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A biopolítica do descartável: Trump, Tylenol e o Autismo

Por Jéssica da Silva Gurgel[1]


Neste mês, o ciclo da desinformação ganhou um capítulo surreal quando Donald Trump atribuiu o aumento de diagnósticos de autismo a um vilão farmacológico: o paracetamol. Longe de ser um mero delírio isolado, episódios como este funcionam como a ponta visível de um iceberg político mais profundo. Eles revelam a operação de um dispositivo de poder que, sob o capitalismo tardio, é obsessivamente orientado pela lógica da produtividade. A coincidência temporal com o Setembro Amarelo – mês de prevenção ao suicídio – não poderia ser mais simbólica.


Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)[2] revelam que o suicídio atinge de forma diferente países desenvolvidos e em desenvolvimento: nestes últimos, a pobreza é um fator de risco crucial, afetando principalmente populações vulneráveis como refugiados, indígenas e LGBT+. Já nas nações ricas, os grupos de maior risco incluem pessoas com transtornos mentais como a depressão, com índices especialmente altos entre jovens (15 a 24 anos) e idosos, sendo os homens mais propensos ao suicídio do que as mulheres. Neste cenário, um dado é particularmente alarmante: desde os anos 2000, as taxas de suicídio entre jovens aumentaram cerca de 30%. E, para a comunidade autista, a situação é ainda mais grave. Pesquisas indicam que crianças, adolescentes e adultos autistas têm probabilidade significativamente maior de apresentar ideação suicida e de realizar tentativas. Em adultos com diagnóstico tardio, por exemplo, o risco de tentativa de suicídio chega a ser 25 vezes maior do que entre não autistas[3].


Qual a relação entre esses dados e o discurso de Trump? Eles expõem o funcionamento de um dispositivo de poder que, no capitalismo tardio, organiza-se em torno da lógica da produtividade. A neurodivergência, frequentemente estigmatizada como improdutividade, é patologizada e tratada como problema a ser eliminado. A extrema direita, em sintonia com essa lógica, não questiona a estrutura que adoece; em vez disso, oferece bodes expiatórios reconfortantes — antes as vacinas, agora o paracetamol —, sempre deslocando a responsabilidade para um inimigo externo e nunca para o sistema que define quais vidas são consideradas válidas. O problema central, portanto, não é a falsidade factual da declaração, já refutada pela ciência, mas a arquitetura política que a sustenta: uma biopolítica perversa que, herdeira da tradição normalizadora estudada por Foucault, gerencia populações distinguindo corpos e mentes funcionais daqueles vistos como descartáveis.


O conceito foucaultiano de biopolítica[4] é crucial para compreender essa lógica. Se o poder soberano operava pelo “fazer morrer e deixar viver”, o biopoder moderno caracteriza-se pelo “fazer viver e deixar morrer”, administrando saúde, reprodução e longevidade da população. Seu mecanismo fundamental é a normalização: a criação de padrões de conduta e de corpos considerados saudáveis e produtivos, relegando os “anormais” a intervenções médicas, psiquiátricas ou sociais. A declaração de Trump sobre o paracetamol e o autismo é uma ilustração cristalina dessa lógica. Nela, identifica-se o “desvio” – no caso, o autismo, cuja prevalência diagnosticada aumenta justamente por avanços no conhecimento, na desestigmatização e no acesso a avaliações, e não por uma suposta epidemia – e, em seguida, propõe-se uma causa externalizável e, portanto, evitável: um medicamento banal. A sugestão subjacente é a de que o “problema” não apenas pode como deve ser erradicado. Essa mesma matriz biopolítica, que não se restringe ao autismo, explica a persistente psiquiatrização da diferença[5]. Sob esse prisma, transtornos como TDAH, depressão e ansiedade são frequentemente reduzidos a desvios a serem medicalizados e controlados, mascarando as pressões sociais e produtivistas que os geram. O que está em jogo, portanto, é a definição capitalista de qual vida merece ser gerida para viver e qual pode ser, silenciosamente, deixada para morrer.


O filósofo Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço[6], avança essa análise ao descrever a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. Nesta, não há mais necessidade de coerção explícita; nós nos tornamos "empresários de nós mesmos", explorando-nos na busca infinita por produtividade, sob a ilusão da liberdade. Esse excesso de positividade gera o que Han chama de "enfartes psíquicos": as epidemias de burnout, depressão e ansiedade. A genialidade perversa do sistema está em, ao mesmo tempo, causar esse adoecimento e individualizar a culpa. O sofrimento, que é social, é convertido em uma falha pessoal a ser tratada com remédios, enquanto a estrutura produtivista que o gera permanece intocada. É nesse contexto que a extrema direita encontra seu terreno fértil. Em vez de questionar um sistema que define a vida pelo seu rendimento, ela oferece bodes expiatórios: primeiro as vacinas, agora o paracetamol. A obsessão em encontrar uma "cura" para o autismo nega a neurodiversidade e reforça a ideia de que existências fora do padrão de produtividade são defeituosas e, portanto, descartáveis. A pessoa neurodivergente é tratada como uma máquina: se não pode ser "consertada" para a linha de produção, deve ser substituída. Dessa forma, a narrativa de Trump cumpre um duplo objetivo: enquanto alimenta o pânico moral com um inimigo externo, desvia a atenção da crítica ao sistema que verdadeiramente adoece. A busca por uma cura fantasmagórica obscurece a necessidade real de apoio, adaptabilidade e qualidade de vida para pessoas autistas e seus cuidadores. A fala, portanto, é a personificação de uma biopolítica que prefere culpar fantasmas a encarar sua própria contradição mortal: a de que, na busca obsessiva pela produtividade, define silenciosamente quem merece viver e quem pode ser deixado para morrer.


Para todos aqueles que se sentem desencaixados, exaustos ou invisibilizados pela lógica implacável do desempenho capitalista, este é um convite à revolução e resistência. Resistência que começa no reconhecimento de que a neurodiversidade, a sensibilidade diferente e os ritmos próprios não são falhas, mas formas legítimas de habitar o mundo. A verdadeira prevenção ao sofrimento extremo passa pela construção de redes de apoio, pela valorização de cada existência em sua singularidade e pela recusa coletiva a qualquer sistema que queira nos reduzir a máquinas de produzir. Que possamos, juntos, trocar a pergunta "como me consertar?" por outra, mais urgente e humana: "como podemos criar um mundo onde caibam todos os modos de ser?".


[1] - Jéssica da Silva Gurgel é Bacharela em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: jessicagurgel4@gmail.com.

[3] - Informações retiradas do artigo: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11042491/ 

[4] - FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[5] - FOUCAULT, Michel . História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978

[6] - HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.


 
 
 

1 comentário


Convidado:
30 de set.

Muito bom 👏🏼👏🏼👏🏼

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