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Por que a esquerda branca não quer uma ministra negra no STF?

Por Vinicius Souza Fernandes da Silva*


Um dos momentos mais perturbadores da vida de uma pessoa é quando ela se descobre racializada, quando passa a exercer uma consciência mais profunda de si, ultrapassando os limites da alienação colonial descrita por Frantz Fanon em seu clássico Pele Negra, Máscaras Brancas[1]. Nesse momento, o sujeito se percebe no ciclo infernal[2] do racismo: tudo em sua vida, para o bem ou para o mal, ocorrerá apesar de ser uma pessoa racializada — ou por ser uma pessoa racializada. Se, para o negro, esse processo repousa na superação da alienação de si, para os brancos provavelmente ocorre quando percebem que há quem não os aceite como universais. O momento mais perturbador da vida de uma pessoa branca é descobrir-se não amada por todos, perceber que em algum lugar há quem questione sua beleza, sua razão, sua imponência existencial.


O momento em que o negro supera a negrura[3], busca matar o seu senhor e impor o reconhecimento de sua humanidade, é o mesmo momento no qual os brancos entram em seu lamento maior: descobrem que a brancura[4] não é a verdade sobre a vida aceita por todas as pessoas, e que o reflexo que viam de si mesmos — grandioso, dominador e universal — passa a ser defendido pelas formas mais diversas e sofisticadas de violência.


Uma expressão concreta desse processo, de defesa absoluta da hegemonia racial — ou seja, política, econômica e cultural — sobre os racializados, é a reação contra campanhas públicas como a que hoje reivindica uma ministra negra no STF. No país mais negro do mundo fora da África, com mais de 50% de sua população sendo negra[5], isso seria um fato inédito.


Há ainda uma expressão mais específica: quando pessoas brancas ditas de esquerda, supostamente comprometidas com a transformação total da sociedade e com a superação das desigualdades, escolhem combater essa reivindicação com os argumentos mais jocosos, revelando o que não conseguem esconder quando postas à prova — ou, para não expor ao sol a verdadeira intenção de sua causa racial, optam pelo silêncio e pela desimportância.


É a operação exata do que Charles W. Mills nomeou como Contrato Racial[6]: esse pacto silencioso que fundamenta a sociedade liberal contemporânea, que jamais estendeu seus valores universais das revoluções burguesas aos condenados da terra[7] — as populações negras, indígenas, asiáticas e dos chamados povos do Oriente. As instituições baseadas na lógica de que nem todos são detentores dos direitos e valores universais de reconhecimento, e as relações sociais racializadas baseadas na manutenção das formas raciais de poder, operam um pacto silencioso que busca refazer constantemente a hegemonia branca sobre o mundo.


Existem aqueles que argumentam que o Governo Federal deve indicar alguém de confiança do partido no poder, alguém em quem o Presidente da República possa confiar e que tenha qualidade técnica para a função. Os que desafiam essa lógica acreditam que nomes de mulheres negras, indicadas por diversas organizações dos movimentos negros, não cumpririam esse papel — mas sim figuras como Jorge Messias, apresentado como o evangélico neopentecostal do governo, ou até mesmo Rodrigo Pacheco, ex-presidente do Senado e um dos principais operadores políticos das oligarquias nacionais.


Alguns preferem alegar que o que chamam de questão racial não deveria ser o centro da indicação, já que Lula, em mandato anterior, indicou Joaquim Barbosa — um dos únicos três homens negros que exerceram a função de ministro em 134 anos de existência da corte — e que ele teria exercido um papel de lawfare contra o PT nos julgamentos do Mensalão. Esquecem, porém, que o ministro foi fundamental para o reconhecimento da constitucionalidade da Lei de Cotas, uma das reformas mais profundas das gestões petistas.


É interessante notar que, ao ouvir a oralidade e a memória dos mais velhos dos movimentos negros, descobre-se que o partido do governo produziu, através de suas correntes internas, materiais contrários às ações afirmativas, alegando serem políticas liberais — e que a então presidenta Dilma Rousseff segurou a sanção da lei, tendo de ser pressionada pela mobilização dos movimentos negros em frente ao Palácio do Planalto.


Lembram rapidamente do que entendem como contradição central de um homem negro para justificar a decisão de nunca mais indicar uma pessoa negra, pois, para eles, todos os negros respondem pelas ações de qualquer pessoa negra no mundo. Mas os brancos, não. Dessa forma, ignoram as bravatas reacionárias da brancura que domina a Suprema Corte. Esquecem que Zanin, historicamente advogado de empresas, votou contra a descriminalização do porte de maconha; que Dias Toffoli se rendeu aos militares na votação do Habeas Corpus de Lula, quando ele era perseguido pela Lava Jato e pela investigação ilegal de Moro e Dallagnol; que Moraes e Barroso votaram contra direitos trabalhistas; que Gilmar Mendes criou uma câmara para negociar os direitos territoriais dos povos indígenas; e que Rosa Weber legitimou publicamente aparelhos de propaganda do fascismo como a Jovem Pan.


São os erros dos negros que são lembrados e estendidos a todos — não os dos brancos, pois assim a brancura continua. O Mensalão perseguirá todos os potenciais ministros negros e negras, mas os erros e contribuições para a destruição do país praticados pelos ministros brancos jamais estarão nas costas de Jorge Messias ou Rodrigo Pacheco.


É possível ainda encontrar quem argumente que a indicação deve se pautar pela qualidade técnica, não por raça ou cor. É surpreendente ver defenderem, descaradamente, que não existe nenhuma mulher negra com qualidade técnica para ocupar o lugar de Messias ou Pacheco. Mas esse tipo de defesa é comum: apontam que o que importa são supostas qualidades técnicas e políticas, perpetuando a manutenção dos espaços de poder — sempre com dirigentes brancos — nas juventudes, nos partidos, nos movimentos e nas organizações sociais. É o caso da conhecida crítica de Nego Bispo ao MST[8].


Esse tipo de defesa e manutenção do Contrato Racial faz com que pessoas brancas sigam controlando os espaços de construção e deliberação. Dissidências históricas em organizações e partidos de esquerda se dão em decorrência dessa postura. Um exemplo direto da manutenção proposital de pessoas brancas no poder é a composição racial da Esplanada dos Ministérios: dos 37 ministros, 11 se declaram pretos ou pardos[9]. Entre eles, figuras conhecidas pelo genocídio da juventude negra, como Rui Costa, que impressionantemente se autodeclarou pardo — assim como Jucelino Filho (hoje fora da Esplanada), que havia se declarado branco anteriormente, e Wellington Dias, criticado pelo movimento de redução de danos por abrir comunidades terapêuticas no Piauí, também autodeclarado pardo.


E assim, entre autodeclarações, argumentos de responsabilização racial, desculpas de qualidade técnica ou simplesmente o silêncio conveniente, vários brancos de esquerda seguem trabalhando pela manutenção da hegemonia racial, atuando sempre em causa própria. Para eles, não é aceitável uma ministra negra no STF, porque, por mais que defendam Bolsa Família, gás para todos ou cozinhas solidárias para pessoas negras e pobres, vê-las enquanto dirigentes da sociedade é um limite que não aceitam ultrapassar.

[1] FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas: tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

[2] “A vergonha. A vergonha e o desprezo de si. A náusea. Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor... Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal.” (FANON, 2008, p. 109)

[3] Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon define a negrura enquanto a experiência material e subjetiva do negro em uma sociedade de base colonial, sendo a ele imposto o lugar de ser antagônico a universalidade da brancura, ou seja, se racialmente tudo aquilo de bom e bonito na sociedade é branco, tudo ao contrário será negro e, logo, o negro buscará ser branco para ser humano e neste caminho encontrará a constante negação da sua humanidade.

[4] É a brancura aparece enquanto a hegemonia material e simbólica na sociedade da cultura e presença branca. Segundo Fanon: “Nas profundezas do inconsciente europeu elaborou-se um emblema excessivamente negro, onde estão adormecidas as pulsões mais imorais, os desejos menos confessáveis. E como todo homem se eleva em direção à brancura e à luz, o europeu quis rejeitar este não-civilizado que tentava se defender. Quando a civilização europeia entrou em contacto com o mundo negro, com esses povos selvagens, todo o mundo concordou: esses pretos eram o princípio do mal.” (FANON, 2008, p. 168)

[5] “Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra”. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/

[6] MILLS, Charles W. O contrato racial. Tradução de Suzana Guerra. São Paulo: Boitempo, 2022.

[7] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

[8] SANTOS, Antônio Bispo dos; KOHAN, Walter Omar; PEREIRA JUNIOR, Geraldo. Entrevista com Nego Bispo: “Eu lhe ensinei tudo que eu sabia, mas eu não sabia tudo que eu queria lhe ensinar”. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 48, n. 1, e025053, 2025. Disponívl em: <https://www.scielo.br/j/trans/a/tmg39NCmG3CytMcNDr5nWML/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em 29 de out. 2025.

[9] “1/3 dos ministros de Lula se diz negro; nº recorde veio de cobrança” ... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/12/13-dos-ministros-de-lula-se-diz-negro-apesar-de-recorde.htm?cmpid=copiaecola


*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais e pós-graduando em Direitos de Crianças e Adolescentes, Interculturalidades e Mudanças Climáticas pelo CEAM/UnB. Editor da Clio Operária e associado ao Instituto Hauçá, estuda e escreve sobre os temas da epistemologia política, o papel da violência no desenvolvimento histórico do Brasil e povos e comunidades tradicionais de terreiro e de matriz africana. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).


 
 
 

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