Festa, cultura, livros e política: A FLIPEI 2025 é atacada, mas o barco pirata vai chegar com agito!
- Marcos Morcego
- 4 de ago.
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Por Marcos Morcego*
“Revolta. Revolução. Rebelião. Insurreição. Insurgência. Levante [...] Tumulto. [...] Intifada. [...] Algazarra. Alvoroço. [...] Agitação. [...] Subversão. Sublevação. Subvertimento. Implosão. [...] Destruição. Abolição. Perturbação. Interrupção. Cisão. Ruptura. Insubordinação. Insubmissão. Indisciplina. Desobediência. [...] Trancaço. Catracaço. Festa. Motim. Greve. Manifestação. Ato. Quebra-Quebra. Ocupação. Acampamento. Quilombo. Resistência. Retomada. Autodemarcação. Recuperación. Fuga. Deserção. Deriva. Drible. Esquiva. Xondaro. Mar Revolto”.
(Jean Tible, 2022)
Com 7 edições em 8 anos, a FLIPEI, que nasce em Paraty, buscando desafiar o mercado imobiliário, o mercado dos livros, também se propôs à ser uma alternativa crítica, político ideológica, frente aos avanços dessa intelectualidade burguesa e liberal que busca manter um modelo de exploração. Agora, pelo 2º ano seguido, faz uma parada em São Paulo, para agitar e subverter o dia e a noite paulistana. Mas, enquanto escrevia esse texto, algo marcou profundamente os novos rumos do navio pirata: a prefeitura de São Paulo e o Lobby Sionista se articularam para tentar acabar com a nossa festa, cancelando um contrato 5 dias antes do evento, e pontuando a mesa com presença de Ilan Pappe, que é atacado desde que chegou ao Brasil, demonstrando um claro compromisso com a agenda política da extrema direita. Afinal, o próprio Theatro Municipal recebeu um evento em que Michelle Bolsonaro foi prestigiada com uma medalha.
Enquanto acontece um cenário desastroso, puxado por várias frentes, como a privatização de espaços como o próprio Vale do Anhangabaú[1][2], mas também a forte presença policial, que marca todo o caminho desde a 25 de março, passando pelo Vale, Praça da República e seguindo quase esquina a esquina por Santa Cecília e Marechal Deodoro (além das bases que têm sido instaladas). E a peça principal, as mudanças dos espaços do governo e da prefeitura, enquanto expulsa a população, esquenta o mercado de especulação imobiliária de uma forma bizarra, e ameaça os serviços sociais, avançando, por exemplo, sobre a cracolândia - leia-se, expulsando as pessoas, soltando em outros lugares da cidade aleatoriamente ou empurrando como se fossem animais de um lado para o outro[3].
Um encontro com diversas editoras, livrarias, pessoas que fazem seu corre independente, regado de intensos debates políticos e culturais, além de shows muito especiais porque a gente também quer festa! Construir um breve espaço, que rompe com a normalidade do cotidiano, impulsionando ideias esquecidas ou deixadas de lado, para que o espaço de criatividade e de contato se expanda. Dessa forma a nossa Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI) se torna algo para além daquilo que é.
A proibição do uso da Praça das Artes, é por também sacarem que este evento olhando para a cultura e para a literatura possibilita conectar pensamentos, ideias e práticas radicais, caminhando pelas entranhas das cidades sufocadas por um processo que diz estar se “desenvolvendo” e se “modernizando”, quando na verdade só coloca o cimento sobre os rios e sobre a terra, entope as veias de carro e poluição, tampa o sol pela especulação imobiliária e por prédios cada vez com apartamentos menores e vazios. Quase como se fosse possível a concentração de movimentos que acontecem no subterrâneo buscando voltar a pulsar o coração que possibilita que a raiz de qualquer planta rompa com o tecido social, trazendo a oportunidade de enfrentamento e de coragem necessários para que as estruturas visíveis da sociedade capitalista sejam abaladas.
Um evento gratuito, tanto para o público, como para as editoras já traz a possibilidade de uma presença que extravasa as bordas do sudeste brasileiro e, mais especificamente de São Paulo (obviamente, não em sua completude). E além disso, a participação de pessoas de movimentos sociais, partidos, espaços acadêmicos, traz um encontro possível e a união de pautas, mobilizações, debates e esquadrinha os passos de “o que fazer”. Mas como bem ressaltado pela publicação na Autonomia Literária[4], também conta com Silvia Cusicanqui, vinda da Bolívia, Louisa Yousfi, franco-argelina e também a Cynthia McLeod, a primeira autora surinamesa traduzida para o pt-br[5].
A resistência marca o centro do evento, não só pela existência dele, mas como prática social de militantes que trabalham na realização e na produção do evento, mas também como posição que marca o lado em que estamos, como condenados da terra, lutando por uma sociedade em que possamos, de fato, viver. Já na quarta teremos poesia e cultura no centro do debate da resistência, um diálogo direto com o momento no qual nos deparamos, em que, principalmente pelo conservadorismo, mas também pelos setores que buscam formas de explorar os espaços das cidades; na sexta, esse debate é seguido em outra área, pensando as tecnologias ancestrais e as formas de existência fora da capilaridade capitalista, e com o debate que explora como os rios e os caminhos são infartados; no sábado aparece um grande debate sobre a criminalização da cultura, com mais de uma semana da prisão de Oruam, demonstrando o necrocapitalismo necessário ao capitalismo, urgente para a transformação social, e que se conecta diretamente com as pessoas que escrevem e estão às margens, trazendo uma perspectiva de enfrentamento direto como o próprio entendimento sobre a literatura, e, para encerrar esse dia, conta com o debate sobre a relação existente entre a privatização dos espaços que eram públicos, ou ainda, de lugares que são tomados, com a crise das cidades e o racismo ambiental que sufoca animais, plantas e pessoas.
Se falamos de resistência, e se falamos de uma perspectiva do Sul Global, não podemos ignorar dois elementos, de um lado a internacionalização das lutas socialistas (com suas devidas particularidades), de outro temos na nossa frente diversos genocídios, na Palestina, um exemplo aberto e inquestionável, mas com toda uma relação mundializada, inclusive com as “armas de israel” que chegam ao Brasil e são utilizadas no “genocídio negro brasileiro”[6]. Por isso, a primeira mesa, que acontece na quarta se chama “Genocídio sionista e resistência na Palestina”, que se relaciona diretamente com a primeira mesa de quinta, falando sobre as lutas no continente africano e a história de luta pan-africanista; já na sexta aparece um debate sobre a encruzilhada aqui na América Latina, e uma especificamente sobre a segurança pública (se preferirem, sobre as ferramentas do Estado de violência e encarceramento principalmente da população não branca, sob pretexto de guerra às drogas, se ampliando de forma agressiva sobre as mulheres na última década), e no mesmo dia se encerra com uma mesa (da qual terei a honra de mediar) falando sobre “educação em chamas”, ou melhor, mais do que educação, a pedagogia como realização das outras sociedades que desejamos construir; no sábado, e com muita honra, teremos uma mesa que marca esse elemento, mas também marca uma proposta de projeto político para a realidade social brasileira, que relembra Clóvis Moura e celebra seu centenário, e no domingo encerramos com mesas fenomenais, debatendo a China, debatendo a relação entre a Palestina e o Irã e lembrando e celebrando mais um centenário, de Frantz Fanon, e além disso, uma discotecagem comentada sobre “narrativas contracoloniais”.
Contaremos com a juventude da comunicação de esquerda, debatendo, na quinta-feira, a luta de classes e os algoritmos; na sexta relembraremos d’O Capital, para repensar sua atualidade; teremos, no mesmo dia, um grande debate sobre a luta das mães na sociedade brasileira, e mulheres falando sobre interpretar a América Latina (lembrando o registro de Silvia Federici, Angela Davis e Andayie em expor as lutas das mulheres nos anos 60/70 impulsionando grandes lutas políticas); No sábado resgataremos a luta pelo fim da escala 6x1; e domingo discutindo a machosfera e como os meninos estão sendo capturados pela lógica dominante para que o ciclo de opressão continue, e também teremos debates sobre as pessoas trans no esporte.
A programação este ano atinge um tamanho enorme, mas o debate não é só a mesa, são os livros, são as editoras lutando para sobreviver enquanto trazem registros e ideias de luta, mas também é crucial que nós, que lutamos dia após dia, estejamos lá, debatendo as ideias a partir das nossas perspectivas, radicalizando um evento que é radical e é pirata, mas também firmando uma base de enfrentamento contra a extrema-direita, o sionismo e a própria ideia de desenvolvimento. Por isso, e já podemos falar, a FLIPEI esse ano acontece no Espaço Cultural Elza Soares (Galpão do MST), ali nos Campos Elíseos.
A FLIPEI, espaços de luta, movimentos sociais, partidos e outras organizações e instrumentos políticos dão os braços, compartilham os problemas e se unem para o enfrentamento. Então, mesmo tendo sua presença enquanto um evento, é hora de dar movimento para o que forma esse evento, é hora de conectar as ideias que sempre estiveram no centro, com as lutas que são colocadas, também contra a FLIPEI, mas que fazem parte da história da luta de classes. Exigir uma Palestina Livre é lutar pela vida. Os Capitalistas, os poderosos, as grandes mídias e seus agentes da “intelectualidade” carregam e defendem o necrocapitalismo, o apodrecimento das nossas vidas, para que o sangue que cai da gente seja transformado em dinheiro e poder. A gente luta para que a vida não seja extrair dinheiro, que não seja escolher entre passar fome ou trabalhar. Mas para que possamos viver, comer alimentos, não sofrer essa violência cotidiana (tanto em nossas casas, como nas ruas).
Ser Pirata implica estar nesse embate central: os navios do governo mundial (assim como em One Piece), carregam pobres como prisioneiros, os poderosos como reis, nos impedem de pisar na areia da praia e descansar, pintam a caveira de nossas bandeiras como se fosse coisa de “vagabundo”, como se fôssemos inimigos. E talvez sejamos, porque vocês sufocam os rios da cidade, a gente luta para que o florescimento se sobreponha ao concreto.
E só para encerrar e resumir tudo: A Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, apesar dessa tentativa de ser apagada, seguirá, com suas Festas a noite, seus debates durante o dia, descontos nas editoras e com a nossa união para fazer acontecer e celebrar, questionando a vida que vivemos sob o capitalismo. Nada mais emblemático do que fazer esse evento em um espaço do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e comemorar com os bailes de sexta e sábado na nova unidade do Sol y Sombra. Como diz Roseli Salete Caldart:
A procura dos estreitos vínculos entre movimento social, MST, cultura e educação trazem de volta para o olhar pedagógico dimensões perdidas porém constituintes do pensamento educacional. Esse privilegiar da cultura como eixo da formação humana repõe questões: a relação entre cultura e produção e apreensão do conhecimento; entre cultura, identidades e memória coletiva; entre cultura, projeto social e trajetória histórica [...]. A cultura mostra toda a sua força educativa e é assumida aqui como uma matriz formadora (2012, p. 17).
*Marcos Morcego é comunicador político na Caverna do Morcego, articulista na Clio Operária (e um dos apresentadores da Barricada Vermelha, nosso programa jornalístico) e trabalhador da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. Militante, pesquisador sobre identidade e território e estudante de ciências sociais.
[1] Sobre a suposta revitalização: <Em SP, reforma do Anhangabaú pode ampliar exclusão e dar margem para privatização - Brasil de Fato>.
[2] Sobre a privatização: <Prefeitura de SP concede Anhangabaú para iniciativa privada por R$ 6,5 milhões após reforma de R$ 93,8 milhões | São Paulo | G1>.
[3] Sobre esse processo: <Mudança do governo de SP para o centro da capital vai criar prédios vazios, diz urbanista - Brasil de Fato>.
[4] Programação completa da FLIPEI: <Confira a programação completa da FLIPEI 2025 – Autonomia Literária>.
[5] Agradeço a Pedro Silva pela informação.
[6] Livro de Abdias Nascimento de mesmo nome na Editora Perspectiva.
Referências:
Política Selvagem. Jean Tible. Glac; N-1, 2022.
Pedagogia do Movimento Sem Terra. Roseli Salete Caldart. Expressão Popular, 2012.
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