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A tecnocracia do caos: gerencialismo e destruição da escola pública em São Paulo

Por Ricardo Normanha*


O final do ano letivo de 2025, momento propício para o encerramento e o balanço pedagógico, foi transformado em um cenário de terra arrasada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP), chefiada pelo empresário Renato Feder. Em um movimento que denota tanto desespero político, diante de um contexto de refluxo eleitoral para a extrema-direita, quanto desprezo pelo trabalho docente, a pasta publicou, em menos de 15 dias, um “pacotaço” com 18 resoluções e 3 portarias. Entre elas, destaca-se a Resolução SEDUC nº 160, de 28 de novembro de 2025, que redefine o Ensino Médio Técnico. Longe de serem meros ajustes administrativos, essas medidas consolidam um projeto de longa duração de deterioração da educação pública, operando sob uma lógica gerencialista que subordina a pedagogia a interesses privados e à lógica do mercado.


O eixo central desse projeto é a imposição de uma racionalidade empresarial e tecnicista, na qual a educação é tratada como mercadoria e o currículo como um produto fragmentado e flexibilizado de acordo com as exigências do mercado. Quando observamos a formação continuada dos docentes em exercício, o que vemos é que hoje, na rede estadual, a titulação acadêmica sólida — mestrados e doutorados — vale menos para a evolução funcional do que a realização de “cursinhos” em plataformas digitais da própria secretaria, como o Multiplica ou a Escola de Gestão. A lógica está em consonância com o processo histórico que desloca a noção de qualificação, baseada em certificações e diplomas, para a noção de competência, típica do paradigma neoliberal, que esvazia os conteúdos da formação dos trabalhadores e individualiza as responsabilidades pela própria formação e pelas trajetórias profissionais [1]. Essa lógica é confirmada por declarações recentes do governador de extrema-direita Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre a irrelevância dos diplomas de ensino superior.


Cria-se, portanto, um circuito fechado em que o professor é coagido a consumir produtos digitais de qualidade questionável, em detrimento de sua autonomia intelectual, apenas para não ser prejudicado em avaliações de desempenho punitivas que utilizam, inclusive, critérios retroativos, como o bônus do ano anterior.


Essa lógica de privatização avança agressivamente sobre o currículo escolar por meio da Resolução SEDUC nº 160/2025. O documento oficializa a entrega de partes substanciais da formação dos estudantes do Ensino Médio Técnico Integrado a entes privados, por meio de “instituições parceiras”. O artigo 9º dessa resolução chega ao cúmulo de fragmentar a vida escolar do aluno, exigindo duas matrículas distintas: uma para a Formação Geral Básica na escola estadual e outra para o Itinerário Técnico na instituição parceira (como o Sistema S). A medida representa uma renovação da política de formação profissional dos anos 1930, que instituiu a transferência da educação profissional para o setor privado [2]. Na prática, isso retira a centralidade da escola pública, transformando-a em um mero entreposto burocrático que terceiriza a formação técnica, muitas vezes deslocando o aluno para fora do ambiente escolar.


O impacto na organização do trabalho pedagógico é devastador e propositalmente desorganizador. O “pacotaço” inclui medidas que esvaziam o pensamento crítico, deslocando componentes curriculares fundamentais, como Filosofia e Sociologia, da Formação Geral Básica para os Itinerários Formativos. Essa manobra, denunciada por especialistas e sindicatos, fere o espírito da legislação federal e reduz o acesso dos estudantes das classes populares ao conhecimento humanístico, oferecendo, em troca, um ensino tecnicista e fragmentado. As novas matrizes curriculares, apresentadas nos anexos da Resolução 160, comprimem a formação geral em favor de uma carga horária técnica rígida e de componentes de “projeto de vida”, muitas vezes desconectados da realidade material dos alunos.


Além disso, a gestão substitui o planejamento pedagógico real por burocracia de controle. A criação do “Plano de Melhoria de Convivência Escolar” (Resolução 149), embora carregue um nome nobre, tende a se tornar mais um instrumento de preenchimento de formulários, que não resolve a violência estrutural nem a falta de verbas de manutenção nas escolas, muitas das quais se encontram em ruínas.


O resultado final é a degradação profunda do trabalho docente. O secretário, com um discurso polido sobre autonomia e um “sorriso no rosto”, desfere golpes mortais nos professores. Essa violência institucional reflete-se tragicamente na saúde da categoria: entre janeiro e setembro de 2025, o estado de São Paulo registrou uma média alarmante de 95 afastamentos diários de professores por motivos de saúde mental, totalizando mais de 25 mil licenças médicas no período [3]. O adoecimento em massa não é um acaso, mas sintoma de uma gestão tóxica, simbolizada pelo caso do professor e gestor Tarsis Campos [4], de Sorocaba. Reconhecido por sua competência e humanidade, Tarsis teve sua saúde deteriorada em meio a denúncias de pressão, perseguição e instabilidade profissional, vindo a falecer em um contexto que seus colegas descrevem como de “legalidade sem humanidade”. O alinhamento exigido pela Secretaria parece custar, literalmente, a vida de quem educa. Nesse cenário de exaustão, a incerteza gerada pela publicação abrupta dessas normas e resoluções no apagar das luzes de 2025 atua como um agravante final: inviabiliza o planejamento para 2026 e instaura o caos na atribuição de aulas, desorganizando a rede e aprofundando o adoecimento da categoria.


Portanto, as resoluções de dezembro de 2025 são peças de um projeto político deliberado de desmonte. Ao substituir a pedagogia pelo gerencialismo, a escola pública pela parceria privada e ao colocar o mercado como ente soberano da regulação das relações sociais, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) compromete o futuro de milhões de estudantes e a dignidade do magistério. Cabe à comunidade escolar e à sociedade civil a resistência e a judicialização dessas medidas, antes que a escola pública paulista seja definitivamente reduzida a uma plataforma de negócios.

* Ricardo Normanha é pai, sociólogo, professor e pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC). 


REFERÊNCIAS


[1] ROPÉ, Françoise; TANGUY, Lucie. Saberes e competências - O uso de tais noções na escola e na empresa. Campinas: Papirus, 1997.

[2] ARAÚJO, T. P.; LIMA, R. A. Formação profissional no Brasil: revisão crítica, estágio atual e perspectivas. Estudos Avançados. V. 28, n. 18. 2014. Disponível em https://www.scielo.br/j/ea/a/N3VttP4xNz3TfzN8QMcGJGb/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 7 dez. 2025.

[3] Estado de SP tem média de 95 afastamentos diários de professores por saúde mental. G1 - São Paulo. 17 nov. 2025. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/11/17/estado-de-sp-tem-media-de-95-afastamentos-diarios-de-professores-por-saude-mental.ghtml. Acesso em 07 dez. 2025.

[4] ROSA, João M. Morte de professor sorocabano expõe tensão e denúncias sobre política educacional paulista. Portal Porque - Sorocaba e Região. 1 dez. 2025. Disponível em https://www.portalporque.com.br/sorocaba-regiao/morte-de-professor-sorocabano-expoe-tensao-e-denuncias-sobre-politica-educacional-paulista/. Acesso em 7 dez. 2025. 


 
 
 

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