A ilusão do acesso
- Fátima Machado
- 13 de out.
- 4 min de leitura
Por Fátima Machado*

Cresce a EaD; encolhe o Ensino Superior público
Em setembro, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou os dados do Censo da Educação Superior de 2024 com um convite à celebração da marca histórica de 10 milhões de estudantes e uma espécie de beatificação das novas tecnologias, coroando a EaD como possibilitadora desse acesso ampliado. A divulgação oficial da seção do Ministério da Educação no site do Governo Federal destaca a fala de Manuel Palacios, presidente do Inep, que celebra os índices e os meios: “uma parcela importante dessa população teve acesso à educação superior por meio de novas tecnologias. A educação a distância (EaD) proporcionou a ampliação da oferta e atendeu estudantes que, de outra forma, não teriam acesso à educação superior”[1].
A aparência de avanço democrático na educação brasileira, no entanto, requer uma análise cuidadosa da totalidade e da essencialidade dos processos. O dado mais emblemático dessa expansão é que, pela primeira vez, mais da metade dessas matrículas (50,7%) são em cursos EaD. A modalidade inflou exponencialmente na última década, com um crescimento de 286,7%, enquanto o ensino presencial encolheu 22,3%, segundo o Censo da Educação Superior 2024 (Inep/MEC).
O entumecimento da Educação Superior a Distância está longe de representar, por si só, um processo real de democratização. Em sua essência, há uma miríade de movimentos orquestrados pelos tentáculos da financeirização da educação no Brasil. Com o estrangulamento orçamentário do financiamento para o ensino superior público e com o impulso dos grandes conglomerados educacionais privados, das Big Techs e das parcerias público-privadas, os floreios retóricos de inovação, flexibilização, modernização e democratização do acesso parecem cumprir uma dupla função:
legitimar a violenta penetração da iniciativa privada no campo educacional; e
afastar a educação superior de seu lugar constitucional como direito de todos e dever do Estado.
Não se trata de visões tecnofóbicas, tampouco de refutar as potencialidades da EaD ou do uso das tecnologias na educação. O convite é para um olhar crítico que permita a apreensão da essencialidade dos processos sociais, políticos, econômicos e históricos: as condições concretas de tal expansão estão diretamente ligadas aos interesses do capital, às mudanças no mundo do trabalho, à natureza dos interesses das frações de classe que constituem e se aliam às esferas governamentais e, não menos importante, aos movimentos de luta e resistência contra-hegemônicos.
O uso massificado das tecnologias, associado à institucionalização e à expansão vertiginosa da EaD — especialmente no ensino superior — tende a esvaziar de sentido o trabalho docente, a minguar o papel da universidade e a esfarelar a formação dos sujeitos em suas respectivas áreas, sem promover, de fato, democratização e valorização do conhecimento, da ciência, da pesquisa acadêmica, da extensão e da docência.
Nesse contexto em que a educação superior fica “vendida”, perpetuam-se os sentidos hegemônicos que refletem e legitimam a lógica do capital, marcando processos de substituição tecnológica do trabalho docente (Barreto, 2016)[2] em sua expressão mais radical: docentes assumem papéis secundários, periféricos e distantes da dimensão intelectual da atividade docente. Além disso, a precarização docente tem determinantes emblemáticos da superexploração do trabalho na modalidade: nas instituições privadas, um único professor é responsável, em média, por 170 estudantes na modalidade a distância, enquanto, nas instituições públicas, essa média é significativamente menor, com 32 estudantes por docente.
Em 2025, com a promulgação do novo Marco Regulatório da EaD[3] (Decreto nº 12.456/2025), o processo tende a se intensificar. O decreto redefine os formatos de oferta, flexibilizando ainda mais os limites entre o ensino presencial, semipresencial e a distância. A introdução oficial da categoria “semipresencial”, com apenas 30% de atividades físicas obrigatórias, e a permissão para que cursos a distância incluam apenas 10% de carga presencial evidenciam a transformação da EaD na norma, e não na exceção.
O ponto é que a expansão acelerada da EaD no Brasil precisa ser compreendida como parte de um projeto mais amplo de reconfiguração do ensino superior sob a cooptação da trama neoliberal. Trata-se de um movimento que articula políticas públicas, interesses privados e uma concepção de educação regida, sustentada, alimentada e a serviço do capital. As rupturas e resistências urgem pelo acesso à universidade com permanência, com formação crítica, com valorização do trabalho docente e com o fortalecimento da universidade pública, da pesquisa e da produção de conhecimento.
Afinal, qual o papel da universidade nessas (re)configurações que prezam por formações aligeiradas e utilitaristas, orientadas à conformação dos sujeitos às dinâmicas do capital? A quem interessa um modelo de universidade que forma, por exemplo, professores e professoras a distância — as licenciaturas lideram o número de matriculados e concluintes no formato EaD —, com currículos fragmentados e pouco vínculo com pesquisa e produção de conhecimento? Quais os impactos dessa lógica para a educação básica e para o próprio futuro da universidade brasileira? Em que medida a centralidade posta no uso das tecnologias sob uma ótica salvacionista conclama a precarização do trabalho e da carreira docente?
Que essas inquietações sigam abrindo nossos olhos para leituras atentas das políticas e formulações no campo da educação e que pavimentem caminhos para a composição de movimentos de luta contra a asfixia da educação pública, a secundarização da pesquisa acadêmica, o esvaziamento da formação da classe trabalhadora e a superexploração tenebrosa do trabalho docente.
Leia também na Clio: A luta jurídica como brecha na trincheira: resistência e limites na defesa da educação pública, por Ricardo Normanha
*Fátima Machado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ e Mestre em Linguística pela mesma instituição. Pesquisa os usos das tecnologias na educação, políticas educacionais e curriculares com ênfase na díade trabalho-formação docente.
Referências:
[1] INEP — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 2025. Inep divulga resultado do Censo Superior 2024. 22 de setembro.https://www.gov.br/inep/pt-br/centrais-de-conteudo/noticias/censo-da-educacao-superior/inep-divulga-resultado-do-censo-superior-2024
[2] BARRETO, R. G. A substituição tecnológica na padronização do ensino. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA RED ESTRADO, 11., 2016, Cidade do México. Movimientos Pedagógicos y Trabajo Docente en tiempos de estandarización. p. 1-16. ISSN 2219-6854.
[3] BRASIL. Decreto nº 12.456, de 19 de maio de 2025. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 maio de 2025. Seção 1, p. 5.



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