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Notas sobre o trabalho remunerado em direitos humanos e as epistemologias da sua práxis

Por Vinicius Souza Fernandes da Silva*


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Considerando a atuação na rede de promoção e proteção dos direitos humanos das infâncias e juventudes — critério central para ser parte deste programa —, gostaria de ressaltar um problema maior que se desdobra em inúmeros outros: o perfil de quem compõe formalmente essa rede enquanto profissionais, das atribuições de ponta aos cargos de gestão.


Inicialmente, é necessário refletir sobre o conceito de ações afirmativas e compreender que ele não se limita a simplesmente aumentar a presença de pessoas de grupos e classes sociais historicamente excluídos. A concepção de ações afirmativas vai além: trata-se de uma estratégia de qualificação de espaços profissionais e acadêmicos a partir da presença dessas pessoas. É compreender que sua inserção soma-se não apenas ao saber científico e acadêmico, mas também à experiência de mundo, e que a confluência desses processos constrói práticas, iniciativas e perspectivas que geram epistemologias — saberes outros — distintos dos perfis tradicionais dos profissionais especializados dessas redes.


É importante deixar explícito que, antes de existirem o ECA, as políticas de proteção, o SAICA ou mesmo a Constituição Federal, já havia organização e iniciativas diversas da sociedade civil voltadas à proteção das infâncias e juventudes. A exemplo disso, a população negra — em toda sua diversidade —, desde o início do modo de produção escravista, exerceu práticas de revolta, levante e contraposição a projetos de sociedade. Esses processos foram nomeados como o exercício da Práxis Negra (Moura, 2014). Do mesmo modo, os povos indígenas empreenderam diversas estratégias de resistência que culminaram na constituição de saberes que fundamentam a criação de sociedades outras, nas quais as infâncias e juventudes não sejam alvo de genocídio.


No entanto, no cotidiano dos profissionais que compõem essas redes, de que forma pessoas de povos e comunidades tradicionais estão contribuindo para a qualificação das práticas institucionais, por meio de suas experiências epistemológicas, para o aperfeiçoamento e a efetivação da promoção e defesa dos direitos das infâncias e juventudes? Povos e comunidades tradicionais estão inseridos nessas redes apenas como público atendido ou também como profissionais? E mais: quando inseridos como profissionais, estão em cargos de gestão?


Considerando os cargos e funções mais comuns em políticas de direitos humanos, saúde e assistência social, segundo o Censo Psi 2022, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia, 63% dos profissionais da Psicologia são brancos. No caso de assistentes sociais, segundo dados de 2022 do Conselho Federal de Serviço Social, embora 50,34% das pessoas se autodeclarem negras (pretas e pardas), apenas 0,32% são indígenas. Outros grupos não são considerados no censo, como a população romani. Ainda, segundo o 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira, realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional), 64% dos advogados brasileiros são brancos, seguidos por apenas 33% de negros (pretos e pardos) e cerca de 1% de indígenas e amarelos. Como nos outros levantamentos, povos e comunidades tradicionais sequer são considerados em termos de pertencimento étnico.


Assistentes sociais, psicólogos e advogados formam a base de diversas equipes técnicas em múltiplos serviços e equipamentos públicos. Se considerarmos outras profissões que, por vezes, integram políticas públicas — cientistas sociais, antropólogos e pedagogos —, os dados seguem na mesma linha. Sobre cientistas sociais, não existem dados consolidados, assim como sobre profissionais da antropologia. No entanto, há estudos regionais questionando a composição racial e étnica dessas categorias, como o realizado por Catelano, Freitas e Chaguri (2023). Já em relação aos profissionais da pedagogia, 55,9% são brancos, segundo estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).


Os impactos de um quadro geral de maioria branca e a ausência de registros sobre profissionais oriundos de comunidades tradicionais refletem-se não apenas na ponta, mas também na gestão das políticas públicas. Conforme dados do IPEA, ao considerar cargos gerenciais no serviço público, as pessoas brancas representam 65,1%.


Como é possível falar em epistemologias descoloniais quando quem ocupa os espaços de garantia de direitos e de cuidado, a partir das políticas públicas, são as mesmas pessoas que detêm o poder social há mais de 500 anos? Epistemologia anticolonial só tem efeito quando quem ocupa os espaços de promoção e defesa dos direitos são as pessoas detentoras desses saberes — como gestoras e executoras —, não apenas como público atendido.

Referências


MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.


Conselho Federal de Psicologia (Brasil). Quem faz a psicologia brasileira?: um olhar sobre o presente. Conselho Federal de Psicologia.

— 1. ed.— Brasília: CFP, 2O22.


CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Perfil de Assistentes Sociais no Brasil: formação, condições de trabalho e exercício profissional. Brasília: CFESS, 2022.


MATIJASCIC, Milko. Professores da educação básica no Brasil: condições de vida, inserção no mercado de trabalho e remuneração. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Texto para discussão 2304, jun. 2017.


Perfil adv : 1º estudo demográfico da advocacia brasileira / coordenador: José Alberto Simonetti, Rafael de Assis Horn, Luis Felipe Salomão – Brasília ; Rio de Janeiro: OAB Nacional.


Catelano, O. Z., Freitas, G. B. de, Chaguri, M., & Candido, M. R. (2024). Desigualdades de raça e gênero entre cientistas sociais. Em Sociedade, 5(2), 9–24. https://doi.org/10.5752/P.2595-7716.2023v5n2p9-24. Disponível em: . Acesso em: 7 de nov. 2025.


SILVA, Tatiana Dias; LOPEZ, Felix. Perfil racial do serviço civil ativo do Executivo federal (1999-2020). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Nota Técnica n.º 49, julho 2021.

*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais e pós-graduando em Direitos de Crianças e Adolescentes, Interculturalidades e Mudanças Climáticas pelo CEAM/UnB. Editor da Clio Operária e associado ao Instituto Hauçá, estuda e escreve sobre epistemologia política, o papel da violência no desenvolvimento histórico do Brasil e povos e comunidades tradicionais de terreiro e de matriz africana. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).

 
 
 

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