Para abrir os caminhos do futuro: o aniversário do MNU
- Vinicius Souza Fernandes da Silva

- 18 de jun.
- 6 min de leitura
Por Vinicius Sozua Fernandes da Silva*

Em todas as épocas, nos diferentes contextos históricos, a opressão está destinada a travar uma guerra de vida ou morte com a resistência. O conjunto da experiência humana na sua marcha impiedosa e sem destino atravessando o tempo e rasgando a realidade, é marcado, invariavelmente, pelo axioma - não há opressão sem resistência. Por ofício, as pessoas resistem, constroem processos de sobrevivência, buscam incansavelmente viver, mesmo quando impostas a elas as piores condições para que a vida se realize. A violência, historicamente, não possui caminho livre, ela não é senhora absoluta da realidade, apesar de ser seu algoz. Nesses processos históricos reside, por regra, a realização da humanidade de quem se levanta.
Sem sombra de dúvidas, é correta a reflexão de Walter Benjamin de que a locomotiva da história é a violência e a revolução é os seus freios de parada. Esses freios, inevitavelmente, são as lutas empanadas pelos povos ao longo da história de resistência à opressão. E na história da sociedade moderna, ninguém entende mais a respeito da resistência e do direito histórico de resistir[1] do que os povos racializados, aqueles que são os condenados da terra[2].
O Brasil enquanto experimento colonial de opressão e exploração, uma sociedade profundamente desenvolvida pela violência enquanto elemento central da sua racionalidade e manutenção das suas estruturas dialéticos de funcionamento, é um exemplo de história marcada pela luta dos povos africanos e indígenas, aqueles a quem foi imposta a mais expressiva forma de exploração, o modo de produção escravista. Se por um lado, o escravismo desumaniza o escravizada, tira a sua condição de ser humano e impõe a de objeto, processo nomeado por Clóvis Moura como coisificação, por outro a luta contra esse processo é, necessariamente, pela imposição da humanidade dos oprimidos e explorados em relação ao resto do mundo. Essa é a contradição fundante do Brasil.
Quando se trata da população negra, vítima de um “transplante transatlântico mal-sucedido”[3], lançado mão do conceito de quilombagem de Clóvis Moura, que seria a ação de resistência em diferentes níveis de radicalização do negro agindo em nome da sua vida e humanidade em resistência a sociedade escravista - esse processo tem sua fase inicial nas fugas, suicídios, sabotagens e o seu ápice na forma revolucionária mais marcante da história do Brasil, os quilombos.
Contudo, essa ação negra de resistência que na sua execução se converte na construção de modelos alternativos de sociedade e apontam diretamente a superação da ordem vigente, permanece enquanto uma realidade no Brasil de trabalho livre e assalariado, seguindo firme no combate as condições subumanas de vida impostas a população negra e o genocídio da sua juventude. Se convencionou chamar a continuidade desse processo de luta e resistência de movimento negro, que do ponto de vista da História de Longa Duração, é a continuidade da quilombagem frente a falsa abolição de 13 de maio de 1888.
Entre as muitas datas importantes para o movimento negro, o dia 18 de junho demanda ser especialmente lembrado. Foi nesse dia, em 1978, há 47 anos, durante a ditadura militar que foi criada a organização hoje nacionalmente conhecida como Movimento Negro Unificado (MNU), lançada algumas semanas depois nas escadaria dos Teatro Municipal de São Paulo, sob a pressão das armas da ditadura e em resposta ao assassinato de um homem negro.
Longe de ser uma organização meramente setorizado que busca criar espaços dentro da sociedade burguesa e da ditadura militar brasileira, o MNU acumulando saberes e experiência do movimento negro brasileiro e seus intelectuais orgânicos e com muita influência de organizações revolucionárias como o Partido dos Panteras Negras e figuras como Malcolm X nos Estados Unidos, assim como dos movimentos revolucionários de libertação nacional e elegeu como seu horizonte para a superação da racialização das relações sociais, a superação da sociedade capitalista. É parte fundamental da proposta política do MNU quando da sua criação, a experiência política oriunda da atuação dos seus fundadores que estavam organizados também em organizações marxistas.
Como aponta Lélia Gonzalez:
Hoje não dá mais pra sustentar posições culturalistas, intelectualistas, coisas que tais, e divorciadas da realidade vivida pelas massas negras. Sendo contra ou a favor, não dá mais pra ignorar essa questão concreta, colocada pelo MNU: a articulação entre raça e classe. (GONZALEZ, 1982, p. 64)
Fundamentalmente, o MNU estabeleceu um ponto da decisivo na história da luta contra o racismo na sociedade brasileiro, apontando o racismo como aspecto central do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, estabelecendo, desta forma, a condicionalidade da construção de uma saída revolucionária para o fim do racismo. Essa perspectiva ganhou força há décadas, foi consolidada no século passado, como é possível observar em Lélia Gonzalez. No entanto, dentro dos desafios do nosso tempo, possuímos a obrigação de questionar - para onde vai o movimento negro hoje, 47 anos depois da fundação do MNU?
Alguns avanços foram conquistados através de anos de luta, como o estabelecimento do dia 20 de novembro como feriado nacional da consciência negra em homenagem a Zumbi dos Palmares, as cotas raciais para acesso ao Ensino Superior e funcionalismo público, a criação da Fundação Palmares, o Ministério da Igualdade Racial e a Lei 10.639/2006.
Mas como anda a construção de um projeto de sociedade na qual o racismo foi superado? Como fazemos frente aos desafios do nosso tempo? Como a vida da população negra é afetada frente ao sequestro do orçamento público pelo capital financeiro? Como políticas de austeridade econômica que esvaziou e subfinanciam políticas sociais afetam a população negra? Segundo a última publicação do Atlas da Violência[4], o Brasil registrou mais de 45 mil mortes violentas intencionais, sendo que pouco mais de 35 mil foram só de pessoas negras, praticamente a metade desses homicídios são contra jovens, 70,3% das crianças (0 a 11 anos) que tiveram a sua vida ceifadas, eram negras. No caso de adolescentes, o total é de 84,5%[5].
Entre 2014 e 2024, foram assassinadas 445.442 pessoas negras no Brasil. Qual é a resposta enquanto movimento social que é entregue frente a este processo hoje? Quais são os nossos caminhos para enfrentar um genocídio que envolve a atuação das forças do estado e a dominação e exploração territorial de grupos armados? Quais são as respostas que estabelecemos para mais 330 mil pessoas em situação de rua no país[6], marcada em sua maioria por homens negros? Como o atual projeto do movimento conecta o antirracismo à reforma agrária e urbana? Como nosso projeto supera o encarceramento em massa de mais de 850 mil pessoas, sendo que 75% são negras[7]?
No célebre programa de entrevistas apresentado por um dos integrantes do Racionais Mc’s, Mano Brown, Sueli Carneiro apontou que o papel histórico do movimento negro na esquerda é tensionar a esquerda para a esquerda. Para cumprir essa importante tarefa, é fundamental retomar a capacidade do movimento negro de pensar um projeto de mundo que englobe a superação do racismo através da tranformação radical das grandes questões estruturantes da sociedade através da construção de um projeto nacional. Segundo Clóvis Moura:
Quando democratizarmos, realmente, a sociedade brasileira nas suas relações de produção, quando os polos do poder forem descentralizados através da fragmentação da grande propriedade fundiária e o povo puder participar desse poder, quando construirmos um sistema de produção para o povo consumir e não para exportar, finalmente, quando sairmos de uma sociedade selvagem de competição e conflito, e criarmos uma sociedade de planejamento e cooperação, então, teremos aquela democracia racial pela qual todos nós almejamos. (MOURA, p. 220, 2014)
Para superar o racismo é necessário entregar uma resposta dentro do campo da totalidade, superando a forma social, política e econômica. Não há comemoração mais adequada para o aniversário do MNU do que a reflexão sobre quais são as formas que devemos abrir os nossos caminhos para a construção do futuro.
*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e coordenador do Conselho Editorial da Clio Operária e associado ao Instituto Hauçá, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).
[1] ver “Herbert Marcuse: o direito histórico de resistência”. Disponível em: https://www.cliooperaria.com/post/herbert-marcuse-o-direito-hist%C3%B3rico-de-resist%C3%AAncia.
[2] FRANTZ, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civiliação Brasileira, 1968.
[3] Ver “Racionais MC's - Negro Drama (Racionais 3 Décadas Ao Vivo)”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DaCK8snx9ac&list=RDDaCK8snx9ac&start_radio=1.
[4] CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (coord.). Atlas da violência 2025. Brasília: Ipea; FBSP, 2025.
[5] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Um retrato da violência contra negros no Brasil 2024. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024.
[6] Observatório Brasileiro de Políticas Públicas - UFMG. Disponível em: https://obpoprua.direito.ufmg.br/.
[7] Pessoas Privadas de Liberdade - ObservaDH. Disponível em: https://observadh.mdh.gov.br/.
Referências
DOMINGUES, Petronio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf>. Acesso em: 18 de jun. 2025.
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. 2. ed. São Paulo: Fundação Maurício
Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
GONALZES, L. Lugar de negro. HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.



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