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Herbert Marcuse: o direito histórico de resistência

Foto do escritor: Vinicius Souza Fernandes da SilvaVinicius Souza Fernandes da Silva

Introdução e tradução por Vinicius Souza Fernandes da Silva*



Herbet Marcuse (Wikipédia)
Herbet Marcuse (Wikipédia)


O filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse, marcou o século XX como um dos mais expressivos nomes da Teoria Crítica e da Escola de Frankfurt[1]. Concentrando a sua crítica no processo no qual o capitalismo lança mão da cultura de massas e da sociedade industrial avançada como mecanismos de dominação em um sistema no qual o conceito liberal de democracia se converteu em uma sociedade profundamente autoritária, mas que respira pela aparência de liberdade e prosperidade.


Sendo judeu, assim como os seus companheiros da Escola de Frankfurt, Marcuse foi perseguido pelo regime o Terceiro Reich e, como inúmeros outros, o exílio foi imposto em sua vida em 1933, passando por algumas regiões da Europa e se estabelecendo nos Estados Unidos, onde influenciou diretamente os movimentos sociais no século XX, sobretudo a onda de contra-cultura e as tendências da chamada Nova Esquerda. 


Com uma obra extensa que refletia sobre o capitalismo e as formas de dominação pelo sofrimento, Marcuse dedicou a sua vida à Teoria Crítica, sendo inclusive um dos célebres intelectuais que conciliaram a Teoria Política com a crítica pela psicanálise. Quando da sua morte em 1979, entre as suas grandes contribuições, Marcuse ostentava ter sido professor e orientador de Angela Davis[2], provando a importância de seu legado.


O texto que segue abaixo para o leitor, é a tradução da transcrição de uma palestra proferida na Universidade de Berlim, no ano de 1967. Em sua explanação, Marcuse tratou dos Estados Unidos da década de 60, período no qual os movimentos políticos de negros, migrantes latinos, mulheres, estudantes, hippies e anarquistas tomavam as ruas dos Estados Unidos na luta contra a Guerra do Vietnã, a Segregação Racial e a dominação imperialista sobre o, até então, chamado Terceiro Mundo.


Dentre as contribuições mais significativas desta palestra, Marcuse analisa o que seria um direito histórico e primordial a resistência e como o direito formal, aquele que expressa o Estado, age para este direito fundamental a resistir à opressão e exploração. E como as democracias capitalistas são autoritárias a ponto da violência se tornar um mecanismo de controle e defesa da ordem vigente, por mais injusta e desumanizadora que ela possa ser. Por fim, a tradução da transcrição abaixo reflete magistralmente sobre quem são as figuras revolucionárias no interior da sociedade, desafiando o marxismo ortodoxo em seus limites dogmáticos. 


É fundamental para o povo brasileiro defender e exercer o seu direito histórico à resistência.



O problema da violência e a da oposição radical


Herbert Marcuse, 


Universidade de Berlim, 1967


Hoje, a oposição radical só pode ser considerada em um contexto global. Tomada como um fenômeno isolado, sua natureza é falsificada desde o início. Discutirei essa oposição com você no contexto global, com ênfase nos Estados Unidos. Você sabe que considero a oposição estudantil de hoje como um fator decisivo de transformação: certamente, não como fui repreendido, como uma força revolucionária imediata, mas como um dos fatores mais fortes, que talvez possa se tornar uma força revolucionária. Estabelecer conexões entre as oposições estudantis de vários países é, portanto, uma das necessidades estratégicas mais importantes destes anos. Existem poucas conexões entre os movimentos estudantis americanos e alemães; a oposição estudantil nos Estados Unidos nem sequer possui uma organização central efetiva. Devemos trabalhar para o estabelecimento de tais relações e, se ao discutir o tema desta palestra, tomo principalmente os Estados Unidos como exemplo, faço isso para ajudar a preparar o terreno para o estabelecimento de tais relações. A oposição estudantil nos Estados Unidos faz parte, por si só, de uma oposição maior que geralmente é denominada “Nova Esquerda".


Devo começar delineando brevemente a principal diferença entre a Nova Esquerda e a Velha Esquerda. A Nova Esquerda é, com algumas exceções, neomarxista em vez de marxista no sentido ortodoxo; ela é fortemente influenciada pelo chamado maoismo e pelos movimentos revolucionários do Terceiro Mundo. Além disso, a Nova Esquerda inclui tendências neoanarquistas e é caracterizada por uma profunda desconfiança em relação aos antigos partidos de esquerda e sua ideologia. E a Nova Esquerda não está, novamente com exceções, atrelada à velha classe trabalhadora como o único agente revolucionário. A própria Nova Esquerda não pode ser definida em termos de classe, consistindo, como consiste, de intelectuais, grupos oriundos do movimento pelos direitos civis e grupos de jovens, especialmente os elementos mais radicais da juventude, incluindo aqueles que, à primeira vista, nem parecem políticos, como os hippies, aos quais retornarei mais adiante. É muito interessante que este movimento tenha como porta-vozes não políticos tradicionais, mas sim figuras suspeitas como poetas, escritores e intelectuais. Se você refletir sobre este breve esboço, admitirá que essa circunstância é um verdadeiro pesadelo para os “velhos marxistas". Aqui você tem uma oposição que, obviamente, não tem nada a ver com a força revolucionária “clássica”: um pesadelo, mas que corresponde à realidade. Acredito que essa constelação completamente heterodoxa da oposição seja um verdadeiro reflexo de uma sociedade “autoritária-democrática” de realizações, de uma “sociedade unidimensional,” como tentei descrevê-la, cuja característica principal é a integração da classe dominada em uma base muito material e muito real, a saber, com base em necessidades controladas e satisfeitas que, por sua vez, reproduzem o capitalismo monopolista – uma consciência controlada e reprimida. O resultado dessa constelação é a ausência da necessidade subjetiva de uma transformação radical, cuja necessidade objetiva se torna cada vez mais flagrante. E, nessas circunstâncias, a oposição se concentra entre os outsiders dentro da ordem estabelecida. Primeiramente, ela pode ser encontrada nos guetos entre os “desprivilegiados", cujas necessidades vitais nem mesmo o capitalismo avançado e altamente desenvolvido pode ou quer satisfazer. Em segundo lugar, a oposição se concentra no polo oposto da sociedade, entre aqueles privilegiados cuja consciência e instintos rompem ou escapam do controle social. Refiro-me àquelas camadas sociais que, devido à sua posição e educação, ainda têm acesso aos fatos e à estrutura total dos fatos – um acesso que é realmente difícil de se obter. Essas camadas ainda possuem conhecimento e consciência das contradições que continuam a se intensificar e do preço que a chamada sociedade afluente cobra de suas vítimas. Em resumo, há oposição nestes dois polos extremos da sociedade, e gostaria de descrevê-los brevemente.


Os Desprivilegiados


Nos Estados Unidos, os desprivilegiados são constituídos, em particular, por minorias nacionais e raciais, que, evidentemente, são em grande parte desorganizadas politicamente e muitas vezes antagonistas entre si (por exemplo, existem conflitos consideráveis nas grandes cidades entre negros e porto-riquenhos). São, na maioria, grupos que não ocupam um lugar decisivo no processo produtivo e, por esta razão, não podem ser considerados forças potencialmente revolucionárias do ponto de vista da teoria marxista – pelo menos não sem aliados. Porém, no quadro global, os desprivilegiados que devem suportar todo o peso do sistema são, de fato, a base de massa da luta de libertação nacional contra o neocolonialismo no terceiro mundo e contra o colonialismo nos Estados Unidos. Aqui também, não há uma associação efetiva entre as minorias nacionais e raciais nas metrópoles da sociedade capitalista e as massas no mundo neocolonial que já estão engajadas na luta contra essa sociedade. Essas massas podem, talvez, agora ser consideradas o novo proletariado e, como tal, representam hoje um perigo real para o sistema capitalista mundial. Até que ponto a classe trabalhadora na Europa ainda pode ou novamente pode ser incluída entre esses grupos desprivilegiados é um problema que devemos discutir separadamente; não posso fazê-lo no âmbito do que tenho a dizer aqui hoje, mas gostaria de apontar uma distinção fundamental. O que podemos dizer da classe trabalhadora americana é que, em sua grande maioria, os trabalhadores estão integrados ao sistema e não desejam uma transformação radical, o que provavelmente não podemos, ou ainda não podemos, dizer da classe trabalhadora europeia.


Os Privilegiados


Gostaria de abordar o segundo grupo que hoje se opõe ao sistema do capitalismo avançado em duas subdivisões. Vejamos primeiro a chamada nova classe trabalhadora, que supostamente seria composta por técnicos, engenheiros, especialistas, cientistas etc., engajados no processo produtivo, ainda que em uma posição especial. Devido à sua posição-chave, esse grupo realmente parece representar o núcleo de uma força revolucionária objetiva, mas, ao mesmo tempo, é um dos favoritos do sistema estabelecido, que também molda a consciência desse grupo. Assim, a expressão "nova classe trabalhadora" é, no mínimo, prematura. 


Segundo, e praticamente o único assunto do qual falarei hoje, é a oposição estudantil em seu sentido mais amplo, incluindo os chamados desistentes. Até onde posso julgar, estes últimos representam uma diferença importante entre os movimentos estudantis americanos e alemães. Na América, muitos dos estudantes que estão em oposição ativa deixam de ser estudantes e, como uma ocupação de tempo integral, organizam a oposição. Isso contém um perigo, mas talvez uma vantagem positiva também. Discutirei a oposição estudantil sob três categorias. Podemos perguntar primeiro, contra o que essa oposição é direcionada; segundo, quais são suas formas; e terceiro, quais são as perspectivas para a oposição?


Primeiro, qual é o alvo da oposição? Esta questão deve ser levada extremamente a sério, pois estamos lidando com a oposição a uma sociedade democrática, efetivamente funcional, que pelo menos em circunstâncias normais não opera com terror. Além disso, e neste ponto, nós nos Estados Unidos somos bem claros, é uma oposição contra a maioria da população, incluindo a classe trabalhadora. É uma oposição contra a pressão onipresente do sistema, que por meio de sua produtividade repressiva e destrutiva degrada tudo, de uma forma cada vez mais desumana, ao status de uma mercadoria cuja compra e venda fornecem o sustento e o conteúdo da vida; contra a moralidade hipócrita e os “valores” do sistema: e contra o terror empregado fora da metrópole. Esta oposição ao sistema como tal foi desencadeada primeiro pelo movimento pelos direitos civis e depois pela guerra no Vietnã. Como parte do movimento pelos direitos civis, os estudantes do Norte foram para o Sul para ajudar os negros a se registrarem para o voto. Foi então que eles viram pela primeira vez como esse sistema democrático livre realmente parece, o que os xerifes realmente estão fazendo, como assassinatos e linchamentos de negros ficam impunes, embora os criminosos sejam bem conhecidos. Isso agiu como uma experiência traumática e ocasionou o despertar político de estudantes e da intelectualidade em geral nos Estados Unidos. Segundo, essa oposição foi aumentada pela guerra no Vietnã. Para esses estudantes, a guerra revelou pela primeira vez a essência da sociedade estabelecida: sua necessidade inata de expansão e agressão e a brutalidade de sua luta contra todos os movimentos de libertação.


Infelizmente, não tenho tempo para discutir a questão se a guerra no Vietnã é uma guerra imperialista. No entanto, gostaria de fazer uma breve observação aqui porque o problema sempre surge. Se o imperialismo for entendido no sentido antigo, ou seja, que os Estados Unidos estão lutando por investimentos, então não é uma guerra imperialista, embora esse aspecto estreito do imperialismo já esteja se tornando um problema agudo novamente. Na edição de 7 de julho de 1967 da Newsweek, por exemplo, você pode ler que o Vietnã representa vinte bilhões de dólares em negócios, e esse número está crescendo a cada dia. Apesar disso, no entanto, não precisamos especular sobre a aplicabilidade de uma nova definição de imperialismo aqui, pois os principais porta-vozes do governo americano se pronunciaram sobre isso. O objetivo no Vietnã é impedir que uma das áreas estratégica e economicamente mais importantes do mundo caia sob o controle comunista. É uma questão de uma luta crucial contra todas as tentativas de libertação nacional em todos os cantos do mundo, crucial no sentido de que o sucesso da luta de libertação vietnamita poderia dar o sinal para o despertar de tais movimentos de libertação em outras partes do mundo muito mais próximas da metrópole onde investimentos gigantescos foram feitos. Se neste sentido o Vietnã não é de forma alguma apenas mais um evento de política externa, mas sim conectado com a essência do sistema, talvez seja também um ponto de virada no desenvolvimento do sistema, talvez o começo do fim. Pois o que foi mostrado aqui é que a vontade humana e o corpo humano com as armas mais pobres, podem manter sob controle o sistema de destruição mais eficiente de todos os tempos. Esta é uma novidade histórico-mundial.


Chego agora à segunda questão que eu queria discutir, a saber, as formas da oposição. Estamos falando da oposição estudantil, e eu gostaria de dizer desde já que não estamos lidando com uma politização da universidade, pois a universidade já é política. Você precisa pensar apenas na extensão em que as ciências naturais, por exemplo, e mesmo disciplinas abstratas como matemática, encontram aplicação imediata hoje na produção e na estratégia militar. Você precisa pensar apenas na extensão em que as ciências naturais e mesmo a sociologia e a psicologia, dependem hoje do apoio financeiro do governo e das grandes fundações, na extensão em que os dois últimos campos se inscreveram a serviço do controle humano e da regulação do mercado. Nesse sentido, podemos dizer que a universidade já é uma instituição política, e que, na melhor das hipóteses, a oposição estudantil é uma tentativa de antipolitização, não de politização da universidade. Ao lado da neutralidade positivista, que é pseudoneutralidade, é necessário fornecer um lugar no currículo e na estrutura da discussão intelectual para sua crítica. É por isso que uma das principais demandas da oposição estudantil nos Estados Unidos é uma reforma do currículo para que o pensamento crítico e o conhecimento sejam totalmente trazidos à discussão intelectual – e não como agitação e propaganda. Onde isso não é possível, as chamadas “universidades livres” e “universidades críticas” são fundadas fora da universidade, como por exemplo em Berkeley e em Stanford e agora em algumas das maiores universidades do Leste. Nessas universidades livres, cursos e seminários são dados sobre assuntos que não são ou são tratados apenas inadequadamente no currículo regular, como marxismo, psicanálise, imperialismo, política externa na Guerra Fria e os guetos.


Outra forma de oposição estudantil é a dos famosos teach-ins, sit-ins, be-ins[3] e love-ins. Aqui, gostaria de destacar apenas a amplitude e as tensões dentro dessa oposição: aprendizado e ensino críticos, preocupação com a teoria, por um lado, e, por outro, o que só pode ser chamado de “comunidade existencial” ou “fazer a própria coisa”. Mais adiante, gostaria de dizer algo sobre o significado dessa tensão, porque, na minha opinião, ela expressa a fusão da rebelião política com a rebelião sexual-moral, que é um fator importante na oposição nos Estados Unidos. Essa fusão encontra sua expressão mais visível nas manifestações – manifestações desarmadas – e não há necessidade de procurar ocasiões para tais manifestações. Buscar confrontos apenas por si só não é apenas desnecessário, é irresponsável. Os confrontos estão lá. Eles não precisam ser fabricados. Esforçar-se para encontrá-los falsificaria a oposição, pois hoje ela está em uma posição defensiva, não ofensiva. As ocasiões estão presentes: por exemplo, cada escalada da guerra no Vietnã; visitas de representantes de políticas de guerra; piquetes (como vocês sabem, uma forma especial de manifestação americana) em fábricas que produzem napalm e outros meios de guerra química. Essas manifestações são organizadas e são legais. Será que tais manifestações legais são confrontos com a violência institucionalizada que é desencadeada contra a oposição? Minha resposta é baseada na situação americana, mas vocês verão que podem facilmente inferir o que se aplica ao seu próprio contexto. Essas manifestações não são confrontos quando permanecem dentro do quadro da legalidade. Mas, ao fazerem isso, elas se submetem à violência institucionalizada que determina autonomamente o quadro da legalidade e pode restringi-lo a um mínimo sufocante; por exemplo, aplicando leis como aquelas que proíbem a invasão de propriedade privada ou governamental, interferência no tráfego, perturbação da paz, etc. Consequentemente, o que era legal pode se tornar ilegal de um minuto para o outro se uma manifestação completamente pacífica perturbar a paz ou, voluntária ou involuntariamente, invadir propriedade privada, e assim por diante. Nessa situação, confrontos com o poder do Estado, com a violência institucionalizada, parecem inevitáveis – a menos que a oposição se torne um ritual inofensivo, um pacificador de consciência e uma testemunha exemplar dos direitos e liberdades disponíveis sob o status quo. Essa foi a experiência do movimento pelos direitos civis: que os outros praticam a violência, que os outros são a violência, e que, contra essa violência, a legalidade é problemática desde o início. Essa também será a experiência da oposição estudantil assim que o sistema se sentir ameaçado por ela. E então a oposição é colocada diante da decisão fatal: oposição como evento ritual ou oposição como resistência, ou seja, desobediência civil.



Gostaria de dizer pelo menos algumas palavras sobre o direito de resistência, porque fico repetidamente surpreso ao perceber o quão pouco esse conceito penetrou na consciência das pessoas: o reconhecimento do direito de resistência, ou seja, da desobediência civil, é um dos elementos mais antigos e sagrados da civilização ocidental. A ideia de que existe um direito ou lei superior à lei positiva é tão antiga quanto essa própria civilização. Aqui reside o conflito de direitos diante do qual toda oposição que vai além do privado se encontra.


O establishment detém o monopólio legal da violência e o direito positivo, até mesmo o dever, de usar essa violência em sua autodefesa. Em contraste, o reconhecimento e o exercício de um direito superior e do dever de resistência, da desobediência civil, são uma força motriz no desenvolvimento histórico da liberdade, uma violência potencialmente libertadora. Sem esse direito de resistência, sem a ativação de uma lei superior contra a lei existente, ainda estaríamos no nível da barbárie mais primitiva.


Assim, penso que o conceito de violência abrange duas formas diferentes: a violência institucionalizada do sistema estabelecido e a violência da resistência, que é necessariamente ilegal em relação à lei positiva. Não faz sentido falar da legalidade da resistência: nenhum sistema social, mesmo o mais livre, pode constitucionalmente legalizar a violência dirigida contra si mesmo. Cada uma dessas formas tem funções que entram em conflito com as da outra. Existe a violência da repressão e a violência da libertação; existe a violência para a defesa da vida e a violência da agressão. E ambas as formas foram e continuarão a ser forças históricas.


Portanto, desde o início, a oposição é colocada no campo da violência. O Direito se opõe a direito, não apenas como reivindicação abstrata, mas como ação. Mais uma vez, o status quo tem o direito de determinar os limites da legalidade. Esse conflito entre os dois direitos, o direito de resistência e a violência institucionalizada, traz consigo o perigo constante de confronto com a violência do Estado, a menos que o direito de libertação seja sacrificado em favor do direito da ordem estabelecida e a menos que, como na história anterior, o número de vítimas dos poderes constituídos continue a superar o das revoluções.Isso significa, no entanto, que pregar a não violência como princípio reproduz a violência institucionalizada existente. E, na sociedade industrial monopolista, essa violência está concentrada em uma extensão sem precedentes na dominação que penetra a totalidade da sociedade. Em relação a essa totalidade, o direito de libertação, em sua aparência imediata, é um direito particular. Assim, o conflito da violência aparece como um choque entre a violência geral e a particular, ou pública e privada, e nesse choque a violência privada será derrotada até que possa confrontar o poder público existente como um novo interesse geral.


Enquanto a oposição não tiver a força social de um novo interesse geral, o problema da violência é principalmente um problema de tática. Pode o confronto com os poderes constituídos, no qual a força desafiadora da resistência perde, no entanto, em certos casos, alterar a constelação de poder em favor da oposição? Na discussão desta questão, um argumento frequentemente citado é inválido, a saber, que através de tais confrontos o outro lado, o oponente, é fortalecido. Isso acontece de qualquer maneira, independentemente de tais confrontos. Acontece toda vez que a oposição é ativada, e o problema é transformar esse fortalecimento do oponente em um estágio de transição. Então, no entanto, a avaliação da situação depende da ocasião do confronto e especialmente do sucesso de programas de educação sistematicamente executados e da organização da solidariedade. Deixe-me dar um exemplo dos Estados Unidos. A oposição vivencia a guerra contra o Vietnã como um ataque à liberdade, à própria vida, que afeta toda a sociedade e que justifica o direito de defesa total. Mas a maioria da população ainda apoia o governo e a guerra, enquanto a oposição é apenas difusa e localmente organizada. A forma de oposição que ainda é legal nessa situação espontaneamente se desenvolve em desobediência civil, em recusar o serviço militar e organizar essa recusa. Isso já é ilegal e torna a situação mais aguda. Por outro lado, as manifestações são acompanhadas cada vez mais sistematicamente por um trabalho educacional entre a população. Isso é "trabalho comunitário". Os estudantes vão aos distritos pobres para despertar a consciência dos habitantes, inicialmente para eliminar as necessidades mais óbvias, como a falta de higiene mais primitiva, etc. Os estudantes tentam organizar as pessoas para esses interesses imediatos, mas simultaneamente para despertar a consciência política desses distritos. Esse trabalho educacional, no entanto, não ocorre apenas em favelas. Há também a famosa "campanha de campainha", que envolve discutir o que realmente está acontecendo com as donas de casa e, quando estão presentes, com seus maridos. Isso é particularmente importante antes das eleições. Enfatizo a discussão com as mulheres porque, de fato, descobriu-se, como é claro que se poderia esperar, que em geral as mulheres são mais acessíveis a argumentos humanos do que os homens. Isso ocorre porque as mulheres ainda não estão completamente integradas ao trabalho produtivo, o que é muito trabalhoso e lento. Terá sucesso? O sucesso é mensurável – por exemplo, pelo número de votos obtidos pelos chamados “candidatos da paz” em eleições locais, estaduais e nacionais.


Hoje, uma virada em direção à teoria pode ser observada entre a oposição, o que é especialmente importante porque a Nova Esquerda, como enfatizei, começou com uma suspeita total de ideologia. Acredito que está se tornando cada vez mais visível que todo esforço para mudar o sistema requer liderança teórica. E nos Estados Unidos e na oposição estudantil hoje, encontramos tentativas não apenas de preencher a lacuna entre a Velha e a Nova Esquerda, mas também de elaborar uma teoria crítica do capitalismo contemporâneo em uma base neomarxista.


Como último aspecto da oposição, gostaria de mencionar agora uma nova dimensão de protesto, que consiste na união da rebelião moral-sexual e política. Gostaria de dar uma ilustração que vivenciei como testemunha ocular, que mostrará a diferença entre o que está acontecendo nos Estados Unidos e aqui. Foi em uma das grandes manifestações contra a guerra em Berkeley. A polícia, é verdade, havia permitido a manifestação, mas proibiu o acesso ao alvo da manifestação, a estação ferroviária militar em Oakland. Isso significava que, além de um ponto específico e claramente definido, a manifestação se tornaria ilegal por violar a ordem policial. Quando milhares de estudantes se aproximaram do ponto em que a estrada proibida começava, depararam-se com uma barricada composta por cerca de 10 fileiras de policiais fortemente armados, vestidos com uniformes pretos e capacetes de aço. A marcha se aproximou dessa barricada policial, e, como de costume, havia várias pessoas na frente da marcha que gritavam que a manifestação não deveria parar, mas sim tentar romper o cordão policial, o que naturalmente teria levado a uma derrota sangrenta sem alcançar nenhum objetivo. A própria marcha havia erguido um contra-cordão, de modo que os manifestantes teriam primeiro que romper seu próprio cordão para atravessar o da polícia. Naturalmente, isso não aconteceu. Após dois ou três minutos assustadores, os milhares de manifestantes sentaram-se na rua, guitarras e gaitas apareceram, as pessoas começaram a se beijar e a se acariciar, e assim a manifestação terminou. Você pode achar isso ridículo, mas acredito que uma união espontânea e anarquicamente emergiu aqui que talvez, no final, não deixe de causar uma impressão até mesmo no inimigo.



Deixe-me falar por alguns minutos sobre as perspectivas da oposição. Eu nunca disse que a oposição estudantil hoje é, por si só, uma força revolucionária, nem nunca vi nos hippies o "herdeiro do proletariado"! Apenas as frentes de libertação nacional dos países em desenvolvimento estão hoje em uma luta revolucionária. Mas mesmo elas não constituem, por si só, uma ameaça revolucionária efetiva ao sistema do capitalismo avançado. Todas as forças de oposição hoje estão trabalhando na preparação e apenas na preparação – mas em uma preparação necessária para uma possível crise do sistema. E precisamente as frentes de libertação nacional e a rebelião dos guetos contribuem para essa crise, não apenas como adversários militares, mas também como adversários políticos e morais – a negação viva e humana do sistema. Para a preparação e eventualidade de tal crise, talvez a classe trabalhadora também possa ser radicalizada politicamente. Mas não devemos esconder de nós mesmos que, nessa situação, a questão de saber se tal radicalização será para a esquerda ou para a direita permanece em aberto. O perigo agudo do fascismo ou do neofascismo não foi de forma alguma superado.


Eu falei de uma possível crise, da eventualidade de uma crise do sistema. As forças que contribuem para tal crise teriam que ser discutidas em grande detalhe. Acredito que devemos ver essa crise como a confluência de tendências muito díspares, subjetivas e objetivas, de natureza econômica, política e moral, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Essas forças ainda não estão organizadas com base na solidariedade. Elas não têm uma base de massa nos países desenvolvidos do capitalismo avançado. Até mesmo os guetos nos Estados Unidos estão na fase inicial de tentativa de politização. E, sob essas condições, me parece que a tarefa da oposição é, em primeiro lugar, a liberação da consciência fora de nosso próprio grupo social. Pois, na verdade, a vida de todos está em jogo, e hoje todos fazem parte do que Veblen chamou de "população subjacente", ou seja, os dominados. Eles precisam se conscientizar da política horrível de um sistema cujo poder e pressão crescem com a ameaça de aniquilação total. Eles devem aprender que as forças produtivas disponíveis são usadas para a reprodução da exploração e da opressão e que o chamado mundo livre se equipa com ditaduras militares e policiais para proteger seu excedente. Essa política de forma alguma justifica o totalitarismo do outro lado, contra o qual muito pode e deve ser dito. Mas esse totalitarismo não é expansivo ou agressivo e ainda é ditado pela escassez e pela pobreza. Isso não muda o fato de que ele deve ser combatido – mas a partir da esquerda.


Agora, a liberação da consciência da qual falei significa mais do que discussão. Significa, e na situação atual deve significar, demonstrações, no sentido literal. A pessoa inteira deve demonstrar sua participação e sua vontade de viver, ou seja, sua vontade de viver em um mundo pacificado e humano. A ordem estabelecida está mobilizada contra essa possibilidade real. E, se nos prejudica ter ilusões, é igualmente prejudicial, talvez mais prejudicial, pregar o derrotismo e o quietismo, que só podem jogar nas mãos daqueles que administram o sistema. O fato é que nos deparamos com um sistema que, desde o início do período fascista até o presente, renegou por seus atos a idéia de progresso histórico, um sistema cujas contradições internas se manifestam repetidamente em guerras desumanas e desnecessárias e cuja produtividade crescente é destruição crescente e desperdício crescente. Um sistema assim não é imune. Ele já está se defendendo contra a oposição, mesmo a dos intelectuais, em todos os cantos do mundo. E mesmo que não vejamos uma transformação, devemos continuar lutando. Devemos resistir se ainda quisermos viver como seres humanos, trabalhar e ser felizes. Em aliança com o sistema, não podemos mais fazer isso.


*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e articulista da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra).




[1] A Escola de Frankfurt foi um grupo de intelectuais, filósofos e teóricos ligados ao Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung), fundado em 1923 na Universidade de Frankfurt, na Alemanha. A corrente intelectual responsável pela Teoria Crítica, surgiu da confluência entre História, Filosofia, Sociologia, Economia e Psicanálise, com o objetivo de consolidar a crítica a razão dominadora da sociedade moderna como centro de desenvolvimento da violência e da dominação do capitalismo. 


[2] Ver “Querida Angela”: uma carta de Marcuse para Angela Davis. Disponível em: <https://www.cliooperaria.com/post/querida-angela-uma-carta-de-marcuse-para-angela-davis>. 


[3] Refere-se a estratégias de protesto e mobilização política utilizadas por movimentos sociais na década de 1960 nos Estados Unidos, sobretudo no movimento dos direitos civis, movimento de combate à guerra do Vietnã e movimento estudantil, baseado em ações de educação e formação política, não violência e manifestação cultural.


Referências 


MATOS, O. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.


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