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Sydney Sweeney e a polêmica peça comercial da American Eagle

Por Rafael Torres*


Sydney Sweeney, a representação da estética perfeita norte-americana, a materialização das células da branquitude e, honestamente, uma atriz bem mediana, estreou a propaganda da American Eagle sobre seus novos jeans. Na peça comercial, Sweeney exalta as roupas da marca e, em seguida, um texto é apresentado ao telespectador: “Sydney Sweeney has great jeans”. As palavras dizem mais do que podem representar; é necessário entender as semânticas. American Eagle, em tradução livre, significa “águia americana”, a águia que é símbolo dos Estados Unidos, o que não surpreende em nada uma marca norte-americana ressaltar o orgulho patriótico dos estadunidenses. Sweeney, atriz das séries White Lotus e Euphoria – esta última alvo de enorme polêmica por sexualizar a adolescência e ter como um de seus produtores Drake, o rapper que foi acusado diversas vezes de se relacionar com menores de idade –, é branca, de olhos azuis, loira e, obviamente, norte-americana. A junção da marca com a atriz já é, semioticamente, bastante representativa. Mas é preciso ir além. A fonética da palavra jeans em inglês é muito próxima da palavra genes, que, em português, tem a mesma grafia. Portanto, aquele slogan do comercial se aproxima muito de “Sydney Sweeney has great genes”, que pode ser traduzido por “Sydney Sweeney tem ótimos genes”. Sabemos a quais ótimos genes o comercial se refere.


Linguagem e formação de subjetividade


No cotidiano, é muito difícil aplicar a tarefa de analisar as palavras, frases e construções textuais que utilizamos. Porém, as junções de palavras para formar frases, as inflexões, os termos da linguagem expõem os valores da sociedade que construiu e mantém vivos esses valores, e uma das formas de afirmação destes, ainda que inconscientemente – na maior parte do tempo –, é através da língua. Leandro Konder defende que o campo da linguagem é um dos mais ricos para o observador dos fenômenos ideológicos capturar o sentido daquela sociedade. Nós, seres humanos, nos formamos na conexão com o outro, na interação. A essência dessa interação social antecede a essência das subjetividades individuais, e compreender isso nos leva ao resultado mais claro de como essas demonstrações sociais irão interferir em nossa pessoalidade. Konder demonstra o valor da linguagem nesse processo:


“No processo de desvelamento da realidade (que os gregos chamavam de alethéa), a linguagem deve ser reconhecida como o meio simbólico essencial pelo qual o real pode ser conhecido. É na linguagem que podemos efetivamente tomar consciência do nosso ser e do ser do mundo.”

Tantos outros o fizeram também, como Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas. A linguagem, portanto, é parte do contexto objetivo social, mas deve ser observada tendo em vista o exercício do poder, a dominação do homem pelo homem, constitutiva da sociedade capitalista.


Fascismo, ideologia e linguagem


O objetivo deste artigo não é debater as origens do fascismo; as referências ao final cumprem o papel de bom caminho para quem quiser mergulhar na história. Mas, ainda que não seja esse meu objetivo, é necessário destacar de que forma o fascismo se concretizou como uma alternativa real na Europa do início do século XX. A direita intensificou massivamente a propaganda ideológica para destruir as bases democráticas e a confiança das massas. Nos círculos intelectuais, o desprezo pelo pobre era amplificado, e parte dos progressistas foi contaminada com essa visão. O fascismo, e a essa altura não importa se italiano ou hitlerista, utilizou métodos bastante modernos de comunicação para alcançar as massas. Esse processo de intensificação da propaganda é característico do capitalismo para legitimar suas ações através da repetição desenfreada de uma mesma afirmação. Por isso, o controle das comunicações, desde os primórdios da acumulação capitalista, é essencial para a classe detentora. É insuficiente para o capitalismo controlar apenas a produção; ele precisa também controlar quem consome o que é produzido, e o faz através da propaganda. Isso é chamado de consumo dirigido. Não é difícil perceber como, politicamente, os fascistas se aproveitaram disso.


Outra característica do fascismo é o achatamento das chamadas camadas médias em direção ao proletariado. Dessa forma, o proletariado é inflado e o inimigo é marcado. Esse é um duplo ataque, pois apela para o sentimento de desprezo direcionado ao pobre que os pequeno-burgueses nutrem. Fato é que, social e economicamente, essa parcela da população está muito mais próxima do proletariado do que da alta burguesia; por isso, dilatar esse sentimento de desprezo ao passo que ainda assim são rebaixados socialmente é mais do que suficiente: criam-se, portanto, inimigos e desenvolve-se o embate entre proletários e pequeno-burgueses. Somado a isso, o racismo também é inerente ao fascismo. Clara Zetkin destaca que, na Alemanha de 1923, ainda que com um projeto fascista muito inicial, o lema era “porrada nos judeus”[1].


A base teórica para o fascismo não é fácil de mapear, mas, de maneira geral, todo o pensamento de direita do século XIX que buscava criar na imagem do proletário o inimigo foi aproveitado para esse levante antidemocrático no século seguinte. Konder ressalta como isso opera no imaginário político: os fascistas podem se desprender de suas amarras morais e ultrapassar os limites do aceitável politicamente; afinal, se o outro é o inimigo demonizado, o errado seria não fazer todo o possível para detê-lo.


Consciência cotidiana


Observações feitas, retomando o ponto sobre o texto da peça comercial da American Eagle/Sweeney, quero destacar que a linguagem não é somente a forma como comunicamos, mas, ainda mais decisivamente, quem somos. É quem somos, mas também quem podemos nos tornar. É paradoxal: é infinita pela sua plasticidade de se desenvolver, mas expressa os limites do sujeito. Isso é importante para compreender que Sweeney é rica, e tenho dúvidas pujantes de que não seja bem direcionada publicamente; uma atriz, ainda que limitada, conquistou fama, e, com a certeza com que afirmo meu nome, afirmo também que possui assessoria e treinamento para lidar com publicidades, imprensa etc. A American Eagle detém também um departamento de marketing com pessoas capacitadas para compreender o que aquelas palavras do comercial, junto à semiótica transmitida pela atriz contratada para protagonizá-lo, iriam causar.


Becky S. Korich escreveu sua opinião assumidamente racista sobre esse comercial na Folha de S. Paulo[2]. Ela destaca que é importante ouvir as críticas que apontam o reforço do padrão estético e que reduzir uma mulher apenas a curvas corporais é problemático, e, em seguida, afirma a saturação desse discurso. Afirma que existem mulheres mais gostosas do que outras – com essa mesma formação de palavras – e que Sydney não praticou nenhum crime ao não pedir desculpas por ser “gostosa”, ressaltando o propósito da propaganda: lucrar; as ações da empresa, como Becky destacou, subiram 20% e Sydney faturou. Agora, ponto a ponto dessa opinião: como a autora determinou o que é “ser gostosa”, algo tão subjetivo, de forma tão precisa? Se de fato as críticas são importantes, como está saturada de ouvi-las? São críticas importantes de fato, ou esse trecho só foi redigido para que o corpo editorial da Folha pudesse aprovar? Ainda que eu acredite que o corpo editorial do periódico não fosse erguer barreira alguma contra a publicação caso esse trecho não estivesse presente no texto.


A atividade cotidiana da consciência é a chave para compreender o nível de percepção da realidade. Modificações históricas e reformulações das subjetividades interpessoais só apresentam resultados concretos quando incorporadas ao comportamento dos sujeitos de forma inconsciente na vida cotidiana. A consciência cotidiana, termo caro a Lukács, se aproxima do que apreendeu no imediato e estabelece relação com a informação recebida. Esse tipo de material da American Eagle atinge em cheio quem o recebe. Não é necessário um nível de inserção e reflexão filosófica profunda, como quando observamos uma arte ou lemos um livro. A informação é recebida e assimilada. A proximidade com o fascismo não é só notável, é quase transparente.


Para finalizar, um ponto: Sweeney de fato não fez nada de errado. É a existência própria do comercial que personifica a essência pestilencial do capitalismo.


*Rafael é editor da Clio Operária, historiador, pós-graduando em Serviço Social, Ética e Direitos Humanos, educador popular no cursinho Sabotage da rede Confluências, tradutor, desenhista e pesquisador sobre neoliberalismo.


REFERÊNCIAS


KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Expressão Popular, 2020.


KONDER, L. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009.


ZETKIN, C. Como nasce e morre o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. 


[1] Prefácio de Maria Lygia Quartim de Moraes para a obra Como nasce e morre o fascismo.  



 
 
 
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