Bets e Virginia Fonseca: a exploração mercantilizadora do vício
- Rafael Maranhão Torres
- 15 de mai.
- 5 min de leitura
Por Rafael Torres*

Nesta semana (escrevo na noite de terça-feira, mesmo dia do fato a seguir) Virginia Fonseca, influenciadora e dona da marca WePink, compareceu ao Senado para prestar depoimento sobre a divulgação de plataformas de apostas online[1]. A semiótica de sua presença foi alvo de numerosos debates, por isso não me debruçarei sobre isso; mas sim a conexão entre a exploração do sofrimento psicológico e o surgimento das casas de apostas.
Para um debate conciso, acredito ser relevante buscar a definição de neoliberalismo para um dos seus principais autores e críticos, David Harvey[2]. Para ele, o neoliberalismo é:
“Em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre concorrência. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e integridade do dinheiro³”
Esse modelo de acumulação, portanto, visa a maximização das liberdades através do mercado. O ser humano só pode alcançar seu ápice perseguindo-o pela via do egoísmo e individualismo. A normalização da ideologia neoliberal, como qualquer processo histórico de firmamento ideológico, só se tornou concreta, quase que palpável, quando passou a ser o valor central da vida humana; e é tão concreto – por isso quase palpável – que sequer é questionado. O apelo pela liberdade humana, visto sem estar ligado a qualquer discurso, é, por si só, extremamente convincente, é sexy e chamativo. Hayek, Friedman, Mises e a sociedade Mont-Pèlerin[4] sabiam disso. Mas se a liberdade do mercado garante a liberdade individual, o papel do Estado então é garantir a fluidez do processo de liberalização daquele mercado. A súplica pela liberdade humana, definidora da ideologia neoliberal, é tamanha ao ponto que uma grande quantidade de movimentos sociais foi seduzido, como os homens atraídos pelo canto de Iara, a sereia do folclore brasileiro, a rejeitar a interferência do Estado na economia, o que apenas facilita a tarefa que o Estado neoliberal deve cumprir.
Por isso, é importante entender a política como elemento interligado com a sociedade, os agentes atuantes e os interesses defendidos por estes. Se compreendermos a política apartada da economia, estaremos então retirando do debate público, portanto político, as questões referentes à exploração capitalista, e por conseguinte, distribuição de renda, universalização de direitos e todas as lutas sociais, por serem de ordem econômica. Isso resultaria em pensar que a divisão de classes, não mais negada nos discursos fantasiosos da direita, é um fenômeno de exclusão individual, portanto, carimba o capitalismo como sistema de mobilidade vertical. Perde-se, assim, a crítica à origem sociológica das desigualdades e ignora toda a formação histórica social brasileira.
Entretanto, a leitura vulgar do marxismo recai sobre alguns erros interpretativos. Para Luis Felipe Miguel[5], o Estado:
“não é neutro, mas nem por isso obedece cegamente ao que a burguesia deseja. Como já dizia Marx, ele opera para proteger a burguesia de si mesma”
O Estado, mesmo sendo balcão de negócios da burguesia, ainda concede políticas que vão na contramão do desejo da classe detentora, na mínima linha para manter o sistema vigente. Em Gramsci, podemos verificar que isso é o que ele denomina como hegemonia, ou seja, a capacidade de impor coerção e dirigir a sociedade, por parte da burguesia. Não significa gestar passividade, mas aceitação efetiva; em resumo, aceitação de que o mundo é desta forma. Os expoentes neoliberais, arrisco-me a dizer, leram Gramsci.
Agora retornando para Harvey, ele prossegue com uma explanação preciosa sobre o funcionamento do Estado neoliberal, sem contradizer Luiz Felipe Miguel. Harvey continua[6]:
“Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado da saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. [...]. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado [...]”
Com isso, conseguimos compreender como o sofrimento psíquico e o vício foram mercantilizados, como sugere o título. Nelson da Silva Junior, com outros autores, redigiu um capítulo elucidativo sobre esse processo[7]. Para ele, o nascimento da psiquiatria – bem verdade que anterior ao neoliberalismo – é a resposta médica ao surgimento da resistência humana às novas formas de produção, portanto, às novas relações de trabalho. Os sujeitos não se enxergam mais estando inseridos em conflitos históricos e estruturantes do capitalismo, mas como gestores de performance, maximizadores de resultados. A psiquiatria, como aponta o autor, trabalha para a venda dos psicofármacos; ela é ferramenta dessa performance maximizadora.
O Estado, conforme demonstrou Harvey, deve criar os mercados. A psiquiatria cria os remédios para lidar com a criação dos mercados e continuar operando. Enquanto isso, a OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece como patologia o vício em jogos de azar, sob o CID (Classificação Internacional de Doenças) F63.0 no CID-10 e 6C50 no CID-11. A ludopatia, o nome dado ao vício em jogos de azar, portanto, é de fato uma doença, tanto como uma gripe, ou câncer. Se é uma doença reconhecida pela OMS, ela carrega potencial destrutivo para matar. O debate poderia se estender sobre o conceito de necrocapitalismo ou necropolítica, caros à Gabriel Miranda e Mbembe, respectivamente, mas não farei essa discussão para evitar estender ainda mais essa breve exposição escrita no calor do acontecimento.
O fato é: a ida de Virginia ao Senado nada mais é do que protocolar, inclusive com ela assumindo com bastante tranquilidade que não se arrepende do seu trabalho de divulgação. É o Estado “protegendo a burguesia de si mesma”. Assumiu (Virginia) também que a conta utilizada nos vídeos de divulgação do jogo é fornecida pela empresa, obviamente ela não está jogando de fato. Virginia utilizou a fórmula don´t hate the player, hate the game (não odeie o jogador, odeie o jogo) para se eximir da culpa. Essa crítica, tampouco, se encerra na figura dela; Neymar foi um dos precursores na divulgação das casas de apostas e diariamente ainda o faz, bem como uma infinidade de influenciadores. E aqui, vale a ressalva, a nomenclatura “influenciador” não é por acaso, essas pessoas realmente possuem a capacidade concreta de moldar a opinião pública da forma que lhes for lucrativa. São os agentes atuantes citados um pouco mais acima, e defendem interesses próprios e capitalistas.
E não caíamos na ilusão da democracia a favor do povo e de que o Estado brasileiro está fiscalizando as práticas das casas de apostas em defesa do viciado em jogo que vendeu sua casa para tentar dobrar o valor. Só houve investigação quando o processo tomou proporções gigantes e foi denunciado pela mídia contra hegemônica. Minha intenção não é fazer um juízo de valor sobre Virginia, Neymar etc., mas é impossível a inércia diante do caos que as apostas causam na vida da classe trabalhadora, que, vivendo sobre o guarda-chuva neoliberal, é individualizada e gestada a partir da criação de novos sujeitos performáticos, altamente egoístas e completamente responsabilizados pelo seu fracasso, evitável apenas quando se vê a oportunidade de ganhar.
*Rafael é historiador, pós-graduando em Serviço Social, Ética e Direitos Humanos, editor-geral da Clio Operária, educador popular pela rede de cursinhos Confluências e pesquisador sobre Neoliberalismo.
REFERÊNCIAS
² HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014;
³ Ibidem p. 12;
4 A Sociedade Mont Pèlerin foi uma organização fundada na década de 40 do século passado para pensar os rumos da sociedade pelo liberalismo;
5 MIGUEL, L. F. Marxismo e política: modos de usar. São Paulo: Boitempo, 2024;
6 Ibidem p. 12;
7 JUNIOR, N. S et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFALE, V; JUNIOR, N. S; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2023. p. 131.
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