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Pedagogia do Marxismo Favelado: Aliança Preta, Indígena e Popular

Por Marcos Morcego*


Foto: Ana Pessoa/Mídia Ninja
Foto: Ana Pessoa/Mídia Ninja

O mês da Consciência Negra chegou, momento no qual, teoricamente, olharíamos para a cultura e o chamado “protagonismo negro”. Mas aqui temos uma proposta radicalmente diferente: ao invés de olharmos para participações e cargos de poder, revisitar a história “afro-diaspórica” no Brasil é revisitar passos dados em uma intensa luta de classes. Na chave da resistência e da constituição negra estão a solidariedade e uma luta dura contra um sistema de opressão e exploração.


Neste texto, vincularemos alguns elementos importantes. Por um lado, resgataremos, mais uma vez, aspectos essenciais da construção de uma luta que historicamente esteve ligada não só à terra, mas também a possibilidades muito mais amplas — para além de uma vida baseada no salário e no trabalho que enriquece alguns poucos burgueses. Por outro, temos ainda hoje, na luta indígena, quilombola e camponesa, grandes referências, que pensaremos a partir de uma Pedagogia da Terra [1].


Com isso, chegaremos a uma proposta totalmente inconclusa e superficial, que só pode ser pensada e realizada coletivamente. Resgatamos o Marxismo Favelado [2] como método de luta essencial para pensarmos sobre nós mesmos, a partir de nós, daqui de baixo — como integrar uma Aliança Preta, Indígena e Popular [3] que possibilite superar um sistema de violência. Este texto é em memória de todas as pessoas que lutaram pela emancipação humana — ou seja, que lutaram para que possamos simplesmente viver —, mas também em memória de todas as que sofreram nas mãos deste sistema sanguinário. A luta do povo negro nas cidades faz parte de uma teia imensa de lutas que, necessariamente, precisa ser anticapitalista, se o papo é ter água, comer comida saudável, morar bem e não se matar de trabalhar.


Vale ressaltar que este texto surge como produto de uma junção de ideias motivadas para a apresentação de um seminário em homenagem a Clóvis Moura [4]. E, seguindo seus caminhos, não nasce dentro da universidade, mas antes da luta nas periferias e na terra — buscando conectar territórios, destruir o concreto e plantar a vida.


Tá com medo do marxismo?


Dá pra falar de favela e marxismo — e, ainda que nisso o estudo seja incluído (voltaremos a isso mais à frente) —, não se trata da necessidade de panfletar, nem de ir para a universidade militar, ou de ficar em casa apenas compartilhando pautas importantes. Também não se trata de seguir uma fórmula (o marxismo não foi criado como fórmula), mas de um diálogo direto com o que já havia publicado quando propus a implosão da sociologia [5]. Enquanto um jovem preto, pobre e morador de periferia (e sou apenas mais um entre milhares), é sobre reconhecer que essa condição tem relação com uma estrutura que tem séculos de história, resultado de processos diversos, construída e fortalecida por um grupo específico de pessoas que se beneficia mantendo a maioria da população na pobreza, na instabilidade dos empregos — e que também determina onde a polícia pode matar e onde ela nem entra (por se entender menor do que os brancos ricos). Ou seja, o marxismo favelado nasce de olhar para essa situação, entender que ela precisa mudar e perceber que, dentro desse sistema: o direito é o direito dos ricos; a polícia é uma instituição criada e existente para nos reprimir e controlar; e o Estado (enquanto construção histórica) e o governo, dentro do capitalismo, são essenciais para que grandes empresas continuem acumulando capital enquanto destroem nossas casas, nos proíbem de plantar e matam tudo o que é vivo — pessoas, peixes, pássaros, árvores, rios e montanhas.


Vou dar um exemplo que está, ao mesmo tempo, longe e tão próximo: Ruth First [6], militante comunista que esteve na linha de frente, muitas vezes ao lado de Nelson Mandela, pelo fim do apartheid — um dos muitos regimes de segregação racial existentes. Segundo Ronnie Kasrils, companheiro de militância, “o marxismo de Ruth era tal como desenvolvido e defendido por Marx: uma compreensão dialética de que a teoria precisa ser desenvolvida com condições constantes em mudança; faça perguntas e duvide de tudo; enriqueça a teoria por meio da práxis — a unidade entre teoria e ação”.


Olhar para o passado, então, é pensar a ancestralidade no presente, mas também enxergar como uma sociedade é capaz de promover uma política da violência, da fome e da pobreza. É olhar para trás como se estivesse diante de nós [7], para perceber que a saída é coletiva e que ela não se desenha apenas agora — ela existe desde o momento em que o sistema se projetou para dominar. Por isso, é uma batalha também pela memória e pela história; por isso os setores dominantes cortam os estudos voltados para a humanidade; por isso o sistema se torna cada vez mais técnico e acelerado. O passado é descartado e uma nova novidade chega. Com isso, também nos perdemos — isolados nas nossas casas, nos novos projetos, em pequenos e minúsculos apartamentos; uma vida sem som, vazia, cinza, solitária e perdida.


Uma construção histórico-social: a materialidade e a ideia


Vivemos, então, em uma sociedade capitalista que se vende como eterna, como se fosse a única coisa possível, e que se apresenta como democrática, quando, na verdade, “para difundir como universal uma conquista que é somente de uma classe, a burguesia cria, em nível de superestruturas, instrumentos e mecanismos políticos que deem sustentação à base material: um novo Estado [capitalista], uma nova ciência [racionalista e positivista, que ignora e exclui outras formas de saber], uma nova educação [voltada para o mercado] e até uma nova religião. Portanto, o sujeito histórico revolucionário [nós] precisa, ao mesmo tempo, contrapor-se na sua totalidade às condições históricas que pretende revolucionar e abrir mão de toda particularidade que possa significar alguma forma de vínculo com a classe opressora [a burguesia]”. Assim, toda a ideia de liberdade é criada na confirmação e no fortalecimento da “continuidade da exploração e dominação” [8] da burguesia.


Ou seja, existe um mundo físico, das ideias e das relações sociais produzidas a partir de um modelo que pensa a terra como propriedade privada, que nos coloca aos pés das empresas por um salário — isso sem precisar voltar tanto para falar da escravidão e da dominação física que permanecem até hoje. Existe uma realidade que busca justificar a posição social de pessoas negras, indígenas e mulheres com base no chamado mérito, como se uns merecessem e outros não. Existe um mundo que, por mais que tentemos nos integrar, necessita da competitividade, precisa de pessoas vivendo miseravelmente — resultando em um genocídio constante que atravessa a Palestina, o Sudão, o Congo e também o Brasil, ganhando respaldo até de uma parcela de favelados.


Modernização sem transformação


Da escravidão para cá, as coisas foram “modernizadas” — não num sentido de avanço ou progresso, mas com a intenção de manter as mesmas relações. Na realidade brasileira, não ocorre ruptura [9], mas uma continuidade diferenciada. Os aparatos de repressão se atualizam: seja nas forças nacionais, nas pessoas armadas contratadas por grandes empresas, ou nas polícias (federal, militar e civil), todo o aparato não se coloca para fazer nossa segurança, mas para garantir a propriedade privada e a manutenção do sistema [10]. Civilização, capitalismo e branquitude se confundem, buscando esmagar essa “mancha negra” [11]. O que temos, ao final, é “um aparelho de Estado voltado fundamentalmente para defender os direitos dos senhores e os seus privilégios”. Assim, “a modernização avança, a economia se regionaliza, a urbanização se regionaliza, mas as relações escravistas e suas instituições correspondentes — finalmente, a estrutura social — conservam-se intocáveis no fundamental” [12].


Em resumo, as coisas mudam, mas a estrutura capitalista — que globalmente se beneficiou de todo o processo de pilhagem e genocídio — ainda incorpora, até os dias de hoje, formas e métodos de controle, não apenas pelas famílias que estão há séculos no poder [13], mas também porque o sistema segue funcionando. A máquina que faz girar o capitalismo está na terra, nas plantas, nos territórios desapropriados, nas águas sugadas, no colapso ambiental — mas também no nosso sangue jorrando.


Onde a dominação se coloca, nós resistimos


Aqui, dialogo com diversas partes escritas por Clóvis Moura em Camponeses e Quilombolas Insurgentes: luta e resistência pela terra no Brasil (2022) [14], para focarmos nos quilombos e adentrarmos uma perspectiva contrária ao sistema — principalmente porque eles foram “unidade de protesto e de experiência social, de resistência e reelaboração dos valores sociais e culturais do escravo em todas as partes em que a sociedade latifundiário-escravista se manifestou” (p. 20). Era um ato radical de resgate da humanidade, violento no sentido de romper o sistema, mas também de afirmar que nós podemos sim interferir na estrutura.


Resgatamos, então, o “território”, associado “às relações sociais produzidas a partir da liberdade e da autonomia”, com o resgate da humanidade apontando para a emancipação social. Uma sociedade do trabalho livre — mas que se diferencia do trabalho que conhecemos —, pela relação coletiva [15], pela negação do trabalho compulsório.


Suas alianças se estendiam a pequenos produtores, contrabandistas, ex-presidiários, mulheres — apresentando uma composição interna entre negros, indígenas e brancos pobres (na maioria dos lugares). Tendo como função “uma ruptura radical, em todos os níveis, com o sistema colonial-escravista, seus representantes, sua economia e seus valores raciais e ideológicos” (p. 22), tentavam, inclusive, evitar conflitos diretos e, mesmo sem querer, ou querendo, desgastavam o sistema dominante [16].


Era a negação, portanto, de um sistema baseado na propriedade privada da terra — por isso, muitas vezes, como até hoje, a ocupação da terra, seja produtiva ou não, mas tirada das mãos dos grandes latifundiários, traz essa expressão socialmente produzida da luta negra e indígena “de radicalidade [...]. Em todos os níveis da sua estrutura o quilombo expressa essa radicalidade de negação à ordem social escravista” (pp. 24-25).


Portanto, a violência trazia a humanização — e aqui Clóvis dialoga diretamente com Fanon [17] —, é a construção de territórios livres, constituídos dialeticamente na relação entre a negação da ordem vigente e a criação de novas formas de viver. Constitui-se, assim, uma outra forma econômica, outras relações sociais, desarticula-se a estrutura do Estado e coloca-se a autonomia à frente.

“A unidade quilombola tinha, assim, características específicas. Constituía uma nova realidade social, dinamizava-a. E, ao dinamizá-la, contrapunha-se social, econômica, política, étnica e ideologicamente ao escravismo e contrapunha a ele novos valores e uma nova economia” (p. 34).

Pedagogia da Terra e Marxismo Favelado: o retorno da quilombagem


A proposta nestas linhas é simples: negar o sistema imposto pela violência, pela fome e pela miséria econômica, política e social. É uma proposta de movimento e transformação — de atravessar essa realidade social por meio da nossa humanização. Isso é ter como base e referência a “luta social” entre os que dominam e nós, os dominados insurgentes; baseada na coletividade, numa construção comunitária e comunal (se organizar). A terra, para as periferias, tem que voltar a ser vista não como atraso, mas como proposta que tem por base a vida. Com isso, uma nova cultura (em seu sentido amplo) brota — nossas referências também são radicalmente chacoalhadas. E isso tem a ver com história, com resgate da memória, com o rompimento da narrativa que nos contam e a abertura para o que não querem que resgatemos — o que passa pela terra e pela negação do capitalismo [18].


Diversas organizações, movimentos, partidos, coletivos e instrumentos políticos tentam construir essas alternativas — alguns pensando mais o “agora” e vinculados ao sistema; outros destacando apenas o momento utópico; e outros nesse processo de negação dialética, que enxerga os limites e busca atualizar os enfrentamentos necessários, contornando a dominação enquanto se estrutura por baixo.


Ou seja, não queremos ver mais dos nossos tombados. Não queremos morrer em uma guerra que o Estado organiza arbitrariamente para manter as bases da sociedade capitalista. Não aceitamos passar fome. Mas também sabemos que depender de respostas vinculadas ao Estado é confiar em algo que, quando chega até nós, já chega tarde demais.

Se hoje somos mortos, é com o aval dos donos do mercado, das pessoas que mantêm o funcionamento do Estado por cima, e da ambição da burguesia financeira, dos latifundiários e dos neoconservadores — contando, muitas vezes, com quem se diz de esquerda, inclusive em espaços de poder.


É defender nossa relação enquanto natureza, enquanto seres conectados; é defender a vida em seu sentido mais integral. O necrocapitalismo é um sistema de morte. Então, somos nós que temos que nos mobilizar — só nós podemos negar radicalmente o sistema enquanto nos organizamos coletivamente em torno de outras bases sociais.


A Aliança Preta, Indígena e Popular necessita que as pessoas faveladas, periféricas e pobres da cidade aceitem o desafio. Não é um convite fácil, mas hoje somos mortos — e, sinceramente, já cansei de aceitar que essa seja a dura realidade que precisamos encarar. Reconectar os laços, romper ideologicamente com essa sociedade individualista, negar sermos mercadorias (e negar que aquilo que plantamos ou que os rios sejam mercadorias). Contra o genocídio, não basta apenas tirar quem está à frente: é preciso derrubar o sistema que permite que isso aconteça dia após dia, semana após semana, mês após mês.

Referências:


[1] O livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, de Roseli Salete Caldart pela Expressão Popular foi quem me apresentou esses elementos, que já tinha visto na luta por terra, na vivência;

[2] Uso essa expressão que pego de Tiaraju Pablo D’Andrea, no livro A formação das sujeitas e dos sujeitos periféricos, publicado pela Editora Dandara;

[3] A Aliança Preta, Indígena e Popular tem uma longa história na luta territorial, uma boa síntese e proposta aparece em Por Terra e Território, publicado pela editora Teia dos Povos (uma articulação política) e nasce do esforço de Mestre Joelson e Erahsto Felício;

[5] Livro que publiquei pela Editora Terra Sem Amos: Por uma implosão da sociologia.

[6] Quase nada da Ruth First foi traduzido pra pt-br, o livro Ruth First e a luta contra o apartheid sul-africano, pela Expressão Popular é um trabalho lindo;

[7] Minha reflexão parte muito da Silvia Cusicanqui e do mundo ch’ixi, ainda assim é necessário reconhecer como essa perspectiva parte de uma ancestralidade que toca diversos povos indígenas e negros;

[8] Marlene Ribeiro, militante e educadora do MST fala sobre: Movimento camponês, trabalho e educação, pensando a liberdade, autonomia e emancipação, livro publicado pela Expressão Popular.

[9] Florestan Fernandes aborda isso em diversos textos, como Poder e Contrapoder na América Latina;

[10] Há casos extensos sobre a violência: como no caso da resistência Guarani e Kaiowá: Guarani-Kaiowá: crianças passam fome após ataques ; ou na Bahia Comandada pelo PT, PM da Bahia é a que mais mata no Brasil; e o recente caso no Rio de Janeiro: 'Carreguei mais de 80 corpos': o terror na Penha e no Alemão; recomendo também o livro História da polícia no Brasil, de Almir Felitte pela Autonomia Literária

[11] O genocídio do negro brasileiro. Abdias Nascimento. Editora Perspectiva.

[12] Sociologia do Negro Brasileiro. Clóvis Moura. Editora Perspectiva.

[14] Camponeses e quilombolas insurgentes: luta e resistência pela terra no Brasil. Clóvis Moura. Editora Terra Sem Amos.

[15] Livro recém-lançado entre Glac, Entremares e Teia dos Povos - Mutirão: ajuda mútua no campo, de Clóvis Caldeira

[17] Isso acontece em Condenados da Terra de Frantz Fanon (uso a versão do Editorial Adandé)

[18] Referências em: Pedagogia do Movimento Sem Terra, da Roseli Salete Caldart, pela Expressão Popular e esse debate: https://www.youtube.com/watch?v=5w8hfiHPAzY 


*Marcos Morcego é comunicador político e educador popular, militante por Terra e Território das perifeiras de SP


 
 
 

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