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Precisamos repensar a Autonomia e a Autodefesa: o enfrentamento coletivo aos métodos de coerção da mão armada do Estado 

Marcos Morcego

Escrever sobre o Estado e o governo, muitas vezes acarreta uma sensação, mesmo para quem escreve, de distanciamento com o nosso dia a dia. Levando isso em conta, agora vamos trazer um caminho diferente, pensar a violência do dia a dia, como foco na violência policial, porém buscando explorar as formas de autodefesa coletiva, que com certeza superam qualquer ideia de uma disputa no “mano a mano”, ou coisa do tipo. 


Começamos por uma longa citação de Lélia Gonzalez (2018) por apresentar a complexidade do que queremos demonstrar: 


"Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães do mato, capangas etc, até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos habitacionais (...) dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço [...]. Aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende por que o outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão psicológica através do medo”[1]. 

Portanto, a tese defendida é a de que o que chamamos de braço armado do Estado, ou mão armada, enfim, as forças policiais, da forma como são constituídas hoje e as forças auxiliares, nem sempre institucionais, servem para manter o planejamento de governo (por um lado), a ideologia racista (por outro), mas também servem enquanto realidade da economia capitalista que precisa da coerção. Falaremos sobre a realidade no campo e na cidade, mas pensando, principalmente em lugares urbanizados, que a cidade é segregada, se pensamos em nos reconhecer enquanto humanos, nos livrar desse processo degradante, passa, também, pela tomada das cidades, pela construção de outras relações não apenas sociais, mas de viver, uma realidade de despatologização, uma realidade em que as construções racistas (e aqui pensa-se também a questão ambiental) sejam derrubadas para que a vida possa, realmente florescer. 


Em defesa da propriedade privada 


É um tema que recorrentemente surgem comentários como “só estão fazendo seu trabalho”, ou coisas como “chama o Batman então”, portanto cabe esclarecer que não estamos buscando individualizar, mas trazer a instituição e sua conexão inerente ao sistema capitalista. Também pontuando que dependendo de onde você mora, da sua raça, etnia, de como você se comporta, chamar o Batman, aquele bilionário que bate em todo mundo, seja muito mais seguro do que contar com qualquer força policial. 


O Estado se funda nessa necessidade incessante de acumulação[2], que precisa da dominação territorial, no neoliberalismo capitalista, em cidades que não param de inchar, mas que partem do processo de: selecionar quais áreas são para quem, quais serão zonas de sacrífico, também é quando descobrem que o próprio deslocamento de populações, construções ou retiradas de populações podem gerar lucro. Andrelino Campos (2007), buscando entender a criação, ou melhor, “a produção do Espaço Criminalizando”, olhando para o Rio de Janeiro, pontua que quando a escravidão é, pelo menos legalmente, finalizada, os cortiços que se formavam no centro do RJ e até em localidades como Copacabana tinham uma composição racial negra, e pessoas pobres (brancas, principalmente com o passar dos anos e a entrada de nordestinos), mas que começam a ser expulsos[3]. 


Com a posse e a presença de poderosos, os grupos indesejados eram expulsos sob pretextos higienistas, abrindo espaço para a especulação imobiliária e para a formação de uma massa de desalojados, que vão para as encostas ou para os quilombos periurbanos (visto que grande parte das favelas de hoje reside em espaços que eram quilombolas). Se antes nós éramos mercadoria, máquina e animal para o sistema, hoje somos seres indesejáveis, principalmente quando a máquina precisa nos tirar do jogo seja para reordenar seu poder, seja para explorar áreas, terrenos e espaços, seja quando nos tornamos uma ameaça para essa ilusão de normalidade. 


Sabemos que “os embriões das instituições de segurança brasileira também nasceram por objetivos de centralização do poder”, como diz Almir Felitte (2023)[4]. O autor ainda traz o Mbembe para mostrar que “mais do que coexistir, a democracia, por vezes, depende de atos de violência estatal contra camadas da população para sua própria existência”. Os grupos marcados desde o início do Estado, do nascimento do capitalismo, aqueles classificados como racializados, foram e permanecem sendo os alvos dessa política de morte. Falamos, portanto da produção de morte, aquela definição básica de necropolítica, que atinge “notadamente aqueles subalternizados em função do sistema classificatórios de raça - e classe [ou seja]: as diversas formas que são utilizadas para, de forma sistemática, exterminar a população não branca e pobre, segundo Gabriel Miranda (2021)[5].  


O capitalismo dá sequência à lógica colonial. Como diz Fanon (2022), o regime colonial se legitimou pela força, assim como o regime capitalista, o colonizado é jogado e imerso nessa violência, assim como nós, geralmente com a gente empurrando ela um sobre o outro. Mas quando direcionada, “para o colonizado, essa violência representa a práxis absoluta [...]. O homem colonizado liberta-se na e pela violência”. 



A polícia está aqui para te proteger? 


Escrever este capítulo é uma das partes mais dolorosas, principalmente pois a escrita deste texto acontece entre o final de novembro e o começo de dezembro. Sabemos que a formação dessa instituição tem como objetivo o controle social, enquanto o trabalho midiático e do governo é criar consentimento sobre essa situação em que torturas, abusos e muita violência são a normalidade. Não necessariamente em um sentido de conter revoltas, mas de lembrar diariamente de uma hierarquia de poder e respeito. 


Infelizmente teremos que abordar alguns casos, como ao acordar no dia 03/12/2024, em que ao abrir qualquer noticiário se vê o caso de 4 policiais que jogam um cidadão por uma ponte, um cidadão já detido, sem mais nem menos[6]. Como se isso não fosse suficiente, no dia 2, ao pedir uma corrida de moto, que deu menos de 10 reais, para não pagar, um policial matou o motoboy[7]. No começo de novembro, o sobrinho do rapper Eduardo Taddeo foi assassinado pelas costas, com 8 tiros, por furtar dois produtos de limpeza [8]. Não estamos falando sobre indivíduos isolados, mas sobre práticas de execução. 


A polícia é a instituição menos preparada para trabalhar com qualquer situação, um exemplo são os casos, como o de Thainara Vitória, morta ao tentar defender seu irmão autista[9]. Ou por exemplo, quando entram em escolas e agridem alunos[10]. A única função da polícia é punir, ficar mantida na lógica colonial e reforçar a violência.  


Alex Vitale[11] explica a questão norte-americana nestes pontos principais: a instituição é criada para “ser uma ferramenta para gerir a desigualdade e manter o status quo”, qualquer reforma feita na instituição é incapaz de afastar o seu objetivo, que é “gerir populações pobres, estrangeiras e não brancas”. Caímos, então, em relações próximas das do Brasil, em que as polícias, não apenas a militar, mas a própria GCM é a ferramenta usada para lidar com pessoas em situação de rua e de dependência química[12], sendo que não é o policiamento que deveria ser usado para tal fato. Ou ainda, na guerra às drogas, que como diz Don L, “nos consideravam drogas”, nós somos o alvo de toda essa política. 


Ainda podemos falar das agressões contra pessoas que buscam moradia[13]. Sem falar dos projetos de governo para militarização das escolas, cabendo lembrar que isso, como diz Alex S. Vitale, “mina o ethos da escola como um ambiente apoiador da aprendizagem”. É um projeto, a construção ideológica da violência, do controle e do medo. É mais uma parte do projeto de dominação dos donos do sistema, para minar a autonomia, qualquer possibilidade de controle e seguindo a lógica de nós enquanto fiscalizadores do próximo, nos tornarmos pessoas comuns que lutaremos contra nós mesmos. 


A militarização [ou o policiamento] cotidiano 


Aqui no Brasil os golpistas de 64 passaram impunes[14]. No governo Bolsonaro, se forma outra tentativa, agora com os pedidos de anistia, mas mais ainda, com um vídeo da marinha retratando civis como pessoas que não trabalham[15], embora a gente esteja na luta por VIDA ALÉM DO TRABALHO, pelo fim da escala 6x1 e pela diminuição da jornada, já que, na realidade, trabalhos muito para receber pouco. 


Além disso, programas já antigos e que sempre busco trazer a partir do vídeo do Chavoso da USP[16], normalizam esse processo de violência. Mas mais que isso, quando a resposta do governo para: escolas, saúde, moradia, sempre se volta para o policiamento, aquela se apresenta como a única e a medida de resolução. Quando, na verdade resulta em: encarceramento em massa[17], em violência cotidiana e um nível de abuso extremo como os apresentados neste texto. 


O Brasil tem relação com a política mundial? 


Vivemos, na tentativa de expansão colonial desde o século passado, um dos genocídios mais violentos. Então, nos perguntamos, será que viraremos uma nova Palestina? Se a guerra aqui é travada contra grupos racializados, minorias sociais e pobres, e ela é travada com tecnologia e arma israelense[18], nós já não estaríamos neste ciclo de violência, na mesma corrente política, social, econômica e histórica? As armas dos EUA e de Israel são literalmente as armas que abastecem a guerra no Rio de Janeiro[19]. 


Se Angela Davis aponta a conexão global entre o genocídio palestino, o apartheid sul-africano, a violência policial no Brasil e nos EUA[20], não é à toa, mas é o caminho de uma indústria de violência que precisa encarcerar, prender, manter em campos de concentração. Ela então define como “aparelho policial-judicial-penal", a estrutura do Estado gira em torno da violência, da exploração, da opressão[21]. 


Romper o ciclo de violência e policiamento 


Paulo Freire insiste em nos lembrar que a libertação só acontece pela luta[22]. E que o ato de revolta dos oprimidos é o ato máximo de amor durante o capitalismo, é um grito de vida. Se a violência social[23] é composta por um caráter social e de classe, a libertação também tem esse elemento enquanto base, centro e perspectiva.   


Se o Estado busca essa dominação econômica, mas também espacial, essa violência atravessa toda a estrutura da sociedade capitalista que se forma e, aqui, “essa polícia é treinada, antes de mais nada, para matar”, como diz Andrelino Campos, pensar em autodefesa e autonomia são centrais para a construção de nossos espaços. 


A referência histórica que inunda o Brasil é a luta formada nos quilombos[24], chamados por Lélia Gonzalez, Clóvis Moura e Abdias Nascimento de “única democracia racial” existente no território invadido e chamado de Brasil. Foram exemplos grandiosos de formação antissistêmica. Pensar a autodefesa em nível coletivo consistiria em um forte avanço para resolver a violência entre as nossas e os nossos, mas também no enfrentamento contra a violência do Estado. 


Existem exemplos? 


Uma das formas foi a rápida resposta de moradores de Jacarezinho, quando foi realizado um dos maiores massacres no Rio de Janeiro[25], mas gostaria de me ater aqui ao que foi realizado em favelas e periferias de São Paulo, sendo um ponto de partida para o meio urbano. Os crimes de maio de 2006 cometidos pelo estado de São Paulo fizeram com que surgisse um dos principais grupos de denúncia e resistência contra a violência Estatal, chamado de Mães de Maio[26]. Na Argentina, em outro movimento de mesmo nome houve uma luta contra os assassinatos cometidos durante a ditadura[27], aqui o olhar se volta para o período democrático, novamente explicitando o caráter contínuo de violência para o sistema capitalista.  


Cito apenas duas experiências, mas poderiam ser várias, porém todo esse tempo de luta e enfrentamento conseguiu fazer com que em São Paulo fossem realizadas tentativas de autodefesa, sendo uma interessantíssima em 2024. O começo da gestão Tarcísio foi com o que era chamado de procura por drogas nas periferias, um dos discursos mais utilizados para justificar a perseguição aos pobres e não brancos, mas que na realidade se tornaram batidas policiais em bailes funk com: espancamentos, torturas, invasão de moradias e lojas, além de roubos pelas próprias forças policiais. Com isso, “lideranças comunitárias e entidades criaram comitê de crise para combater a violência do governo”[28].  


Porém tudo que fazemos aqui ainda está longe de garantir a autodefesa e geralmente são meios utilizados após uma sequência de violações seguidas por parte do Estado. Nós precisamos retomar o controle territorial, algo discutido por Andrelino Campos no contexto do Rio de Janeiro. Mas algo muito explícito na luta pela terra, já que se estabelece a noção de que a invasão policial, ou de movimentos de invasão paramilitares[29], mesmo quando, por exemplo, o chamado pelo Estado surge é por água[30]. 


Pensar estes elementos de forma histórico-social é essencial para entendermos que, ainda que necessitemos de certas questões de gestão pública, precisamos exigir que grande parte delas tem como problemas, literalmente, a tentativa de se solucionar com segurança pública. Essa ideia foi construída por um discurso de defesa do status quo e não foi debatido de forma concreta pela esquerda. Pensar a autonomia e a autogestão é entrar naquela questão, se não podemos contar com o Batman, nem com a polícia, nós temos que contar com nós mesmos, criar espaços, novas relações entre a gente para permitir formação, confiança e uma nova realidade social. Neste texto não temos resposta, mas temos a proposta de uma nova discussão sobre a segurança pública, mas também sobre a territorialização dentro de espaços urbanos.  


Lutar pela aliança campo-cidade, pela integração entre as lutas, passa pelo entendimento de que precisamos superar a necessidade de sempre recorrer às instituições e em muitas das soberanias, como a hídrica (água) e a alimentar (comida)[31], por vezes não podem ser concretizadas, então o primeiro elemento é a nossa territorialização. Entender o processo de construção de autonomia também como elemento coletivo, como algo que é realizado com a gente e entre a gente. É assumir que se são 540 anos de violência sistemática e estrutural contra nós, “os desajustados”, não iremos permitir que mais ninguém tombe. E é assumir, também, que, se algum corpo tombar, nós seremos uma multidão, cada pessoa que resiste está carregando a história de milhões que resistiram. Cada pessoa que luta deve ser nosso ponto de apoio para continuarmos lutando. Cada enfrentamento será coletivo. Se nós, para eles, somos apenas mercadorias, objetos, números, formas de controle social e acumulação de capital, sejamos o fim deles. Ou melhor, sejamos a realização de novas histórias, novos mundos, novas possibilidades. Se podemos fazer a história, então faremos!  


Esse texto também é um abraço para todas as pessoas que lutam, por vezes se enxergam sozinhas, sem energia, abandonadas inclusive por quem se diz estar lado a lado. Tecer novas teias, reforçar nossos caminhos, estabelecer redes e mais redes, para que nenhuma bala atravesse, que nenhuma violência nos impeça de avançar e que os caminhos sejam abertos para realmente vivermos! 

 

Referências Bibliográficas: 


[1] Lélia Gonzalez. Primavera para as rosas negras. Editora Filhos da África, 2018. Capítulo: 22. Racismo e sexismo na cultura brasileira (que pode ser encontrado na internet). 


[2] Como abordo no texto da Clio Operária sobre o Estado: <O Estado capitalista e a violência sobre os seres e os territórios!>. 


[3] Andrelino Campos. Do Quilombo à Favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007 


[4] Almir Fellite. História da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?. Autonomia Literária, 2023. Livro com cupom de desconto de 20% no site da editora: #morcegonaautonomia. Também é possível verificar a discussão realizada sobre o livro no canal: Lives Caverna do Morcego: <(9137) (T01E01) A polícia deve acabar? - YouTube>. 


[5] Gabriel Miranda. Necrocapitalismo: ensaios sobre como nos matam. Lavrapalavra, 2021. 


[6] Caso assistam ao vídeo, possui imagens muito fortes: <VÍDEO: PM é flagrado jogando homem em rio na Zona Sul de SP | São Paulo | G1>. 






[11] Alex Vitale. O fim do policiamento. Autonomia literária. (cupom de desconto de 20% #MorcegonaAutonomia). 




[14] Comissão da Verdade da PUC-SP: <Comissão da verdade da PUC-SP | PUC-SP>.  


[15] Aconselho acompanhar o vídeo pela página do ICL: <Vídeo da Marinha que retrata civis como se não trabalhassem gera reação nas redes>. 


[16] Sobre populismo penal midiático: <JORNALISMO POLICIAL, PORQUE VOCÊ DEVERIA PARAR DE ASSISTIR>. 



[18] A compra de tecnologia e armamentos pelo Brasil: <Brasil é um dos principais compradores de tecnologia e | Internacional>. 



[20] Angela Davis. A liberdade é uma luta constante. Boitempo. 


[21] Conceito retirado da Jacobin Brasil: <Angela Davis deu sua vida para expor a repressão do Estado>. 


[22] Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Paz & Terra (no Grupo Editorial Record). 



[24] Texto sobre Clóvis Moura e os quilombos: <Quilombos, da resistência à construção de um novo mundo>. 





[28] Sobre os casos em Paraisópolis e o comitê: <Paraisópolis se organiza contra o terror da PM na comunidade>. 




[31] Joelson Ferreira e Erahsto Felício. Por Terra e Território: caminhos da revolução dos povos no Brasil. Teia dos Povos.  


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