decide o que vai e o que fica fora da Terra? Por que chamamos de progresso algo que nos deixa tão vulneráveis?


O Futuro é agora?


Imaginemos um futuro em que o céu não seja mais visível — encoberto por redes de satélites e detritos refletindo a luz solar. Não por causa das estrelas, mas por causa da ganância. Talvez, ao olharmos para cima, devêssemos ver não apenas um campo de possibilidades tecnológicas, mas um espelho ampliado de nossas contradições aqui embaixo.


A pergunta que fica é: o que a maneira como tratamos o espaço revela sobre a maneira como tratamos a Terra — e a nós mesmos? Talvez a verdadeira fronteira da humanidade não seja espacial, mas política. E talvez o Antropoceno seja menos uma era geológica do que um espelho crítico — mostrando, em órbita, os limites de um sistema que transforma até o céu em mercadoria.


Referências:


Carvalho, J. P. dos S., Lima, J. dos S. ., & Gonçalves , C. M. . (2021). POLUIÇÃO DO AMBIENTE ESPACIAL: O PROBLEMA DO LIXO NO ESPAÇO. Scientia: Revista Científica Multidisciplinar, 6(2), 61–80. Recuperado de https://www.revistas.uneb.br/index.php/scientia/article/view/10218


LIMA JUNIOR, Paulo et al. Marx como referencial para análise de relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Ciência & Educação (Bauru), v. 20, p. 175-194, 2014.


 
 
 
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