Coração das Trevas: entre a química verde e o Imperialismo do Século XXI
- Professor Poiato
- 20 de out.
- 5 min de leitura
Por William Poiato*
Coração das Trevas é um romance de Joseph Conrad que, desde 1899, expõe as entranhas do colonialismo. Nele, acompanhamos Charles Marlow, marinheiro britânico, cortando as águas turvas do rio Congo a bordo de um barco a vapor, a serviço de uma companhia belga sedenta por marfim. Sua missão: resgatar Kurtz, um agente envolto em mistério, cuja genialidade sucumbiu à febre da ganância. O que Marlow encontra é um pesadelo de exploração — europeus que, sob o véu da “civilização”, saqueiam a terra e escravizam seus povos, enquanto Kurtz, consumido pela loucura, rege um reino de brutalidade, murmurando: “Extermine todos os brutos!”. Rios envenenados por resíduos, florestas reduzidas a cinzas em nome do lucro rápido, comunidades dizimadas pela voracidade imperial: a selva não é o coração da escuridão — é o espelho da alma humana.
Inspirado no Congo Belga de Leopoldo II, onde milhões morreram para extrair borracha e marfim, o romance reflete, com assustadora atualidade, o mundo de hoje. Pense no Congo contemporâneo, onde a mineração de coltan — mineral essencial para celulares — alimenta guerras, explora crianças e contamina rios com metais pesados. É o paradoxo vivo: tecnologia travestida de progresso, sustentada por devastação. Num planeta onde inundações engolem Dhaka e secas assolam a Califórnia, esse embate não é casual — é o cerne de uma disputa que nos pergunta: salvaremos a Terra com ciência ou apenas desmontando as engrenagens que a destroem?
A promessa da química verde
Em resposta, surge, no fim do século XX, uma visão que aposta na reinvenção da química industrial — processos que não sangrem a Terra. Evitar resíduos antes que se formem. Fazer cada átomo render. Criar produtos que se dissolvam sem veneno. Essa ideia, cristalizada em diretrizes de sustentabilidade, substitui solventes tóxicos por catalisadores que “dançam” nas reações sem se consumir. É a química verde.
Um caso brilha: a síntese de um remédio para o coração, antes dependente de compostos voláteis e poluentes, agora alcança 66% de eficiência — ante os 37% anteriores —, reduzindo energia, tempo e emissões. O saldo? Custos menores, impacto ambiental reduzido e um lampejo de esperança: lucro e preservação podem, sim, coexistir.
Mas será que inovações técnicas bastam, se o sistema que as produz é o mesmo que alimenta a devastação?
A resposta pode vir de outra perspectiva — mais profunda, mais incômoda — que resgata vozes do século XIX para destrinchar as entranhas do capitalismo. Aqui, a crise ecológica não é um quebra-cabeça técnico, mas o fruto podre do imperialismo: um sistema que funde dinheiro, poder global e violência estrutural. Pense em pensadores que desmascararam os “meios de produção espiritual” — mídia, escolas, igrejas — instituições que naturalizam a exploração como destino inevitável.
O neoliberalismo, dizem esses críticos, é a face contemporânea desse monstro: uma jogada fria da elite global, centrada nos EUA, para superar a crise dos anos 1970. Privatizações, trabalho precário e o mito do “empreendedor de si” sugam riqueza do Sul Global, enquanto ideias como a meritocracia fragmentam a luta coletiva. A devastação ambiental — da Amazônia aos rios africanos — vira pretexto para “soluções verdes” que, na prática, apertam ainda mais o laço da desigualdade. Entre 1970 e 2000, os EUA extraíram do mundo, em dólares, quase tanto quanto lucraram em casa. Não é coincidência: é o motor de um sistema que governa com tanques e discursos.
Duas visões em choque
Essas perspectivas cruzam-se em contrastes vivos. A primeira trata a natureza como um enigma a ser mapeado — cada reação química, uma peça precisa de um mecanismo otimizado. A segunda a vê como uma rede viva, entrelaçada com lutas, cicatrizes coloniais e relações de poder.
Na visão técnica, eficiência energética e monitoramento em tempo real surgem como aliados sutis, capazes de cortar riscos e venenos. A indústria farmacêutica, por exemplo, abandona etapas inúteis, adota solventes seguros e fontes renováveis, reduzindo custos — e ecoando em acordos globais por tecnologias limpas.
Mas a tensão explode quando se pergunta: pode a ciência brilhar dentro de um sistema que a segunda visão condena?
O imperialismo neoliberal, com sua lógica de monopólios, engole inovações verdes e as transforma em mercadorias para poucos. Uma fábrica “sustentável” na Indonésia pode cortar resíduos — mas seus lucros voam para acionistas do Norte Global, aprofundando a pobreza local. Uma voz sonha com harmonia científica; a outra grita: os arquitetos da crise — colonizadores de ontem, CEOs de hoje — não podem posar de salvadores.
Conflitos reais, escolhas urgentes
Essa briga não é só teoria — ela pulsa em conflitos concretos. Protestos contra hidrelétricas na América Latina, onde projetos “verdes” expulsam povos indígenas. Cúpulas climáticas, onde promessas do Norte escondem dívidas históricas. Tudo isso revela o abismo entre discurso e prática.
A visão técnica, por vezes, idealiza a ciência, ignorando como o neoliberalismo arma “meios espirituais” — think tanks, propagandas do sucesso individual — para calar resistências. Já a visão estrutural, cravada na luta de classes, pode menosprezar o poder transformador de práticas concretas — como produtos que se degradam sem poluir rios vulneráveis. Ainda assim, sua força está em desmascarar o neoliberalismo como uma ofensiva calculada, que molda mentes para a autoexploração — exigindo de nós um olhar que nunca perca o fio da materialidade.
No horizonte: fusão ou colapso?
No horizonte planetário, esse embate nos lança perguntas que ferem como lâminas: e se o Antropoceno não for salvo nem pela ciência ocidental, nem pela denúncia solitária do imperialismo — mas por uma fusão que descolonize ambos?
Imagine uma química verde entrelaçada com saberes do Sul Global, onde a eficiência atômica se curva aos ritmos da natureza — e desafia o jugo neoliberal. Ou, num giro sombrio: e se for justamente o colapso — com suas ondas de calor, secas extremas e êxodos forçados — a força que fundirá cientistas e rebeldes contra os monopólios?
O risco, porém, paira como sombra: sem arrancar as raízes da dominação, as inovações verdes serão apenas véus — cobrindo um sistema que devora o planeta enquanto sussurra salvação.
O eco de Kurtz
Em Coração das Trevas, Marlow retorna do Congo assombrado, carregando a verdade cruel de Kurtz: a escuridão não está na selva — está na ganância que nos move. Hoje, enquanto rios morrem e florestas caem, essa verdade ecoa — e nos cabe escolher: enfrentaremos o abismo, ou nos deixaremos engolir por ele?
Referências
PEREIRA, Vinícius Vieira. O resgate das teorias do imperialismo para a análise do neoliberalismo: um debate. Economia e Sociedade, v. 34, n. 1, p. e265794, 2025.
PRADO, Alexandre G. S. Química verde, os desafios da química do novo milênio. Química Nova, v. 26, p. 738-744, 2003.




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