“Ocupar o latifúndio, partilhar o pão, cuidar da natureza, fazer revolução”
- Marcos Morcego
- 22 de mai.
- 6 min de leitura
Por Marcos Morcego*
Debates entre a Feira Nacional da Reforma Agrária, a partida de Pepe Mujica, o 13 de maio e especulações sobre o socialismo que pensamos em criar!

O título desse episódio é uma das frases expostas no Parque da Água Branca, entre os dias 8 e 11 de maio. Esse parque foi espaço da 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária, organizado pelo MST, com a participação de lutadoras e lutadores pela terra de 24 estados, trazendo produtos sem agrotóxicos, produtos de cooperativas, da agroecologia, com bioinsumos, enfim, uma diversidade enorme, trazendo para o palco o debate sobre se alimentar, mas não apenas isso, sobre botar comida saudável no prato, não se restringindo ao campo, mas sendo uma urgência das grandes cidades entupidas de carros e ultraprocessados.
Em um primeiro momento a ideia seria apresentar um pouco do que foi a feira, porém, com os eventos recentes, e deixando a experiência assentar na mente, se torna impossível desconectar as coisas. Acredito que participar da feira é indispensável, e nenhuma palavra seria suficiente, dentro do próprio insta da Clio Operária e do meu próprio existem fotos que expressam de forma muito mais clara o que foi estar lá.
Mas uma coisa que deve ser dita é que ali estiveram reunidas pessoas que estão pensando um viver diferente, ainda que dentro de certas relações do sistema capitalista, buscando, como podem e como conseguem construir outros tecidos e outras relações sociais. Alguns grupos na forma de cooperativa, outros na sua própria constituição enquanto um povo, uma comunidade ou até mesmo uma sociedade que sempre viveu de forma diferente dessa imposta, principalmente na sociedade que o evento acontece, que é São Paulo.
As discussões sobre quais passos queremos dar, qual sociedade e até qual socialismo queremos, portanto, marcou tudo isso, e como se já não fossem coisas suficientes para atormentar dia e noite, com a partida de Pepe Mujica, ‘El revolucionário tranquilo’, seus vídeos falando, principalmente sobre a vida não ser trabalho e sobre simplicidade viralizaram, resgatando debates intensos sobre o futuro que imaginamos. E para fechar a chave daquilo que não podemos destacar, tivemos o 13 de maio, data da falsa abolição, daquilo que foi um acordo para passar, de um lado, para o trabalho assalariado, de outro, para excluir massas negras e indígenas dos direitos da sociedade capitalista em formação, mas, também, para proibir que esses grupos acessassem as terras, tomadas pelo latifúndio que surgia com a colonização e o escravismo e que se aproveita, historicamente, desses momentos para se ajustar e, geralmente, expandir seu alcance.
O que enxergamos então, é mais uma atualização, quando a polícia de Tarcísio decide invadir uma favela no centro de São Paulo expondo todo mundo ao terror [1], ou quando o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, propõe armar as guardas civis para que os bailes funks e o lazer periférico seja parado; quando a polícia da Bahia decide comprar armas de israel, financiando o genocídio palestino. E para fechar com chave de ouro, e como pode ser conferido no texto do Rafael (aqui da Clio mesmo) [3], a justiça burguesa se alia com as bets, com influencers e com as articulações da extrema direita para explorar o povo.
Ocupar o latifúndio
Como o MST diz e resgata Roseli Salete Caldart [4] o estalar da cerca, quando ela é cortada [5], é o momento que outros mundos possíveis começam a ser criados. Ocupar o latifúndio, portanto, faz parte de negar a sociedade existente, de negar a estrutura da formação brasileira. É um primeiro passo rumo à possibilidade de vivermos diferentes, mas também não fica restrito ao latifúndio, e essa é a reflexão aqui proposta, é pensar como fazemos essa relação de romper com os vários lados que a estrutura capitalista forma em torno de nós.
Isso passa também por pensar a própria subjetividade, de romper com a ideia neoliberal de individualismo, uma sociedade pautada em uma ideia de prosperidade que virá, ignorando a realidade desigual, ignorando uma forma de poder fascista, que busca matar pretos, pobres, periféricos. Mas também barrar as ferramentas de poder, como as big techs, que roubam nossos dados e nossos dias, assim como uma educação que quer que a gente aprenda a obedecer, abaixar a cabeça e simplesmente aceitar. A grande fita do latifúndio e da exposição de Roseli Salete Caldart é que a pedagogia da terra permite que a gente consiga contestar tudo isso, com o ensinamento-aprendizagem da própria construção da vida, como conseguir isso em uma grande cidade?
Repensar a autodefesa, voltando para um debate que sempre acabo realizando em trechos dos meus debates, de tornar o espaço e a geografia física que ocupamos em território, construir território em um sentido de coletividade, solidariedade, mas também de autonomia e autodefesa, para que o poder público não consiga simplesmente entrar e nos trancar em um determinado espaço enquanto atira, joga bombas e derruba nossas casas. E com um elemento fundamental que marca profundamente as Feiras Nacionais da Reforma Agrária: alimentação.
Partilhar o pão
Kropotkin ao olhar para a Comuna de Paris, uma grande experiência, referência para se pensar o socialismo e a revolução coloca uma crítica fundamental na falta de comida [6]. Se hoje temos territórios que buscam não só a soberania alimentar para que internamente haja abundância, vemos diversos projetos que buscam alcançar conexões para que o alimento seja escoado, incluindo aí que alcance as pessoas da cidade.
Enquanto não evacuamos as metrópoles e megalópoles, enquanto não quebramos esse cimento que sufoca a terra e desmata rios, precisamos pensar, já agora, como alimentar, em uma sociedade que sobrevive pela miséria de muitos. Para além dos níveis de desigualdade, grande parte das pessoas que têm muitos alimentos em casa, vivem de ultraprocessados e de alimentos cheios de veneno. O projeto de morte não necessariamente precisa tirar nossa vida de uma vez, tornar ela miserável, doente, é, por muitas vezes, o suficiente.
E aí encontramos os dois outros temas para além da Feira Nacional. O projeto pós abolição formal, foi o de nos expulsar de onde poderíamos plantar a diversidade de alimentos contida nas sabedorias, nas filosofias e nas tradições ancestrais e originárias [7], mas a cidade e a integração no capitalismo também não serviam, então nos empurraram para as bordas, funcionando ainda para alimentar o que se erguia, mas na condição de despossuídos e marginalizados. Sustentando assim uma sociedade racista, discriminatória, em que aqueles muitos, nós, somos mercadorias sem valor, portanto que podem e, às vezes, devem passar fome.
Cuidar da natureza
Então Pepe Mujica aparece falando sobre simplicidade, por vezes confundido com uma vida sem tecnologia, muito pelo contrário, coloca em questão qual a centralidade. Não entrando no mérito de sua trajetória política ou de sua posição enquanto presidente e senador, mas de realmente ser algo que possamos mobilizar para questionar o próprio Estado e suas formas políticas.
É aqui que traçamos a linha para perguntar: qual a centralidade da nossa vida? É a grande política? São questões governamentais e a construção de instituições e aparelhos de coerção, como polícias e exércitos para controle social? Ou é simplesmente viver? A escolha pela vida busca colocar tudo isso em questionamento e a relação entre a natureza humana e a natureza não-humana é inevitável. É colocar aquilo que a sociedade ocidental buscou fazer para o lado, ignorar a ideia de progresso e até de desenvolvimento para optar por um pensamento que se mantém vivo, ou melhor, pensar filosofias, cosmovisões e culturas que pensam para além do modelo iluminista e/ou cartesiano.
Estamos preparados para dar esse passo?
Fazer a revolução
O movimento das coisas supera qualquer previsão que possamos fazer, e ainda que trilhemos certos caminhos, buscando objetivos claros, pode ser que tudo vá para outro lado. O que não podemos perder de vista é “o que queremos?” e “por que queremos?”. Vou tentar elucidar a partir de um exemplo:
Existe a possibilidade, a partir do recente acordo com a China, da construção de linhas de trem, que em um primeiro momento tem como foco o transporte de commodities para o agronegócio, mas que fosse um projeto para a construção de trem-balas, do que valeria se não estiver aliado a um projeto que busca extinguir o uso de carros e do modelo rodoviário, ou um projeto que não busque transição energética e outra relação da construção com as paisagens e a própria natureza?
No fim, tudo se conecta, a totalidade entra em jogo, até que ponto estamos dispostos a questionar muito mais do que queremos da sociedade que está na nossa frente? Não quero pensar na mudança do transporte para, simplesmente, gastar menos tempo para chegar no meu trabalho. Quero que a relação do próprio trabalho na nossa vida seja diferente, a ponto do trabalho enquanto trabalho ser extinguido. Se for para morrer por um projeto, que seja um projeto que cria vida, planta rios e que permite que a floresta cresça.
Nada mais justo do que encerrar com frases do próprio Movimento Sem Terra:
“Por Terra, Arte e Pão”
“Agroecologia: produzir alimentos, enfrentar a crise climática!”
*Marcos Morcego é comunicador político na Caverna do Morcego, articulista na Clio Operária (e um dos apresentadores da Barricada Vermelha, nosso programa jornalístico) e trabalhador da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Militante, pesquisador sobre identidade e território e estudante de ciências sociais.
Referências
[4] Pedagogia do Movimento Sem Terra. Roseli Salete Caldart. Expressão Popular;
[5] Faço uma breve fala sobre isso na mesa sobre Mark Fisher e o desejo pós-capitalista: <Do realismo capitalista ao desejo pós-capitalista em Mark Fisher - YouTube>;
[6] A conquista do pão. Piotr Kropotkin. Biblioteca Terra Livre;
[7] Quilombos: resistência ao escravismo. Clóvis Moura. Expressão Popular;
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