Prisão e revolução de George Jackson
- Vinicius Souza Fernandes da Silva 
- 21 de dez. de 2024
- 31 min de leitura
Introdução por Paula Santos de Jesus*
Tradução por Vinicius Souza Fernandes da Silva**

Querido/a leitor/a,
Assim como na carta de George, início essa introdução com um diálogo. Me direcionando à vocês que a partir de então, entrarão em contato com uma das escritas revolucionárias do homem que preso injustamente - por ser negro -, teve sua existência visceralmente lesionada por um sistema racista, fascista e capitalista. Essa escrita é um poderoso testemunho sobre a opressão racial, econômica e política enfrentada pelos negros nos Estados Unidos. Datada de 1970, durante seu encarceramento, a carta reflete a dor de uma memória carregada pelas cicatrizes da exploração e do racismo. Jackson relaciona o sofrimento histórico da população negra ao capitalismo, compreendido por ele como uma das raízes da opressão, responsável por transformar a antiga, mas não distante, escravidão em uma nova forma de exploração econômica. Ao longo do texto, Jackson descreve como o sistema capitalista se sustenta pela exploração de populações marginalizadas, ligando o racismo estrutural ao imperialismo global e aos interesses econômicos das elites em diferentes contextos históricos e distintos cenários políticos e econômicos.
De maneira próxima à experiência concreta de muitos homens e mulheres negras da atualidade, ele narra sobre como as gerações anteriores vivenciaram traumas causados pela pobreza e pelo racismo, moldando uma experiência marcada pelo abandono e pela luta pela sobrevivência. Ao longo da narrativa, que objetiva correlacionar o sistema capitalista aos demais agentes do fascismo, principalmente ao racismo, Jackson critica o genocídio cultural e físico sofrido pelos negros, apontando como essa violência se perpetua por meio do controle estatal e da supressão de lideranças. Destaca a luta do movimento dos Panteras Negras como uma tentativa de romper com esse ciclo de exploração, alertando para as consequências da destruição desses líderes como uma das estratégias mais antigas e permanentes do sistema contra e resistência negra. “Eles vem ‘matando todos os negros’ há cerca de cinco séculos e continuam matando, mas ainda estou vivo. Eu devo ser o homem morto mais teimoso do universo.”
Além de todas as análises políticas que versa, George traz aspectos das condições brutais da prisão, usadas como ferramentas para subjugar e desumanizar os negros, e reforça que apenas a destruição do sistema capitalista pode trazer verdadeira liberdade e justiça, declarando que “nosso principal inimigo deve ser identificado como o capitalismo.”
Escrita em um momento de intensa turbulência social, a carta reflete os desafios enfrentados pelos movimentos de resistência negra no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, quando figuras como Fred Hampton e Malcolm X foram assassinadas. A obra de Jackson, ressoa como um chamado à ação e à construção de uma outra proposta de futuro para as comunidades negras.
George nos entrega reflexões essenciais que contribuem com a análise acerca da correlação entre o racismo estrutural, a seletividade penal e o encarceramento em massa da população negra no Brasil à um passado colonial marcado pela escravidão. A lógica escravista, que por séculos se reatualiza afim de controlar corpos negros em prol de um progresso social e econômico racista, moldou as estruturas essenciais do país, perpetuando desigualdades e exclusões que persistem até a atualidade. O legado desse sistema brutal é evidente nas dinâmicas contemporâneas do sistema de justiça criminal brasileiro, que reforça um padrão de controle social seletivo e desproporcional sobre a população negra.
Durante o período escravista, as leis e instituições eram utilizadas como instrumentos para garantir o controle sobre os corpos negros e assegurar a manutenção da ordem econômica baseada no trabalho escravizado. A dita abolição da escravidão, em 1888, não representou uma ruptura efetiva com esse modelo de dominação, visto que não houve qualquer movimento do Estado brasileiro para construir possibilidades de acesso à direitos e reparações efetivas às violências vivenciadas. O capitalismo possibilitou que o racismo fosse naturalizado nas relações sociais e no ordenamento jurídico, perpetuando um sistema de exclusão que criminaliza a população negra. A análise de George lida sem a marcação territorial, se encaixa sublimemente em diversos contextos Brasileiros, ainda que na mesma época de sua escrita. Por óbvio as tensões raciais são estabelecidas conforme o território e sua cultura, entretanto a identificação entre os distintos cenários parte de um mesmo ponto, o racismo.
No contexto contemporâneo, o racismo estrutural manifesta-se no funcionamento do sistema penal brasileiro, que seleciona e pune desproporcionalmente pessoas negras. Segundo dados de 2023, analisados e divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública a maioria da população carcerária no Brasil é composta por negros, que representam cerca de 70% dos presos, mesmo que correspondam a 56,7% da população total do país (IBGE, 2024). Esse fenômeno é resultado de uma seletividade penal que opera desde as ações dos agentes de segurança pública nas ruas até a aplicação de sentenças, priorizando a repressão de crimes cometidos por indivíduos pertencentes às camadas mais vulnerabilizadas da sociedade.
A ausência de políticas públicas eficazes para combater as desigualdades herdadas do período escravista mantém a população negra em situação de vulnerabilidade, tornando-a mais suscetível à violência policial e à prisão. O Estado, que deveria garantir direitos e promover a cidadania, atua, especialmente para pessoas negras e trabalhadoras, como agente repressor, aprofundando as condições de risco social. Essa dinâmica reflete o papel histórico da institucionalidade, que desde a escravidão operou como ferramenta para sustentar as hierarquias raciais e sociais e, como no caso de George, para coibir a ampliação de teorias revolucionárias propagadas por pessoas negras evidenciam a relação entre todos os sistemas de opressão utilizados pelos fascistas atuais.
A manutenção dessas práticas revela a necessidade urgente de uma transformação estrutural que promova igualdade racial, de fim ao o sistema penal e enfrente o racismo em todas as suas dimensões. Sem isso, o país continuará reproduzindo as mesmas lógicas de exclusão e violência que marcam sua história.
A análise das condições de opressão racial descritas na carta de George Jackson e a reflexão sobre o racismo estrutural atualmente revelam como a herança do sistema escravista moldou as dinâmicas de exclusão e controle social nas Américas. Ambas narrativas evidenciam o quanto o racismo não se restringe à uma questão individual ou própria de um território, mas estrutural e dinâmico, impregnado nas instituições e práticas sociais.
George Jackson, com sensibilidade e fazendo justo uso de sua fúria negra, denuncia como o capitalismo e o fascismo operaram historicamente para explorar e subjugar a população negra, utilizando o sistema penal como ferramenta cruel de controle e silenciamento. Essa realidade ecoa no Brasil contemporâneo, onde permanece funcionando como extensão do controle racial. Assim como nos Estados Unidos, o sistema de justiça criminal brasileiro criminaliza e pune desproporcionalmente indivíduos negros, reforçando uma lógica histórica de controle e genocídio iniciada no colonialismo.
“A vida bandida é sem futuro, Sua cara fica branca desse lado do muro. Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do Inferno com moral, um dia no Carandiru, não, ele é só mais um… Comendo rango azedo com pneumonia” (RACIONAIS, 1997). Ainda que em frases e narrativas distintas, a angústia trazida pelo aprisionamento, também escrita por meio de carta de um dos detentos que vivenciou o massacre do Carandiru, em diário de um detento, encontra relação com o escrito por Jackson sobre San Quintin em janeiro “é a pior coisa que pode te acontecer. Faz frio quando você não tem roupas adequadas; é úmido e sombrio. Os maciços muros verde-amarelados que cercam o pátio superior têm entre dezoito e vinte metros de altura. Eles te fazem pensar que sua condição é permanente.”
É por essa condição de crueldade e violência, vinculada à processos complementares de opressão e genocídio fora das celas, que o pensamento do homem negro revolucionário das américas se encontra. Para George “o mundo deve a cada um de nós a subsistência desde o dia em que nascemos”, assim como para Pedro Paulo ainda há uma dívida em aberto pois, segundo ele, quando se trata de reparação, “eu quero é mais, quero até sua alma”.
Os paralelos entre as experiências nos dois contextos destacam que a luta contra o racismo e a desigualdade precisa ser radical e estrutural. As críticas de Jackson ao capitalismo e à opressão racial apontam para a necessidade de repensar as bases econômicas e políticas que sustentam a exploração e a marginalização. No Brasil, enfrentar o racismo estrutural implica não apenas em acabar com o sistema penal, mas também reverter as desigualdades históricas deixadas pela escravidão.
Desse modo, as reflexões de Jackson e a realidade brasileira contemporânea convergem em um ponto essencial: a transformação das estruturas de poder é indispensável para superar as desigualdades raciais. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a luta por justiça racial exige o rompimento com os sistemas que perpetuam o controle, a exploração e a exclusão das populações negras, promovendo a construção de, finalmente, um futuro de verdadeira igualdade e liberdade.
Por fim, lhes entrego uma última prévia das sensiveis e furiosas palavras de George Jackson ao longo da carta, lembrem-se, pessoas negras, que “quando eu me rebelo, a escravidão morre comigo. Me recuso a retornar a ela. É nesse ato de recusa que minha vida se fundamenta.”
Querida Fay[1]
Por razões bastante óbvias, voltar ao passado me causa muita dor…
Como um indivíduo, como um homem da nossa raça, tenho somente as dignas cicatrizes dos duros anos passados, para demonstrar que não me deixo morrer no leito doente em razão do que me causaram tantas vezes. Eu aprendi a lição do passado e também tentei esquece-la.
Bebi intensamente em cisternas cheia de fel, nadei contra a corrente dos becos sangrentos da América do Norte fascista e urbana, eu esfreguei meu nariz na merda; a cota de ódio com a qual eu me armei é imensa; até tentei esquecer e fingir. É esse o mecanismo de defesa dos homens negros. Mas não funcionou para mim. Pode acontecer somente comigo, mas suspeito que forma parte da dolorosa condição negra que os momentos realmente ruins se registram de forma clara e permanentemente, na mente, enquanto que os breves momentos de satisfação se perdem de imediato, de modo que esse pesadelo sinistro permanece suspenso sobre nós. Minha memória é quase perfeita; nem sequer o tempo consegue destruir as minhas recordações. Me lembro até mesmo dos meus primeiros golpes; eu vivi através da paisagem, e eu morria na paisagem, eu me deitei nas sepulturas, profundas e sem lápides, dos milhões de negros que fertilizam o solo norte-americano com seus cadáveres; o algodão e milho crescem em meu peito, “até a terceira ou quarta generação”, a décima, a centésima. Minha mente vai e vem através das inúmeras gerações, e eu sinto tudo o que eles sentiram, mas multiplicado. Não posso evitar; há muitas coisas que me recordo constantemente nas 23 horas em média que eu passo dentro dessa cela. Não passam 10 minutos sem que eu me lembre de algo.E nos intervalos especulo sobre a forma que esse algo tomará.
Aqui ouvimos, descontraídos, conversas que sugerem a melhor maneira de matar a todos os negros da nação e até ordem em que o genocídio deve ser realizado. O que me chama atenção não é o fato deles pensarem no genocídio. Eles vem “matando todos os negros” há cerca de cinco séculos e continuam matando, mas ainda estou vivo. Eu devo ser o homem morto mais teimoso do universo.
O que na realidade me afeta é que eles, ao fazerem seus planos, não pensam nem por um momento que eu vou resistir. Acreditam honestamente em toda essa merda? Sim, acreditam! Dizem exatamente o que pensam sobre nós: eles destruíram e condicionaram todos os nossos reflexos de ataque e defesa; que carecemos de uma região do cérebro na qual estão os princípios nos quais os homens apoiam a sua razão de existir. Não falam por acaso sobre campos de concentração? Não declaram por acaso que os campos não são erguidos aqui nos Estados Unidos porque os fascistas daqui são bons fascistas? E não porque seria impossível encarcerar os 30 milhões de resistentes, pensam ser porque eles são imperialistas muito humanos, fascistas inteligentes.
Pois bem, eles cometeram um grande erro. Recordo o dia de meu nascimento, o primeiro dia da minha vida. Foi durante a segunda (e mais destrutiva) guerra mundial, travada em nome do privilégio colonialista; aconteceu muito cedo, na manhã chuvosa de uma quarta-feira, no fim de setembro e em Chicago. Nasci em uma cama pequena dessas que são pregadas na parede, em um pequeno apartamento em Racine e Lake. Fui atendido pelo doutor Rogers. O ruído do trem explodia a cinco metros das nossas janelas (das únicas janelas), gritando sobre mim como um bansheé®agorero[2], pressagiando a ameaça iminente da dor e da morte. O primeiro movimento que focou em meus olhos, foi o de uma agressiva mão rosada que se moveu em arco na direção do meu traseiro preto. Detive a mão, mantendo a esquerda baixa, para me defender, enfiei meu afiado dedo direito no olho do dono da mão. Nasci com meus reflexos defensivos bem desenvolvidos.
A coisa vai ser: “Me mate se puder, imbecil” e não: “Me mate se assim desejar”.
Mas deixe eles fazerem os seus planos sob a suposição que “de tal escravo, tal filho”. O assunto não é comigo: eles tem facilitado minha defesa. Se um policial der as chaves a um grupo de prisioneiros de direita, eles abrirão uma por uma as nossas celas em toda a cadeia. Eles não querem nem enfrentar os homens que os prendem. Somente matando a todos nós poderão resolver seus problemas. Pensa um pouco: esse tipo de prisioneiros estão a poucas celas da minha. Nenhum deles nunca viveu verdadeiramente; em sua maior parte, tem sido mantidos pelo Estado em instituições como esta. Não esperam nada; absolutamente nada: da forma como veem as coisas, eles não tem nada a perder. Ao defender os ideais da direita e da ordem estabelecida, eles expressam afetuosamente a ideia de que noventa e nove anos e um obscuro dia na prisão, é a sua forma de se divertir. A maior parte deles entra e sai, e a maioria passa a vida toda aqui. Os períodos que passam fora são considerados como fugas. Simplesmente consideram mais natural os períodos que passam dentro da prisão do que os que passam fora; tem mais a ver com os seus gostos. Pois bem: eu compreendo a sua condição e sei como chegaram a ser dessa maneira. Honestamente, poderia simpatizar com eles se não tivessem tão equivocados, se não fossem tão estúpidos como para deixar que os porcos os usem. Parece a Alemanha dos anos 30 ou 40. E fora o que acontece mesmo. Posso me arriscar a dizer que não existe um único pedaço de título, nem uma ação, em poder de algum membro da família dos porcos que assassinaram Fred Hampton. Organizam marchas ao redor do país, marchas e demonstrações de apoio à destruição no Vietnã e depois ninguém está em condições de pagar a conta. Os fascistas, como parece, tem o seu modus operandis, para tratar as classes mais baixas; é o mesmo que têm sido aplicado ao longo da história, sob todos os sistemas de opressão. Eles fizeram com que as pessoas agissem contra os seus próprios interesses: pensa em todas as pequenas coisas com as quais eles nos compram, coisas inocentes que fazem com que alguns de nós se sintam culpados; pensa em como a gente favorecida tem se entregado ao Poder; considera o preso que recorre a Corte por um delito capital e que sem embargo, é partidário da pena de morte. Eu juro que escutei algo assim hoje. E os negros optam pelo capitalismo: é o exemplo mais antinatural que pode nos oferecer a história do homem contra si mesmo. Depois da Guerra Civil, a forma que a escravidão mudou: deixamos de ser bens familiares para nos submetermos a escravidão econômica, e fomos jogados no mercado de trabalho para competir em desvantagem com os brancos mais pobres. Desde então, nosso principal inimigo deve ser identificado como o capitalismo. O traficante de escravos era um proprietário, um homem de negócios da América do Norte capitalista; responsável pelos empregos, pelos salários, pelos preços yaté pelo controle das instituições e da cultura nacional. A infraestrutura capitalista da Europa dos Estados Unidos é responsável pelo saque de África e Ásia.
Foi o capitalismo que assassinou aqueles 30 milhões no Congo. Acredite em mim, o capitalismo europeu e anglo-americano nunca gastou balas e pólvora em outra coisa que não seja o princípio de lucros e perdas. Os homens, todos os homens que foram para a África e Ásia, os parasitas que subiram em elefantes com a intenção de saquear, merecem todos os insultos que fazem contra eles. Cada um deles merece a morte pelos seus crimes, igualmente merecem aqueles que ainda se encontram no Vietnã, Angola, União da África do Sul (Europa!). Mas não devemos permitir que os aspectos emocionais deste assunto, que espuma da superfície, obstruam nossa visão de toda a podridão. O capitalismo armou os navios, a livre iniciativa os lançou, a propriedade privada alimentou as tropas. O imperialismo nasceu ao mesmo tempo em que deixava de existir, oficialmente, o comércio de escravos, que a América do Norte, Inglaterra, França e Holanda se estabeleceram formalmente em solo Afro-asiático.
Depois da Revolução Industrial na Europa, novas atrações econômicas substituíram as antigas: a antiga escravidão foi substituída pela neoescravidão. O capitalismo, a “livre” iniciativa, a propriedade privada dos bens públicos, armou e lançou os navios e alimentou as tropas; deve ficar claro que foi a ânsia de lucro a única coisa que os inspirava. Foi o desejo de lucro que criou os subúrbios e as cidades satélites. O conceito de lucros e perdas evita reparos e manutenções. A livre iniciativa introduziu a cadeia de monopólios de lojas pela vizinhança. A ideia de propriedade privada dos bens e serviços que as pessoas necessitam para existir, colocou a legião de porcos brutos e armados sobre nossas cabeças, nossas casas, nossas ruas. Estão aqui para proteger os empresários!! A sua cadeia de lojas, a sua propriedade que fornece renda, aos seus bancos.
Se o empresário decide que não quer vender alimentos - digamos porque o dólar que tanto valorizam perdeu seus últimos trinta centavos de poder de compra - a propriedade privada proporcionará uma única possibilidade para quem tem fome e deseja comer: quebrar a lei. O Rato Gordo Daley[3] iria ordenar disparar contra todos os saqueadores.
O capitalismo negro: o negro contra si mesmo. A mais tola contradição de uma cadeia de contradições estúpidas. Outro último remédio sem dor: ser melhor fascista que o fascista. Bill Cosby atuando como agente do regime constituído: Que mensagem tem sido transmitida deste irmão de alma a nossos filhos? Essa mensagem foi certamente programada para uma mentalidade infantil. Este cachorro fugitivo em companhia de um fascista com uma causa, um lacaio do lacaio, tem transmitido os princípio de escravo a nossa juventude, a versão moderna do negro da casa. Não devemos descansar até que esta gente esteja em nosso poder. Eles são uma parte importante da repressão, mais ainda que o rato que informa aos porcos na vida real. Por acaso não estão dizendo aos nossos filhos que é muito romântico ser um cão fugitivo? Os meninos estão tão ansiosos para ver o negro macho disparar sua pistola e dar socos que não podem evitar sentir-se identificados com seu personagem. De maneira que primeiro nos voltam contra nós mesmos, impedindo toda possibilidade de confiança, então o fascismo toma qualquer força que possa ser dividida e a converte em uma divisão verdadeira: racismo, nacionalismo, religiões.
Tem a Spic, Dafo, Jew, Jap, Chink, Gook[4] e Pineapple e o ônibus negro que representa as nações unidas de África. Todo se baseia como é fácil persuadir o homem insignificante que jamais matou alguém, dizendo a ele que se ele entrar no exército vai viajar pelo mundo, um preço baixo para assassinar um gook, claro que não se trata de matar um homem, somente: “polacos”, “comedores de sapos”, “choucrouts”.
Tanta infâmia aconteceu por volta dos anos 30. Pessoas de certos grupos gostam de esquecer, mas quando qualquer referência a este período escapa, é através de epítetos defensivos como “antiquado”, “socialismo simples à moda antiga” e “fora de tempo”; a moda não me preocupa, estou atrás dos fatos, e os fatos estabelecem que ninguém, absolutamente ninguém, no mundo Ocidental, e muito poucos no resto do mundo (isso inclui até mesmo aqueles que nasceram ontem), escapou ao efeito brutal daquele momento em que o capitalismo entrou na Depressão[5]. O golpe afetou todas as nações da terra. Até mesmo a Rússia, que não tinha uma bolsa de valores, consequentemente, um ciclo de comércio, resultou em ser afetada: em primeiro lugar, pela guerra se criou e cresceu devido a busca por estabelecer a “boa” marcha da maquinaria, e em segundo lugar o efeito que teve a quebra da bolsa para outra nações com quem a Rússia deveria manter relações comerciais e negociar. E como o capitalismo internacional estava atingindo o seu nível máximo de expansão externa, não houve território africano, asiático ou latino que não sofreu as consequências da Depressão. Todas as sociedades do mundo que viviam de uma economia monetária, foram atrapalhados pela crise. Se houver alguma dúvida de que a influência da Depressão pode ser observada até hoje, basta rastrear seus efeitos na mentalidade atual para dissipá-la. Ou todos os povos do mundo, todos de uma vez, sofreram um ataque de cretinismo hereditário, ou trata-se, como afirmo, da “mão invisível" de Adam Smith, porque a antologia entre uma época e outra não poderia ser mais exata. E me refiro ao cretinismo em sua acepção patológica: uma deficiência congênita das secreções da glândula tireoide, que ocasiona deformidade e idiotia. As leis da causalidade vinculam a Depressão com a Segunda Guerra Mundial. O crescimento do poder nazista na Europa pode ser atribuído à Depressão. Os fascistas (WASP)[6] dos EUA desejavam secretamente a guerra com o Japão para estimular a demanda e controlar o desemprego. O silogismo é perfeito. Resta analisar a condição dos judeus que sobreviveram na Europa, e seria necessário fazer o mesmo com o povo de Hiroshima e Nagasaki. Mas não devemos isolar grupos. A causalidade cria uma cadeia para todos, inevitavelmente com o passado. Hoje não existiria um único justo, se seus pais não tivessem morrido de fome nesse período ou se tivessem sucumbido à armadilha fascista, que pretendia distrair a classe operária da realidade econômica da luta de classes. Os nazistas se preocuparam em convencer as classes baixas alemãs e também outros grupos nacionalistas europeus de que seus problemas econômicos não se deviam à aplicação de princípios errados, mas à existência de judeus dentro do sistema e à escassez de mercados (colônias). A intenção óbvia era opor dois setores da classe baixa: o alemão oprimido contra o judeu pobre, em vez do alemão explorado contra a classe alta privilegiada da Alemanha
O fascista americano usou milhares de planos semelhantes, manobras de dilação para evitar que o povo questionasse a validade dos princípios sobre os quais o capitalismo se apoia; conseguiu colocar o povo contra si mesmo, povo contra o povo, um povo contra outros grupos populares. Sempre promoverão a competição (enquanto eles praticam alianças); nossa divisão, nossa mútua desconfiança, nosso sentimento de solidão, servem aos seus propósitos: criar algo que está nas antípodas do amor.
O objetivo principal da organização fascista é proteger o capitalismo, por meio da destruição da consciência, da confiança e da unidade da classe trabalhadora. Meu pai tem hoje cerca de quarenta anos, e há trinta e cinco ele vivia seus anos mais formativos. Era um filho da Grande Depressão. Quero que preste atenção — para referências futuras— ao fato de que enfatizo e faço uma diferença ao falar da Grande Depressão. Houve muitas outras depressões internacionais, nacionais e regionais durante o período histórico relacionado a este comentário.
Hoje em dia, milhões de negros da geração do meu pai continuam vivos. São produto de um meio totalmente deprimido. Todos os homens viveram sempre sob a mais terrível das incertezas; nenhum deles foi capaz de compreender que uma mórbida privação econômica, um uso enorme e ultrajante, estava nos alicerces das suas experiências.
Meu pai desenvolveu seu temperamento, suas convenções, convicções, traços e estilo de vida, a partir de uma situação que começou com o abandono. Sua mãe o deixou, a ele e aos seus irmãos mais velhos, à beira de um desses grandes riachos, em St. Louis East. Cresceram nas ruas. Depois, em uma fazenda em algum lugar da Louisiana. Este irmão — meu pai — não teve educação formal de nenhuma espécie. Mais tarde, aprendeu por si mesmo as coisas essenciais. Sozinho, na mais hostil das selvas da terra, governada pelo rei das feras, ele deve enfrentar a agonia prolongada de uma morte sangrenta.
Sozinho, no momento mais selvagem da história, sem armas e vestindo uma pele negra que deve esconder. Eu amo este irmão — meu pai, e quando uso a palavra amor, não estou fazendo retórica. Minha intenção é expressar um impulso desenfreado e radiante, que vem da região mais profunda da minha alma; algo inalterável que eu nunca questionei. Mas ninguém pode passar pelas provações que meu pai passou sem sofrer o castigo da psicose.
É o preço para sobreviver. Posso me arriscar a afirmar que não há irmãos dessa geração com boa saúde, absolutamente nenhum.
Este irmão chegou à melhor idade da vida sem nunca ter demonstrado, na minha presença (ou diante de outras pessoas que eu conheça), qualquer manifestação aberta de verdadeira sensibilidade, afeto ou sentimentos. Viveu toda sua vida em estado de choque. Nada pode tocá-lo agora, sua calma é completa, sua imunidade à dor é total. Quando consigo obter um olhar fixo dele, o que não acontece frequentemente, pois quando seus olhos não estão fechados, estão protegidos por uma sombra, observo em seu rosto a máscara inexplicável de um zoom-bie.
Mas ele deve ter nos amado, tenho certeza disso. Parte do princípio do novo escravo, do escravo moderno, que tem os meios para ser livre e para se mover de um lado para o outro, é escapar de qualquer situação que se torne muito difícil. Mas ele ficou conosco; trabalhou dezesseis horas por dia, depois que comia, se banhava e dormia por um tempo. Nunca teve mais de dois pares de sapatos em toda a sua vida, e no tempo em que vivi com ele, nunca teve mais de um terno, nunca tomou uma única bebida, nunca visitou um clube noturno, não expressou nenhuma afeição por tais coisas, e nunca nos fez saber disso: jamais esperou que fosse destacado o fato de que ele estava nos entregando todo o esforço e atividade vital que conseguiu arrancar da monstruosa engrenagem. Fomos nós, eu com toda a certeza, quem mais sofreu por aquela parte que a engrenagem absorveu; seu espírito, ferido de morte, por um mundo que outros haviam criado.
E, no entanto, nenhum de nós fez um verdadeiro esforço para ajudá-lo a suportar esta vida. Claro, como se pode consolar um homem quando ele se mostra inatingível?
Ele foi me visitar quando eu estava em San Quintín[7]. Estava perto dos quarenta anos, naquela época; a idade em que o homem se encontra plenamente desenvolvido. Eu já havia decidido me aproximar do meu pai, obrigá-lo, com minha dialética revolucionária, a questionar algumas dessas barreiras mentais que ele mesmo havia erguido para proteger seu corpo contra o que lhe parecia ser um inimigo indefinível e onipresente. Um inimigo que o deixaria padecer de fome, que o exporia aos elementos desenfreados ou o acorrentaria; que encarceraria seu corpo, o espancaria, o rasgaria em tiras, o penduraria, o eletrocutaria e o envenenaria com gás. Eu precisava fazê-lo compreender que, embora tivesse preservado seu corpo, isso havia sido conquistado ao terrível preço de entregar sua mente. Eu sentia que podia impor a explosiva doutrina da autodeterminação (alcançada através do governo do povo e da cultura revolucionária) ao que restava de sua inteligência; que poderia trazê-lo de volta ao mundo real e apontar-lhe seus verdadeiros inimigos; se eu conseguisse forçá-lo à catarse revolucionária de Fanon, teria prestado um bom serviço a ele, ao povo e à obrigação histórica
San Quintín estava em temporada de motins. Era o começo de janeiro de 1967. Os porcos já haviam passado três meses dedicados ao saque, às revistas e à destruição em nossas celas, que eram invadidas a qualquer hora do dia ou da noite pelo grupo de selvagens: eles te acordam, te espancam, te revistam até a pele e te deixam esperando no corredor, nu, enquanto destroem os poucos pertences pessoais que você possui. Esse tratamento, a terapia do medo, no entanto, não era aplicado a todos; alguns chicanos protegidos pelas drogas e alguns brancos, protegidos por atividades de extorsão, eram poupados. A maior parte desse tratamento recaía sobre nós. O terror reabilitador. porco novato deve passar por um período de aprendizado, um treinamento prático, no qual ele aprende as artes da Gestapo[8], toda a variedade de táticas de luta corpo a corpo que se espera que ele use no trabalho. Parte desse treinamento em regime de internato é ocupada por um curso intensivo de combate corpo a corpo, onde os porcos aprendem a usar o cassetete e o soco-inglês, a endurecer as mãos para praticar o karatê e a saber onde golpear um homem com essas mãos para obter o melhor (ou pior) efeito.
Os porcos novatos devem passar um período na esquadra dos selvagens antes de assumirem seus papeis específicos na granja de animais. Eles estão sempre ansiosos para testar suas novas manhas — ‘para ver se realmente funcionam’ —; sempre somos obrigados a fazer algo para reagir a seus golpes, e assim demonstrar que a violência é uma arma de dois gumes. Isso precisava ser feito pelo menos uma vez por ano, ou acabaríamos tão espancados e fraturados quanto um lutador de Boxe Tailandês antes de cumprirmos nossa pena. Os irmãos queriam protestar. O protesto habitual era a greve, a paralisação do trabalho, o fechamento das lojas de guloseimas onde são fabricados produtos industriais por dois centavos a hora. (Alguns recebem quatro centavos depois de seis meses de trabalho). Os interessados de fora, aqueles que lucram com essa exploração, não levam em conta as greves; isso significa que o capitão também não gosta delas, pois desencadeiam pressões sobre ele (que vêm das conexões políticas dos livres empresários externos).
Janeiro em San Quintín é a pior coisa que pode te acontecer. Faz frio quando você não tem roupas adequadas; é úmido e sombrio. Os maciços muros verde-amarelados que cercam o pátio superior têm entre dezoito e vinte metros de altura. Eles te fazem pensar que sua condição é permanente.
Na ocasião que quero relatar, meu pai havia dirigido sozinho, durante toda a noite, desde Los Angeles; das últimas quarenta e oito horas, ele havia dormido apenas duas.
Nós apertamos as mãos e começou a dialética. Ele me ouvia enquanto eu insultava o cão diabólico: o capitalismo. Ele não havia criado porcos e assassinado vietnamitas? Não havia devorado alguns de nós depois de matar de fome a maioria dos nossos? Não havia nos segregado em habitações que pareciam prisões, enquanto erguia hotéis de luxo e apartamentos que pareciam os Jardins da Babilônia, na mesma rua? Não havia construído um hospital e, logo depois, uma bomba? Não havia erguido uma escola e, ao mesmo tempo, um prostíbulo? Não havia construído um avião para vender um comprimido contra o enjoo? Por cada igreja que não construiu uma prisão? Por cada descoberta médica, não produziu pelo menos dez novos agentes biológicos de guerra? Não engrandeceu e depois diminuiu homens como Hunt e Hughes[8]?
Ele respondeu: “Sim, mas o que podemos fazer? São bastardos demais”. Seus olhos se obscureceram e sua mente se perdeu em uma regressão total, um retorno através do tempo, do espaço, da dor, do descaso: milhares de sonhos adiados, promessas quebradas, ambições esquecidas, passando por centenas de esperanças renovadas, até se chocar com o tempo em que era jovem e vagava pelo interior da Louisiana procurando algo para comer. Ele falou durante dez minutos sobre coisas que não pertenciam ao presente, sobre pessoas que eu não conhecia: ”Precisamos levar algo para a tia Bell”. Mencionou lugares que nunca havíamos visto juntos. Chamou-me duas vezes pelo nome do meu irmão. O choque foi tão forte que a única coisa que consegui fazer foi sentar e piscar. Esse era o mesmo homem que não levava nada a sério, o Negro prático de mente estável, o homem de rotina que nunca reclama, sereno, o cavalheiro de temperamento uniforme. Haviam-no conduzido até o abismo da loucura; e logo atrás da aparência branca, espreita a terrível e vingativa loucura negra. Muitos negros de sua geração ainda estão vivos, a geração da Grande Depressão, quando não era mais possível para um negro sequer ser servo. Até isso havia desaparecido. Os negros brigavam e matavam por empregos como porteiro, carregador, foguista, caçador de pérolas ou engraxate. Minha ira se inflama por eles: eu os perdoo, eu os compreendo, e se eles interromperem agora mesmo a colaboração com o inimigo fascista e apoiarem nossa revolução, com apenas um gesto de consentimento, nós esqueceremos e os perdoaremos por nos terem lançado nus em um mundo cruel e repulsivo.
As colônias negras dos EUA têm sido mantidas sob opressão desde o fim da Guerra Civil. Vivemos sob o regime regional desde o fim do sistema de meeiros. O início da nova escravidão foi marcado pelo desemprego e subemprego. Isso persiste até hoje. A Guerra Civil destruiu o aristocrata latifundiário. O ditador da classe agrária foi substituído pelo ditador da classe capitalista industrial. O neoescravista destruiu a plantação antieconômica e, sobre suas ruínas, construiu uma fábrica e milhares de subsidiárias para servir ao sistema. E como não tínhamos experiência além das técnicas agrícolas, que haviam se mostrado antieconômicas, os serviços subsidiários e as ocupações servis recaíram sobre nós. Somos uma cultura subsidiária, uma área oprimida dentro do sistema monstruoso que nos gerou. As outras quatro etapas do ciclo da economia capitalista são: recuperação, expansão, inflação e recessão. Será que já vivemos uma etapa de recuperação ou expansão? Somos afetados de forma adversa pelas tendências inflacionárias da economia global. Quem são os que mais sofrem quando os preços dos artigos de primeira necessidade sobem? Quando a economia matriz entra em inflação ou recessão, nós caímos em uma subdepressão. Quando ela entra em depressão, nós sucumbimos em um desespero total. A diferença entre o que a geração do meu pai passou durante a Grande Depressão e o que estamos passando hoje é apenas uma questão de grau. De vez em quando, podemos encontrar algum trabalho para fazer pelas estradas. Eles não podiam. Nós podemos ir para casa e pedir comida à Mamãe quando as coisas ficam difíceis. Eles não podiam fazer isso. Há seguro social e trabalhos domésticos para as mães hoje. Naquela época, não existia nada parecido com seguro social.
A depressão é um imperativo econômico. Faz parte do intrínseco. As colônias — mercados secundários — serão sempre áreas deprimidas, porque a demanda por trabalho diminui constantemente, ao mesmo tempo que os operários se especializam com o avanço da automação. Dessa forma, o colonizado, que não tem acesso à especialização, também não usufrui de uma modalidade socioeconômica.
Além disso, mesmo que nos fosse permitido aprender as novas técnicas, não avançaríamos muito. Não adiantaria, pois a demanda por trabalho tem um teto fixo. Esse teto vai diminuindo com cada avanço das técnicas de produção. Aprender novas técnicas serviria apenas para nos confrontarmos competitivamente com outros trabalhadores, em uma luta que não podemos e nem desejamos vencer. Não há vagas de trabalho nos esperando no mundo dos negócios, e de maneira nenhuma queremos usurpar essas vagas de outros trabalhadores: seria como se capitalizássemos com a energia do povo. Nosso inimigo é o capitalismo, e não há outro remédio contra ele senão destruí-lo. O sistema é incompatível com a criação de uma sociedade industrial e urbana moderna. O homem nasce acorrentado. O contrato atual entre governantes e governados perpetua esse encadeamento.
Os homens que detêm posições de comando devem uma distribuição equitativa de bens e privilégios aos homens que confiaram neles. Cada indivíduo nascido nas cidades norte-americanas deveria chegar a um mundo que garantisse todas as coisas necessárias para a sobrevivência. Os aspectos sociais de importância — a educação, o serviço médico, a alimentação, o abrigo e até as boas relações humanas — devem ser garantidos desde o nascimento. Isso tem sido afirmado em todas as sociedades civilizadas até agora. Por que um homem se deixa governar por outro? Qual outro propósito, senão o de assegurar o que prometem seus nomes, têm os ministérios da Saúde, da Educação e Bem-Estar, ou da Habitação e Desenvolvimento Urbano, etc.? Por que damos a esses homens poder sobre nós? Por que lhes damos nossos impostos? A troco de nada? Para que eles possam alegar que o mundo não deve nada aos nossos filhos? O mundo deve a cada um de nós a subsistência desde o dia em que nascemos. Se isso não for assim, não vale a pena falar de civilização, e podemos deixar de reconhecer a autoridade dos administradores. A evolução da grande sociedade moderna metropolitana completou nossa dependência em relação ao governo. Individualmente, não podemos nos alimentar nem alimentar nossos filhos. Não podemos treiná-los por nossos próprios meios, nem educá-los em casa. Não podemos organizar nosso próprio trabalho dentro da estrutura da cidade. Consequentemente, devemos permitir que existam homens especializados em coordenar essas atividades. Pagamos-lhes, damos-lhes glória e honras, e deixamos o controle de certos aspectos de nossas vidas, de modo que eles, em troca, cuidem de cada membro inútil do grupo social e trabalhem por ele até que ele não seja mais um incapaz, até que possa se sustentar por si mesmo e ofereça sua contribuição para a sociedade.
Se um homem nasce sem qualquer perspectiva, dentro da sociedade norte-americana, se a crença capitalista que afirma que “o mundo não te deve os meios de subsistência” for válido, o que fez a mãe do meu pai não teria nada de monstruoso. Se é verdade que organizar não é tarefa do governo, o fato de meu pai não ter encontrado ajuda até que pudesse ajudar a si mesmo não teria importância. Mas isso também significaria que somos parte de uma monstruosa contradição. E que não podemos continuar fingindo que somos mais civilizados do que um bando de mandris.
O que foi, então, que realmente destruiu o bem-estar do meu pai, o que condenou toda a sua geração a uma vida sem gratificações? O que tem trabalhado contra a minha geração desde o momento em que nascemos, através de cada dia, até o presente?
O capitalismo e o homem capitalista, destruidor de mundos, flagelo do povo. Ele não pode atender às nossas necessidades, não pode e não quer mudar e se adaptar às transformações da estrutura social.
As perdas mais trágicas foram as sofridas pelo homem negro. Não nos faria bem nos estendermos na narração dessas fatalidades: são incontáveis, e enumerá-las está além do nosso alcance. Mas nós, os que sobrevivemos, devemos nos estudar profundamente e nos perguntar por quê. O sistema se sustenta na competição: pela riqueza, pelos símbolos, pelos homens e pelos títulos; e o negro contra si mesmo, o negro contra os brancos e mestiços de classe baixa, uma competição virulenta, decapitadora e traiçoeiramente assassina: o estilo de vida norte-americano. Os fascistas cooperam. Os quatro poderes, um mórbido e solitário quadrilátero. Essa competição matou a confiança. Entre os homens negros, foi estabelecido um prêmio à desconfiança. Cada negro vê o outro negro como um competidor; o negro inteligente e prático é aquele a quem não importa nada sobre nenhum idiota vivente, o cínico que passou por cima de qualquer princípio que tenha encontrado por acaso. Não podemos viver se entendermos o amor sob a suposição de que quem o recebe vai usá-lo como uma arma contra nós.
Vamos começar de novo. Da próxima vez, vamos nos deixar ver, vamos parar de nos trair e vamos adicionar um pouco de confiança e amor.
E neste amor, não incluo aqueles que apoiam o capitalismo de alguma forma visível, ou aqueles que sentem que têm algo a perder com a sua destruição. São nossos inimigos irreconciliáveis. Nunca mais poderemos confiar em pessoas como Cosby, Glooves Davis, nem naquele outro negro, o velho motorista de ônibus, que testemunhou no julgamento contra Huey P. Newton. Todo homem que se levantar para falar em defesa do capitalismo deve ser derrubado.
Neste momento, nosso mal deve ser identificado com o homem capitalista e com sua monstruosa maquinaria, uma máquina insensível e suficientemente cruel para infligir as feridas programadas, no momento exato.
Nasci com um câncer extremo, uma chaga supurante e maligna que me ataca exatamente na região posterior dos olhos e se move para destruir minha tranquilidade. Ele me roubou meus vinte e oito anos. Nos roubou quase meio milênio. É o maior bandido de todos os tempos; você deve detê-lo agora mesmo.
Lembre-se das histórias que você leu sobre os outros animais de rebanho: o grande bisão, a rena americana.
O grande bisão ou búfalo americano é um animal de rebanho, um animal social, se preferir; nesse aspecto, ele é igual a nós. Somos animais sociais, precisamos de outros de nossa mesma espécie para nos sentirmos seguros. Muito poucos homens podem suportar o isolamento total. Para o homem comum, estar constantemente sozinho é uma tortura. O búfalo, a rena e outros animais são como companheiros, parentes, no sentido de que necessitam de companhia na maior parte do tempo. Precisam se tocar nos ombros e nas cabeças, gostam de esfregar os narizes. Nós nos damos as mãos, batemos palmas nas costas e unimos nossos lábios. De todos os povos do mundo, nós, negros, somos os que mais amamos a companhia dos outros, somos os mais gregários. Os animais sociais comem, dormem e viajam em grupo, e precisam dessa companhia para se sentirem seguros. Isso significa que também necessitam de líderes. Deduz-se logicamente que, se o búfalo come, dorme e se move em manadas, ele precisa de um coordenador; caso contrário, alguns dormiriam enquanto outros viajariam. Sem a facilidade de seguir um líder, em um momento de crise, a manada se dispersaria em cem direções diferentes. Por isso, o búfalo, por exemplo, incorporou totalmente essa necessidade de seguir o líder (assim como todos os animais sociais); se o líder de uma manada de renas perde o equilíbrio e despenca de um penhasco para a morte, é muito provável que toda a manada caia atrás dele. O caçador entendeu esse fenômeno. Os homens de rapina aprenderam com essa naturalidade com que surge o líder entre os animais sociais; perceberam que cada grupo produz naturalmente seu líder e que sobre esses líderes naturais repousa a responsabilidade de coordenar as atividades do grupo e organizá-lo para a sobrevivência. O caçador de búfalos sabia que, se conseguisse isolar e identificar o líder da manada e matá-lo primeiro, o restante do rebanho ficaria desamparado, à sua mercê, para ser morto quando ele achasse conveniente.
Nós, os negros, temos o mesmo problema que o búfalo, a mesma fraqueza; e o homem de rapina conhece muito bem essa nossa fraqueza. Huey P. Newton, Ahmed Evans, Bobby Seale e outros centenas de líderes negros serão assassinados, de acordo com o esquema fascista.
Uma espécie de seleção natural ao contrário: Medgar Evers, Malcolm X, Bobby Hutton, Brother Booker, W. L. Noland, M. L. King, Featherstone, Mark Clark e Fred Hampton são apenas alguns, entre tantos, que já seguiram o caminho do búfalo.
O efeito que essas reações da direita têm sobre nós segue moldes clássicos e poderia até fazer parte de um manual escolar de economia e política fascista. Assim que uma cabeça negra se levanta para denunciar as condições críticas da nossa existência, ela é decepada e pendurada nos tribunais ou na imprensa. Nossa resposta condicionada é uma esquizofrênica indiferença, o passo para trás, uma nostalgia por coisas que nunca existiram: “Oh, dias felizes... Oh, dias felizes... Oh, dias felizes”; auto-hipnose, alucinações.
O líder negro em potencial observa a penosa condição do rebanho negro: a corrupção, a preocupação impertinente, a aparente falta de aptidão para resolver a própria sobrevivência. Ele sabe que, se entregar ao negro médio um M-16, em uma semana esse irmão não terá nada além de um cassetete. Considera tudo isso, tudo o que pode observar no rebanho, pesa os possíveis riscos que correrá nas mãos do monstro fascista. E, naturalmente, decide seguir por conta própria, com o sentimento de que não pode nos ajudar porque é impossível fazê-lo; de que ele também deve tirar algum proveito desta existência. Esses são os “Negros bem-sucedidos” [em oposição aos “fracassados”]. Você os encontra nas pistas de corrida e nos campos de esportes, nos palcos, fazendo pose, brincando como crianças. E esperando os favores do mundo; são tão miseráveis quanto aqueles que chamam de fracassados.
Nós fomos colonizados pela economia branca fascista. Dela obtivemos essa estranha subcultura e as atitudes que perpetuam nossa condição. São essas atitudes que nos fazem nos entregar aos porcos da Klan. E ainda, em certas ocasiões, trabalhamos com o revólver para eles. Foi um negro que matou Fred Hampton; negros que trabalhavam para a CIA mataram Malcolm X. Os negros abundam nas folhas de pagamento de muitas forças policiais que o fascismo empregou para se proteger do povo. Essas atitudes subculturais fascistas são as que nos enviaram à Europa, à Ásia (um quarto das mortes no Vietnã são de negros) e até à África (o Congo, durante o atentado Simha para estabelecer um governo popular), para morrer por nada. Nos casos recentes da África e da Ásia, permitimos que o neoescravista nos usasse para escravizar o povo que amamos. Estamos tão confusos, somos tão estupidamente simples, que não apenas falhamos em distinguir o bem do mal, como também nos equivocamos ao delimitar o que é bom e o que é ruim para nós, especialmente no que diz respeito à colônia negra e à sua libertação.
A ominosa agência econômica do governo, cujo único propósito é nos escravizar ainda mais, nos conhecer em número e nos espionar, a agência negra que recebe subsídios do governo para se infiltrar entre nós e retardar a libertação, é aceita, e até mesmo convidada e bem-vinda por alguns. Enquanto isso, o grupo dos Panteras Negras é ignorado e forçado a buscar proteção junto ao povo. O Pantera Negra é nosso filho e irmão, o único que nunca teve medo. Ele não foi tão preguiçoso quanto os outros, nem tão limitado e restrito em sua visão das coisas. Se permitirmos que a máquina fascista destrua esses irmãos, nosso sonho de autodeterminação e de um verdadeiro controle sobre os fatores que influenciam nossa sobrevivência morrerá com eles, e as gerações futuras vão nos amaldiçoar e nos condenar por nossa covardia irresponsável. Eu tenho um irmão jovem e corajoso, a quem amo mais do que amo a mim mesmo, mas o entreguei à revolução. Aceito a possibilidade de sua eventual morte, assim como aceito a possibilidade da minha. Um momento de fraqueza, um deslize, um erro – e como somos os homens que não podem cometer nenhum – sairá o disparo que não perdoa. Aceito tudo isso como uma parte necessária da nossa vida. Não quero criar mais escravos negros. Nós temos um inimigo definido, que nos aceita apenas com base em uma relação entre senhor e escravo. Quando eu me rebelo, a escravidão morre comigo. Me recuso a retornar a ela. É nesse ato de recusa que minha vida se fundamenta.
Mamãe negra, você vai ter que parar de criar covardes: “Seja um bom menino”, “Você vai me deixar preocupada até a morte, garoto”, “Não confie nesses negros”, “Pare de deixar esses negros maus te guiarem”, “Ganhe um dólar, garoto”. Mamãe negra, a sua maneira de cuidar da sobrevivência de nossos filhos está ultrapassada, se essa sobrevivência tiver como preço a perda da condição de homens. O jovem membro do Partido dos Panteras Negras, nossa vanguarda, deve ser abraçado, protegido, deve-se permitir que ele faça o seu trabalho. Precisamos aprender com ele para ensiná-lo; muito em breve ele será um adulto, um filho e um irmão de quem poderemos nos orgulhar. Se ele vacilar, nós lhe daremos coragem; quando ele der um passo, nós daremos o passo com ele – dialética, comunhão em perfeita harmonia – e nunca mais, jamais, haverá outro caso como o de Fred Hampton.
George 17 de abril de 1970
* Paula Santos de Jesus é assistente social, da área de direitos humanos e gestão de política pública. Estuda e escreve sobre os temas de abolicionismo penal, sistema de justiça, direitos humanos e racismo.
** Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e articulista da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra).
[1] Fay Abrahams Stender (29 de março de 1932 – 19 de maio de 1980), foi uma advogada estadunidense, ativista pelos direitos da população carcerária, ficou conhecido por defender figuras como George Jackson e Huey P. Newton.
[2] Na Irlanda e na Escócia, um fantasma agourento é identificado com esse nome: seus lamentos, tonificados sob uma janela, anunciam a morte.
[3] Richard Joseph Daley (15 de maio de 1902 – 20 de dezembro de 1976), foi prefeito de Chicago e Presidente do Partido Democrata. Conhecido por, na Convenção Nacional Democrata de 1968, defender a forte repressão da política de Chicago contra manifestações de oposição à Guerra do Vietnã. Daley apoiou a ação policial sem restrição e foi flagrado proferindo falas racistas e antissemitas durante a Convenção ao manifestar apoio ação policial.
[4] Gírias racistas utilizadas pelos brancos estadunidenses para se referir a povos não brancos, o termo “gook” era utilizado na Guerra do Vietnã por soldados da Ku Klux Klan.
[5] A depressão refere-se a crise de 1929, quando a bolsa de valores de Nova York colapsou e levou a maior crise econômica da história do capitalismo e a sua primeira grande crise mundial. O resultado da crise foi a miséria generalizada pelos EUA e efeitos profundos em diversos países, pessoas faziam filas sem distribuição de alimentos, passaram a morar dentro dos seus carros com a suas famílias e o desemprego tomou completo descontrole.
[6] Acrônimo que significa Whites, Anglo-Saxons e Protestans (brancos, anglo-saxões e protestantes), usado para se referir a grupos como a Ku Klux Klan e indivíduos que se identificam como parte da identidade racista e genocida que formou a sociedade estadunidense.
[7] A Penitenciária Estadual de San Quentin é o maior complexo prisional da California, criado em 1852, possui o maior corredor da morte de prisão masculina dos Estados Unidos.
[8] Geheime Staatspolizei, conhecida como Gestapo, foi a polícia secreta do 3º Reich (Alemanha Nazista), conhecida pelas ações contraespionagem, tortura e perseguição a judeus e famílias que ajudavam a esconde-los. Foi um dos mais importantes órgãos da estrutura montada por Adolf Hitler e seus seguidores, não só dentro da Alemanha, mas nos territórios ocupados do resto da Europa.



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