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A “contra” formação do Brasil: quando os negros se rebelam

Por Marcos Morcego*


Este texto surge a partir de uma matéria sobre os temas da sociologia brasileira, que buscou refletir sobre a formação do Brasil. No começo colocando autores tidos como “clássicos”, pontuando bases do pensamento para estabelecer a crítica, a partir de uma leitura que vincula a luta dos subalternos aos processos de transformação social, tensionando a “luta de classes” desde o começo da invasão colonial.


Dos clássicos, passando por nomes com Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Jacob Gorender suas extensas pesquisas e lutas, já pontuando que é impossível esgotar o assunto em poucas linhas, portanto, e seguindo a tradição desses autores críticos, deixar aberto tais temas não é uma falta de comprometimento, mas, muito antes, abrir as possibilidades para a pesquisa em terrenos que, embora já explorados, precisam de muito mais profundidade.


Gilberto Freyre


O primeiro exemplo é Gilberto Freyre, que possui grande prestígio acadêmico, com textos considerados incontornáveis inclusive por quem o crítica, talvez o primeiro cientista social brasileira à colocar a importância da cultura de raíz africana no Brasil, porém isto “veio conjugado a duas teses fundamentais: a do caráter patriarcal excepcionalmente benigno da escravidão luso-brasileiro e a da vigência da democracia racial em nossa sociedade” (GORENDER, 2016, p. 30). Esses elementos são claramente refletidos quando o próprio diz que “a casa-grande [lugar dos donos de escravos, de terras e dos meios de produção], completada pela senzala [lugar dos escravos], representou, entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o antagonismo entre sobrado e o mocambo veio quebrar ou perturbar” (FREYRE, 2013, p. 446). Embora, venha ainda a elogiar os mocambos - que eram moradias precárias.


Dessa forma, embora pontue a integração da cultura negra e do próprio negro, a sua posição enquanto objeto de um sistema de dominação, sendo escravo - enquanto máquina, animal e objeto -, seria sua posição ativa, e a transição para o capitalismo sendo um rompimento com a sociedade “pacífica” que havia sido criada. E o que iremos pautar aqui é que, na verdade, o processo que aconteceu foi de uma “mudança sem transformação”, como foi pontuado por Clóvis Moura e Florestan Fernandes. Ou seja, essa sociedade de antagonismo perturbado foi o fundamento na formação da sociedade brasileira - não só entre brancos e negros, mas também com a população indígena -, e com um grande destaque para os níveis da opressão racial no colonialismo, e para as diversas formas de resistência. Guerreiro Ramos (2023) é afirmativo quando diz que “Carecendo de uma compreensão globalista e dinâmica do processo histórico-social [...]. Para ele, o negro é um tema curioso com material etnográfico. Não é sujeito: é objeto” (p. 269).


A ideia freyreana, portanto, ainda que coloque a questão cultural negra, os coloca como objetos observadores e satisfeitos com a condição de pessoas dominadas. “Tudo isso é dito de tal forma que ficamos com a impressão de que não houve contradições estruturais durante o regime escravista” (MOURA, 2023b, p. 161). Enquanto defendia, nas suas ideias sobre o que seria essa revolução portuguesa social e cultural, envolvendo “jesuítas, mosquetes e sífilis”, sua defesa do lusotropicalismo, do português como ser pacífico no processo colonial, era enfrentada pela realidade e a luta contra Salazar, enquanto o próprio provoca massacres nos países colonizados por Portugal no continente africano.


São ainda mais graves as críticas de Abdias Nascimento (2016), quando remonta a teoria colonial de Freyre, que busca colocar o negro como, conforme seu próprio neologismo, “cocolonizador”, responsabilizando os povos negros “pela sistemática erradicação das populações indígenas”. Dentro de sua defesa paternalista ou neocolonial, não importam quais palavras ou imitações da realidade Gilberto Freyre tenha feito, “a análise servia, principalmente, para reforçar o ideal do branqueamento” (SKIDMORE).


Mas no próprio canto crítico, e propriamente dito marxismo, existe o mesmo erro, protagonizado na figura de Caio Prado - para uma crítica que pega os trechos do autor, Hugo Lousada (2025) diz que “os adjetivos pejorativos usados em relação aos povos originários [...] não são um acaso: para o autor eles são, de fato, um impeditivo, um ‘óbice ao progresso’”. Não parando por aí, o autor analisa o que seria a “extinção” ou a “assimilação” da raça, dizendo “a população indígena, em contacto com os brancos, vai sendo progressivamente eliminada [...]: a inferior é dominada e desaparece” (PRADO, 1979, pp. 105-106). Clóvis Moura também define que ele se atrapalha quando fala sobre o liberalismo da Lei Eusébio de Queirós”, por não pontuar sobre o “liberalismo escravista” (MOURA, 2020a), afinal, Clóvis e Gorender definem o sistema enquanto “escravista colonial”, e Caio Prado se vincula à certa tradição que remete ao feudalismo.


Lélia Gonzalez já em seu texto Racismo e Sexismo na sociedade brasileira apontava que, em seu livro, Caio Prado Júnior defendia a questão sexual, especialmente da mulher negra, e diz “depois que a gente lê um barato assim, nem dá vontade de dizer nada porque é um prato feito” (GONZALEZ, 2022, p. 208). Apresentando uma explicação concisa quando diz que:

Desde a casa-grande e do sobrado, até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente. Da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos [chamados de habitacionais] dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço. (GONZALEZ, 2022, p. 22).


Assim conseguimos colocar a situação em outra realidade, ou melhor, realidades. O Brasil não se forma, então, de uma forma única, mas de partes em disputa que se conectam pela concretização do próprio Estado e de uma contínua violência, frequentemente enfrentada pelas diversas tentativas de superação da condição de dominação, as Rebeliões da Senzala. Ou seja, falamos de “luta de classes no sistema escravista” (MOURA, 2020b, p. 30).


Essa inversão permite entender os grupos subalternos da época, especialmente indígenas e negros, como seres ativos e de realização da realidade nacional, mas não necessariamente no sentido de integração, apesar de boa parte do nosso vocabulário trazer essa parte, além de diversas expressões culturais. Mas também da contra-realização dessa realidade nacional, sendo elementos que afirmam outros futuros possíveis a partir da negação da situação concreta, mas também da criação de novas situações, reivindicando e lutando por saídas ao sistema, inclusive com relações sociais antigas e novas se integrando.


Se por um lado, com o colonialismo vinha a tentativa de eliminar uma parte, escravizar os outros e, com a presença indígena e o tráfico de pessoas do continente africano, a assimilação, como forma de, também, uma morte cultural. Por outro, “assim como a escravidão foi uma instituição nacional, a luta dos escravos contra ela também se espalhou por todo o nosso território”. 


As tentativas de subversão da ordem muitas vezes são vistas como episódicas, ou ainda como fragmentos da história, que impossibilitam a construção de uma tradição antagônica contínua e, quando ressaltadas, caso a experiência tenha sido arruinada é tida como se fosse apenas passado. E aí aparece o Quilombo como fundamental, já que esse universo da quilombagem manifesta a sua concretude histórica através dos diversos espaços dos quilombos que se sucederam durante o périplo da sua existência. E é nesses espaços constantemente e sucessivamente produzidos e reproduzidos que a quilombagem manifesta a sua permanência histórica e a sua função social (MOURA, 2022, p. 37).


Não eram simplesmente lugares de refúgio, mas tentativas de construir sociedades alternativas. Para Clóvis Moura, falamos da “unidade básica de resistência do escravo”, mas acredito em uma congregação das mais diversas formas de luta. E essa sendo uma das mais incríveis forma de “reação organizada de combate de uma forma de trabalho contra a qual se voltava o próprio sujeito que a sustentava” (2020b, p. 159). Esse processo de luta é o enfrentamento necessário pela liberdade e emancipação em Fanon, e concordando, é visto em Clóvis Moura como quando se torna sujeito histórico coletivo. Os quilombos - que seria habitações de negros fugitivos - não eram desintegradas da sociedade, criando relações com “fugitivos do serviço militar, indígenas, mulatos e negros marginalizados” e por vezes com “bandoleiros e guerrilheiros” (MOURA, 2022, p. 31), criando fricções e frestas para construir uma relação com as pessoas que ainda estavam sob o jugo do sistema.


A partir da expansão, vários quilombos começam a ser mais fixos, buscando lugares com muitas possibilidades de alimentação e de defesa contra os avanços coloniais. Palmares, por exemplo, não era um único lugar, mas “era uma confederação de quilombos”. Com uma economia policultora, podiam trabalhar com os plantios de milho, feijão, mandioca, além de troca entre vizinhos e entre os quilombos, mas também possuindo animais, caça e pesca dentro de suas formas de alimentar, além da produção de objetos, mas de um modo geral, os estudiosos apontam como uma “economia de abundância”, trabalhando com cooperatividade e solidariedade, negando, além dos termos da posse da terra a propriedade colonial, mas também com “caráter nitidamente antieconômico do sistema escravista”, o que pode ser resumido em que “vivendo num regime comunitário, organizado à base da agricultura e da criação de animais de subsistência, Palmares era um reduto em franco florescimento” (MOURA, 2022).


Também é a partir daí que apontam Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, que existia “democracia racial”. Frente ao mito expressado nas palavras de Gilberto Freyre, de ser uma realidade da sociedade brasileira, essas pessoas em suas lutas e escritos demonstram que, na verdade, o aspecto racial colonialista e a violência, que tinha como base o próprio Estado brasileiro, era a permanência, e a democracia racial era apenas um mito construído para fortalecer a dominação ideológica.


Se nem democracia poderia ser falado em completude, Abdias Nascimento mesmo já havia sido preso na Ditadura varguista do Estado Novo, e esses sujeitos iriam passar pela Ditadura Empresarial Cívico-Militar. O golpe de 64 buscava promover o que é chamado de “pacificação”, e, segundo Lélia, “a gente sabe o que significa esse termo, sobretudo na história de povos como o nosso: o silenciamento, a ferro e a fogo, dos setores populares e de sua repressão política” (GONZALEZ; HASENBALG, 2022, p. 17). A pacificação se torna, ou melhor, já era, repressão. Marginalizados e subalternizados pela dinâmica escravista, jogados no lixo da sociedade capitalista, pacificação é sobre a sujeira da sociedade, em espaços histórica e socialmente excluídos.


Se por um lado há esses momentos de repressão, também temos a criação da Frente Negra Brasileira (anos 30), da Frente socialista Brasileira (anos 40), também temos a criação do Teatro Experimental do Negro (anos 40), também há um aumento nas pesquisas sobre a integração (ou não) do negro, com Virgínia Leone Bicudo, Florestan Fernandes, Donald Pierson e mais. O “Comitê Democrático Afro-Brasileiro”, em 1945 é um ótimo exemplo, pois apresenta seu caráter de reconstrução nacional, colocava como suas pautas “a convocação de uma Assembleia Constituinte”; “reconhecimento do direito de greve”; “ensino gratuito” (MOURA, 2023b), ou seja, projetos políticos que enfrentavam à ordem, a partir dessa concepção da participação de pessoas negras na realidade nacional.


Nos anos 60 e 70 aconteciam diversas lutas por independência no continente africano, havia recentemente acontecido as lutas de Fanon e Malcolm X, assim como a efervescência negra nos Estados Unidos, na América Central; mesmo aqui acontecendo uma ditadura, várias pessoas desses movimentos irão viajar e passar por uma conexão com os mundos afro-asiáticos, também fortalecendo práticas políticas aqui no Brasil. Então se forma o Movimento Negro Unificado, que “não contou com a participação de nenhuma grande personalidade, mas resultou do esforço de uma negrada anônima, dessas novas lideranças forjadas sob o regime ditatorial” (GONZALEZ; HASENBALG, 2022, p. 53).


Portanto, é impossível falar sobre o marco temporal, ou o fim da propriedade de terra latifundiária, sem falar de como as lutas e enfrentamentos indígenas de hoje carregam o ancestral, material, psicológica, social e espiritualmente. Fazendo igual Clóvis Moura nos ensinou ao esfregar a história à contra-pelo, demonstrar como canudos e o MST são conectados, ou, ainda, apresentar como a luta quilombola de antes, que concretizou a democracia racial, ainda hoje pode representar o futuro.


Então, falar de democracia racial na época, não era simplesmente um jargão, mas conseguiu constituir um duplo caráter de explosão dessas massas: 

  1. A negação da ditadura - que tinha como contraponto direto a democracia -, mas essa suposta democracia não era algo geral, nem como cidadãos certos grupos eram tratados;

  2. A principal referência sobre a democracia racial era a República Palmarina, ou seja, econômica, política, cultural, ideológica, social e espiritualmente diferente. 


Como diz Andrelino Campos:

Historicamente, as relações entre os mais pobres e o Estado sempre se deram no limite do conflito, favorecendo as elites, que, em última instância, dominam o aparelho de repressão. Assim, assistiu-se à transmutação do espaço quilombola em favela após a Abolição. Porém, as favelas - fenômeno exclusivamente urbano - passaram a ser combatidas pela necessidade de o Estado regulamentar o uso do solo da cidade, associada aos interesses da classe dominante [...]
Indagamos se haverá tempo para a correção de rumos, antes da grande “eclosão social”.
O Estado [...] não teve, em nenhum momento, a sensibilidade de corrigir as injustiças sociais provocadas no passado e que deverão continuar ocorrendo no futuro. (2007, pp. 161-163)

A saída, desses dilemas, ainda não aconteceu. Hoje enfrentamos tanto um debate sobre embranquecimento, remontando as ideologias conservadoras que fundamentaram a transição ideológica do colonialismo para o capitalismo; mas também dentro de quais são os passos necessários para a emancipação negra, ou até para uma verdadeira democracia racial, que consiste em questionar as bases de um capitalismo que é também significado de branco.


Por isso,


A revolução dentro da ordem é insuficiente para eliminar as iniquidades econômicas, educacionais, culturais, políticas etc., que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo, a sua luta por liberdade e igualdade possui uma significação socialista [...].
Não basta apontar para o caráter emancipador do socialismo proletário. É preciso que o socialismo proletário venha embebido de um impulso radical profundo que ultrapasse a libertação coletiva da classe trabalhadora e destrua, até o fim e até o fundo, a opressão racial. (FERNANDES, 2017, p. 42).

*Marcos Morcego é comunicador político na Caverna do Morcego, articulista na Clio Operária (e um dos apresentadores da Barricada Vermelha, nosso programa jornalístico) e trabalhador da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Militante, pesquisador sobre identidade e território e estudante de ciências sociais.


Bibliografia:


CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.


FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.


GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.


GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Expressão Popular, 2016.


LOUSADA, Hugo. Formação do Brasil Contemporâneo: Resenha Historiográfica. Clio Operária. Disponível em: <https://www.cliooperaria.com/post/forma%C3%A7%C3%A3o-do-brasil-contempor%C3%A2neo-resenha-historiogr%C3%A1fica>. Acesso em: 26/06/2025 às 10:27.


MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020a.


MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020b.


MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Editora Dandara, 2022.


MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Editora Dandara, 2023a.


MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Dandara, 2023b.


NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.


PRADO, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979.


RAMOS, Guerreiro. Negro Sou. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.


SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco.


 
 
 

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