O Estado Brasileiro e o Território: Colonialismo, Ditadura militar e o Estado de exceção brasileiro
- Marcos Morcego
- há 7 dias
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Por Marcos Morcego*
O mês de abril é marcado por dois eventos cruciais: de um lado, em 2025, completam 61 anos de um golpe que culminou na Ditadura cívico-empresarial-militar, um acordo entre certos setores das elites, militares e da dominação imperialista norte-americana; de outro, também se completam 29 anos de outro episódio extremamente devastador, o massacre de Eldorado dos Carajás, quando, em 1996 (com a Ditadura já finalizada), a polícia do Pará matou 21 camponeses, além de deixar mais de 60 feridos, marcando assim o Dia Internacional de Lutas Pela Reforma Agrária (dia 17 de abril) [1].
Então nós colocamos um desafio, questionar a Ditadura Militar como um ponto fora da curva nos ciclos de violência, muito pelo contrário, entendendo ela como uma reatualização do próprio projeto colonial, e que, com o neoliberalismo assume uma forma muito mais próxima daquela definida como Estado de Exceção - que buscaremos explicar no desenrolar do livro. E, mais um desafio surge, entender a necessidade de uma reforma agrária popular, ou, ainda, de uma revolução agrária como fundamental para nos libertarmos das correntes desse sistema que busca nos explorar, oprimir e reprimir.
O militarismo: lucro e dominação política
Exércitos existiram em vários episódios das vidas humanas, em diversas formas, modelos, culturas e objetivos. Mas aqui olharemos para o exército militar dos Estados-Nação capitalistas, colocados sempre como necessários e insubstituíveis. Como diz Rosa Luxemburgo “O exército permanente, o militarismo é, de fato, indispensável - mas para quem? Para as atuais classes dominantes e os governos de hoje” [2].
Olhemos, então, para três dinâmicas: de um lado a ideia de controle social, presente, por exemplo, no seu controle sobre quase todas as armas em território nacional (para o Brasil); de outro a dinâmica econômica (que traremos brevemente mais algumas relações), e de poder, como Pedro Marín apresentou na live de número #8 da Barricada Vermelha [3].
A partir disso já queremos definir uma política antiguerra, que como bem lembra Silvia Federici “os primeiros grupos feministas foram formados por mulheres que atuaram em organizações antiguerra” [4] , esse elemento é o rompimento da Rosa Luxemburgo, que desde antes da 1ª guerra, como trouxemos, seu texto é de 1899, vislumbrava ali um elemento que ia ser extremamente violento com as e com os trabalhadores, e que se organizaria para extrair lucro dessa máquina de guerra.
A formação desses exércitos é, indiretamente, uma negociação, em prol de uma suposta “defesa” de si (no caso, de nós), e até de retirar uma parcela da população da concorrência por um emprego, nós permitimos perder a nossa liberdade política. “Elimina um concorrente do mercado de trabalho para ver nascer um protetor da escravização assalariada, e impede uma diminuição do salário para, logo em seguida diminuir tanto a expectativa de uma melhora permanente de sua situação quanto sua libertação econômica, política e social definitiva”. O militarismo, e como consequência as polícias e as prisões como conhecemos hoje se tornam, então, algo fundamental para a funcionalidade do sistema capitalista.
Para o Brasil, as polícias representam uma instituição “sólida”, com “políticas duradouras”, de acordo com Fausto Salvadori, sendo marcada pelo militarismo. E é lá no Império que encontraremos “as origens de um sistema de segurança pública com fortes características de controle social” [5]. Se antes as pessoas marcadas eram indígenas e negros escravizados, as “classes perigosas” se tornam, também, “trabalhadores assalariados”, anarquistas e comunistas, e todos associados à ideia de vagabundagem e vadiagem.
Repetimos a pergunta feita pelo Movimento Negro no século passado e que reaparece nas palavras de Fausto Salvadori, “que democracia é essa?”. E as polícias são um obstáculo direto ao básico do que deveria ser a democracia. Essa estrutura autoritária e militarista, que parte na própria construção do Estado, vincula o controle social ao que a classe dominante pensa: lucro.
É exceção ou sempre foi assim?
O Estado, e o governo, teoricamente são responsáveis por responder aos interesses da sociedade do coletivo. Por isso que a representatividade ganha tanto espaço dentro da ‘democracia’ burguesa, e, praticamente eles respondem aos interesses de uma parcela dessa sociedade, da coletividade mais individualizante possível, os interesses da classe burguesa. O mercado, o Estado, o direito são partes de uma estrutura de poder de classe.
Se o Estado “não passa de uma máquina para a opressão de uma classe pela outra” [6], como diz Lênin, então a democracia burguesa é uma democracia de e para poucos, mas para a grande maioria é uma ditadura. Gosto da temperatura que nosso revolucionário bolchevique coloca, quando observa o limite da liberdade, que para os ricos ultrapassa a imprensa, a justiça e todas as amarras do sistema, enquanto para nós sobra a liberdade de escolher morrer de fome ou de tanto trabalhar.
Então se não temos liberdade, olhamos para o controle social, e a conclusão fica nas mãos de Gabriel Miranda quando aponta que “por ser o Estado uma organização erguida a fim de garantir a manutenção do capitalismo - um sistema que se funda na produção da morte -, todo Estado capitalista possui, em alguma medida, um caráter mortífero que lhe é intrínseco” [7]. Esse é o necrocapitalismo. Durante o período classificado como acumulação primitiva (ou originária) do capitalismo, o colonialismo foi a violência utilizada para garantir esse processo, e aí, como diz Clóvis Moura, passamos, então, por uma modernização sem transformação social.
A violência do sistema passa por um processo de modernização, muda de certa forma com a abolição da escravatura, mas o esqueleto do que foi a colonização continua conectado ao Estado e aos espaços de controle social. Com a atualização durante a ditadura militar, os subalternos, nós, mulheres, negros, indígenas, trans, pcd´s, estamos, como diz Lélia González, continuamos relegados à lata de lixo da história, completamente descartáveis, manipulados para que alguns poucos lucrem em cima das nossas vidas.
Quando o neoliberalismo busca diminuir os espaços de apoio social, avança sobre os direitos humanos, políticos e sociais; busca privatizar todos os serviços sociais, temos uma outra face do caráter necrocapitalista do Estado, de realmente precarizar a vida. Se não pode sempre matar, ou se não quer cutucar a revolta, basta ter uma estrutura que permita que esses grupos simplesmente morram. Mas vamos pensar um pouco mais sobre o Estado.
Para além de emaranhados nessa rede capitalista, a América Latina foi forjada dentro do sistema enquanto dependente, Eduardo Galeano reforça que “a região continua trabalhando como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias" [8]. Quando falamos então que as veias aqui foram abertas, foram os recursos humanos, rios, florestas, minerais, nos torturam e nos deixam sangrar. “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno”.
Portanto, manter a estrutura colonial, forçar diversas experiências fascistas, protofasistas e/ou ditatoriais, não são exceção, são a normalidade, a constância, é uma necessidade do capital. Mas e nos momentos que essas forças não estão à frente? Como quando temos governos populistas.
O autoritarismo que se esconde:
A definição de Estado de Exceção surge a partir da ideia da política se sobressaindo ao direito durante, principalmente, ditaduras. Luís Manuel Fonseca vai definir no plural, por várias formas possíveis desse autoritarismo se expressar [9]. Mas no fim, o diálogo é o mesmo das democracias burguesas, “aparenta ser uma democracia - mas ouve os empresários, raramente os trabalhadores”.
E aí chegamos no “x” da questão, a forma político-jurídica não é deixada de lado, nem se desvincula da acumulação do capital, muito pelo contrário, elas ajudarão a adaptar essa forma autoritária que se apresenta. No Brasil, então, temos um processo contínuo de apagamento da história e da memória que busca minar os conflitos das lutas de classe, para colocar um véu sobre a realidade e tratar a democracia como um padrão, enquanto a política de morte continua sendo a predominante.
Essa democracia burguesa tem como base, segundo Florestan Fernandes, “a representação”, “o regime eleitoral, os partidos, o parlamentarismo” e temos o “Estado constitucional” [10]. Formalmente se cria um ar de igualdade e até de liberdade, mas na realidade o que se expressa, e o que temos apontado, é “o elemento autoritário”, que é “intrinsecamente um componente estrutural e dinâmico da preservação, do fortalecimento e da expansão do sistema democrático capitalista”.
O Estado de exceção brota, então, do que é chamado de Estado democrático, “revela que ao monopólio da dominação burguesa corresponde um monopólio do poder político estatal”. Ou seja, chegamos no argumento principal do texto, a história e o desenvolvimento de um colonialismo que passa ao capitalismo dependente mantém sua estrutura. Não à toa, Silvia Federici quando busca olhar para o trabalho doméstico e de reprodução chega à essa conclusão:
“Esse desenvolvimento afetou, em diferentes graus, todas as populações ao redor do planeta. No entanto, a nova ordem mundial é mais bem descrita como um processo de recolonização. Longe de comprimir o mundo em rede de circuitos independentes, ela foi reconstruída como uma estrutura piramidal, aumentando as desigualdades e a polarização socioeconômica, e aprofundando as hierarquias que historicamente caracterizam a divisão sexual e internacional do trabalho”, e ainda mais, “o centro estratégico da acumulação primitiva [que não acabou] tem sido o antigo mundo colonial, lugar da escravidão e das plantations, historicamente o coração do sistema capitalista” [11].
Sendo assim, só haveria democracia com a superação do sistema capitalista. Só a partir das lutas e enfrentamentos que têm como centro a raiz da exploração é possível abrir novos caminhos, seja na construção de outros espaços sociais, ou resgate daqueles que sempre criamos, seja na tomada de poder. O ponto é: na ordem burguesa essa saída não será encontrada, pois é necessária ao sistema.
A tecnocratização e a militarização, não só na lógica, mas da própria função, ou das funções necessárias ao Estado reforçam não apenas o autoritarismo, mas o próprio processo de fascistização [12]. Chegamos tanto nas explicações de Rosa Luxemburgo e o militarismo, como no nascimento do neoliberalismo no Chile, demonstrando esse caráter intrínseco desse autoritarismo e desse nível de violência no seio da sociedade burguesa. É como eles podem, de um lado, manter o nível de exploração e garantir seus lucros, mesmo em tempos de crise; mas também mantêm o caráter contrarrevolucionário, sempre barrando qualquer possibilidade da luta de classes atingir maiores graus, tentando impedir ela de nascer (o que é impossível).
Cabe agora analisar algumas mudanças mais profundas durante o regime ditatorial brasileiro.
As universidades e as forças policiais na Ditadura brasileira
A USP, a PUC/SP e outras universidades se associaram em vários graus ao processo de fascistização, começando pela elitização do ensino, que são as origens dessas instituições, mas a própria ciência é pensada refém de modelos produtivos e excludentes. Algumas das coisas mais interessantes é que isso também gerou uma forte luta interna, sendo a USP um grande exemplo em que a moradia estudantil (o CRUSP), só se tornou o que é pela ocupação de estudantes que necessitavam de lugar para morar, além de receber guerrilheiros urbanos e ser, durante um tempo o centro da UNE (União Nacional dos Estudantes), tudo isso entre 1963 e 1984.
A Universidade não será revolucionária se a sociedade não for, a força muito antes de ir de lá de dentro para fora, começa fora e isso impulsiona o que está lá dentro a superar os obstáculos enfrentados, embora a instituição tente se isolar, e isso seja uma coisa que os “donos do poder paulista” deseje, ela está presa no complexo global de disputas e tretas de toda a sociedade. Durante o início do período ditatorial a USP (que será o exemplo aqui usado, como pode-se ver), passou por uma reforma, Florestan irá comparar com o processo de redução da sociedade para a relação entre senhores e escravos, mas agora em um mundo transformado (em que essas relações sociais foram mantidas):
“As tenazes que operavam a partir do império central e dos tentáculos do capitalismo financeiro se combinaram aos tacões com esporas dos donos do poder, os quais não precisaram de muito tempo para encurralar os universitários, reduzi-los ao silêncio e à impotência, e pulverizar a reforma universitária em processo, convertendo a universidade brasileira [e não só a USP] em um centro de retórica abstrata e centrífuga”. [13]
Em resumo, freia-se essa reforma, e a parceria entre império (EUA e alguns países da Europa), e a colônia, ops, e o Brasil dependente, para uma relação entre o MEC e a USAID, “imposto centralizadamente pelo braço militar do regime ditatorial”. Eles montavam a cerca de seus quintais, nos encerravam em suas grades. Boa parte das universidades e daqueles que tinham poder de mudança, mesmo os que tinham uma perspectiva de um grande investimento, um processo lido como “modernização”, optaram pelo projeto conservador (e com o tempo se unem e se tornam até hoje o projeto hegemônico). “Os últimos vinte anos demonstram que a ordem social vigente prefere castrar a universidade, sufocar sua contribuição ao pensamento inventivo e degradar todo o sistema de ensino superior a admitir maior tolerância no fluxo do conflito cultural e educacional”.
Outro elemento é que as Universidades se tornam um espaço de denúncia. Não dos socialistas, excluídos e revolucionários. Começam a aparecer listas, feitas por grandes e históricos professores, entregando seus colegas, estudantes, conhecidos, oferecendo sua alma ao regime ditatorial.
Já sobre a questão policial, o que precisa ficar claro é que antes da ditadura algumas reformas estavam em pauta, longe de representar uma perspectiva socialista, estavam no marco liberal, como “reforma agrária, reforma urbana” e “ampliação de direitos políticos a analfabetos”. A burguesia, inclusive a industrial, não queria. E os militares já estavam sendo reorganizados, também de antes, “criada em conjunto com uma missão dos Estados Unidos que permaneceu no Brasil entre 1948 e 1960, a Escola Superior de Guerra foi fundada em 1949 para treinar” militares para um alto nível, visando garantir o que viria a ser chamado de “segurança nacional”. Portanto com essas reformas, guerra fria e a Revolução Cubana, só restava uma coisa a ser feita no “quintal” [14] dos Estados Unidos, fechar os regimes.
Então “a Doutrina de Segurança Nacional” estava projetada, e contra o inimigo vermelho, para garantir o “desenvolvimento”, segundo eles, e a “segurança”. Minas Gerais e Espírito Santo serão referências nesse ponto, pois são alguns dos pontos em que começa “o envolvimento sistemático da Polícia Militar nesse processo”, os governos viravam suas forças policiais para servirem ao exército. Em Minas, as ações são coordenadas, no dia do golpe, agindo como um “Batalhão de Infantaria”.
Mas não só na ação as polícias se envolveram, e não apenas as militares. As delegacias de investigação das Polícias Civis foram mantidas pela ditadura, se lembrarmos seus nomes: “Delegacias de Ordem Política e Social”, que gera a abreviação DOPS. Eles atualizaram e integraram os sistemas, acumulando informações, perseguindo, torturando, amedrontando e matando. É lá que surgem os esquadrões da morte [15], mantidos, ainda que a gente não assuma, até os dias de hoje.
Ao fim do regime essa estrutura foi mantida. Até hoje as armas das polícias estão sob controle do exército [16], mais do que isso, a forma de amedrontar, tortura e execução fazem parte do cotidiano. A ideia de militarizar as guardas civis metropolitanas e a própria polícia civil, vêm sendo colocada em prática de pouquinho em pouquinho. A ideia de vigilância nas escolas, câmeras com reconhecimento facial, enfim, o nível profundo de observar tudo e todos, e nos manter na linha, continua [17].
Alguns elementos da luta do povo negro
Geralmente ao abordar esse período duas coisas entram em destaque: o genocídio negro e a formação do Movimento Negro Unificado, aqui vamos detalhar alguns pontos que se somam, e vão entrar de forma dispersa, mas fundamental para entendermos em que pé as coisas estavam. Embora o foco aqui não seja os movimentos culturais, gostaria de colocar como destaque o documentário: Black Rio! Black Power!, que reflete sobre os bailes black e a relação da militância no Rio de Janeiro.
Voltamos para 1915 com o surgimento do jornal “O Menelick”, datado por Clóvis Moura [18], como o primeiro durante a república, sendo uma marca crucial para o Movimento Negro, e, enquanto fenômeno, durando até 1963 quando o jornal “Correio D’Ébano" é fechado. São momentos de construção de “uma imprensa alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem”. Era criar a própria informação e os seus canais de comunicação.
Esse movimento leva a formação da Frente Negra Brasileira, “o maior movimento político negro no Brasil”. Mas, no começo, seja “O Clarim da Alvorada”, que “municiou a comunidade de dados e informações preciosos para que o negro se autoidentificasse na sua negritude”, e o “A Voz da Raça”, esse da própria Frente, atuavam no sentido de despertar a consciência, mas não de relatar as greves e as lutas, pelo menos nesse primeiro momento. A Frente Negra também possuía sua própria frente militar. Fundada em 1931, dura até 1937, quando entra a ditadura getulista, que fecha seus jornais e os proíbe de se tornarem partido. Ela já sofria de um racha entre setores cada vez mais conservadores e outros que buscavam superar aquele momento.
Então surge uma Nova Articulação, surge em 1945, com a derrota do nazismo, “o Comitê Democrático Afro-Brasileiro”, e aqui eu farei uma longa citação do Clóvis, para falar sobre os principais objetivos dessa articulação:
“Uma Assembleia Constituinte; anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos; extinção do Tribunal de Segurança Nacional; liberdade de palavra escrita e falada; reconhecimento do direito de greve; atamento de relações diplomáticas com a URSS; autonomia sindical; assistência ao trabalhador rural; direito de sindicaçização para as empregadas domésticas; ensino gratuito; punição às empresas que fazem seleção racial e de cor; participação do negro nos assuntos de colonização e imigração; fazer a aproximação das escolas de samba, clube dançantes, associações esportivas, sociedades beneficentes, organizações religiosas, livrando-as da exploração política e comercial. e criar escolas de alfabetização em todo o território nacional”.
É nesse mesmo período, em 1944, que surge também o Teatro Experimental do Negro, o TEN, com Abdias Nascimento também formando o jornal Quilombo. Já nessas organizações alguns nomes começam a se conectar, como Edison Carneiro, Guerreiro Ramos e, também, Solano Trindade.
Mesmo assim, com as constantes formas de repressão, e mais ainda, no nível de dominação, Lélia Gonzalez [19] é precisa quando afirma que “tanto no caso do indígena quanto no do negro percebemos que é o branco quem controla sempre as decisões a nosso respeito”, a segregação racial marca a construção do Brasil. Não à toa, o medo da união dos vermelhos (comunistas) com os escravizados, na época em que o Manifesto Comunista tinha sido lançado, são as marcas da dominação, de um lado, enquanto de outro, a luta por libertação.
Como a autora continua explicando sobre a cidadania, a construção colonial no Brasil colocou negros e indígenas no centro da produção, então somos jogados, chutados (mais uma vez), porém agora numa sociedade que dizia nos incluir, a cidadania de papel não foi garantida na prática. O projeto colonial marca todo esse traço, por isso os movimentos negros, seja os Quilombos, seja a FNB, a articulação de 45 ou os jornais, teatros, escolas de samba, sempre existiram e foram construídos enquanto alternativas, independente dos seus limites.
Por isso, no próprio processo de redemocratização, “existe uma exclusão, sim [...]. A exclusão continuou com relação à questão do negro, com relação à questão do índio”. Como permanece até hoje, só servimos se for para cumprir os papéis que os poderes nos querem fazendo. Portanto, se o papo é sobre democracia, devemos lutar “por uma redefinição do paradigma legal imposto a nós pela ordem burguesa [...], a questão dos direitos da cidadania etc., foi posta pela burguesia”. O que não foi resolvido desde a colonização é a pauta do dia, “uma revolução dentro de uma sociedade, transformação profunda dentro de uma sociedade”.
Mesmo com o milagre econômico, assim chamado o período entre 1968-1973, na realidade o que aconteceu foi, 1) “deterioração das condições de vida dos estratos urbanos de baixa renda”, enquanto para os poderosos, 2) “concentração de renda”. É, parecido com a definição de Clóvis Moura, “modernização conservadora excludente”, ou, ainda, “desenvolvimento desigual e combinado, em que a formação de uma massa marginal, de um lado, assim como a dependência neocolonial e a permanência de formas produtivas anteriores, de outro, constituem-se como fatores que triplicam o sistema”, especialmente a exclusão da mulher negro, que, então, protagonizará a luta nos movimento de bairros e de favelas.
E a democracia racial?
Seja com Clóvis Moura, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, há uma crítica ao discurso da democracia racial, já que, como exploramos, a lógica colonizadora e segregacionista é fundamental para a manutenção do capitalismo. E o único exemplo concreto seria Quilombo de Palmares, que após inúmeras tentativas foi destruído pela coroa portuguesa. Também é a opinião de Abdias Nascimento, afirmando que, desde quando Rui Barbosa, em 1899, mandou queimar diversos documentos sobre registros da época da escravidão e também sobre o tráfico negreiro, houve a tentativa de apagar a “mancha negra”, a “justiça branca” tomava seu lugar, de controlar essa situação.
“Dessa espécie de alquimia estatística resulta outro instrumento de controle social e ideológico”, como fato permanente, “dignidade, identidade e justiça lhes são sonegadas pelos detentores do poder”. A ideologia do branqueamento racial, que é o que temos efetivamente, de segregação, ganha uma cobertura, a partir de Gilberto Freyre, essa ideia de democracia racial. Somos proibidos de nos autodefinirmos, nossa auto-organização é barrada, “negam a ele, com fundamentos na lei, o direito legal da autodefesa”. Portanto, no marco democrático (que também é usado pela Ditadura pelos que tomaram o poder), recolheu a discriminação “em seu seio democrático”, já que estavam todos inseridos.
Porém, na prática, para além da autodefesa, o governo ditatorial “tem tomado medidas para proibir completamente a discussão do tema racial”, principalmente pela afirmação de já existir a democracia racial. Quando, na verdade, “a proposta Comissão Geral de Inquérito Policial-Militar” evidenciou o “propósito e objetivo de intimidar e silenciar a discussão pública do racismo e da discriminação racial”.
Em resumo, não é apenas uma discussão sobre subalternos e poderosos individualmente falando. Mas é a estrutura da sociedade, com suas transformações, mas sem mudar as relações sociais. Com o capitalismo se atualizando, não para tornar a vida melhor, ou para modernizar e diminuir as horas de trabalho, por exemplo. Mas é apertar ou afrouxar nossa coleira, mas nos manter em coleiras; é manter um sistema que precisa do nosso sangue derramado, das nossas barrigas vazias, das terras em suas mãos.
Conclusão:
Após essa longa discussão, e já pedindo perdão por me prolongar, gostaria de encerrar com algumas reflexões. A escrita desse texto não busca descaracterizar a ditadura militar, e todo horror desse período, apenas entender as marcas presentes no sistema capitalista, que garantiram que antes esse horror já fosse expressado, e que mesmo com a “redemocratização”, assim chamado o período com o final da ditadura, essas marcas se mantiveram presente.
Em resumo, queremos dizer que: a violência é o padrão do sistema capitalista, das classes dominantes e do que é chamado de “grande política”, o Estado, esse grande balcão de negócios permite que aqueles que detém o poder possam se reunir, discordar, concordar, independente disso tudo, sua vontade está para debate. Com a alegação de um sistema democrático só nos cabe votar em quem supostamente nos representa? Ou ainda que possamos expressar nossas vontades, a decisão está fora do nosso alcance. Ou ainda que a gente consiga o cargo, até de presidente, o sistema está tão amarrado que a lógica permanece, o braço sanguinário desse de cima pra baixo ceifando nossas vidas e daqueles que conhecemos.
Seja na escravidão, no começo da República, no Estado Novo, na Ditadura Militar, ou hoje em 2025, só uma resposta é sentida: nosso enfrentamento de forma coletiva. Quilombos, comunas, fugas, greves, tomadas, ocupações, assentamentos, colunas, revoltas, queimas…muitas são as formas que aprendemos a resistir. Como diz Conceição Evaristo: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.
*Marcos Morcego é comunicador político na Caverna do Morcego, articulista na Clio Operária (e um dos apresentadores da Barricada Vermelha, nosso programa jornalístico) e trabalhador da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Militante, pesquisador sobre identidade e território e estudante de ciências sociais.
Referências:
[1] Para saber um pouco mais dessa história: <'Abril vermelho': MST prepara ocupações e doações de alimentos em denúncia ao agro e por reforma agrária - Brasil de Fato>;
[2] O Anexo Milícia e Militarismo é uma resposta aos textos de Max Schippel, publicado em 1899, e pode ser encontrado no livro: Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos vol; 1 (1899-1914), organizado pela Isabel Loureiro e publicado pela Editora Unesp;
[3] Barricada Vermelha é o programa de lives da Clio Operária, para acessar: <Barricada Vermelha #8: Agrofloresta, construir novos mundos e os 61 anos da Ditadura Militar>;
[4] Essa discussão aparece no livro: O ponto zero da revolução - trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Silvia Federici. Editora Elefante;
[5] Usaremos até o final dessa parte o prefácio de Fausto Salvadori no livro: História da polícia no Brasil. Almir Felitte. Autonomia Literária;
[6] Democracia e luta de classes. V. I. U. Lenin. Editora Boitempo;
[7] Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam. Gabriel Miranda. Lavrapalavra;
[8] As veias abertas da América Latina. Eduardo Galeano (usei a versão da: L&PM Pocket);
[9] Estados de exceção: a usurpação da soberania popular. Luís Manuel Fonseca Pires. Editora Contracorrente;
[10] Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo”. Florestan Fernandes. Expressão Popular;
[11] O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Silvia Federici. Editora Elefante;
[12] Poder e contrapoder na América Latina. Florestan Fernandes. Expressão Popular;
[13] A questão da USP. Florestan Fernandes. Editora Lutas Anticapital;
[14] Eduardo Galeano já expunha que eles chamavam aqui assim, porém retomo essa chamada pois houve um caso recente feito na Casa Branca, diretamente pelo Secretário de Defesa: <‘Vamos recuperar nosso quintal’, diz secretário de Trump ao mencionar América Latina e criticar influência da China no Canal do Panamá | Mundo | G1>;
[15] Os números estimados são maiores do que na matéria indicada, mas ela é interessante pela análise do posicionamento dos jornais: <Jornais noticiaram Esquadrão da Morte de acordo com clima político – Jornal da USP>;
[16] Pedro Marín, estudioso sobre a questão das ditaduras e dos exércitos fala sobre o tema em live para a Clio Operária: <https://www.youtube.com/watch?v=UlQe93RcdKY&pp=ygUOY2xpbyBvcGVyw6FyaWE%3D>.;
[17] Essa parte sobre a polícia e a ditadura tem como referência o livro: História da polícia no Brasil. Almir Felitte. Autonomia Literária (Cupom de 20% de desconto: #MorcegonaAutonomia);
[18] História do negro brasileiro. Clóvis Moura. Editora Dandara.
[19] Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez. Editora Filhos d’África.
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