Saneamento e mais-valia: o lucro invisível e a crise do comum
- Professor Poiato
- 4 de dez.
- 6 min de leitura
Por William Poiato
No bairro periférico de uma grande cidade brasileira, uma mulher gira a torneira e espera. A água não vem. No quintal, o esgoto corre a céu aberto, desenhando uma linha cinzenta que divide o espaço entre o possível e o invisível. A cena se repete em milhares de lares. Enquanto isso, nas bolsas de valores, empresas de saneamento recém-privatizadas celebram balanços positivos: o capital financeiro descobre um novo filão — transformar o básico em ativo. A promessa é de eficiência. O resultado, muitas vezes, é outro tipo de drenagem: a do excedente social.
O drama do saneamento brasileiro, antigo e persistente, não é apenas uma questão técnica ou administrativa. É o retrato de uma economia que transforma direitos em mercadorias e necessidades humanas em fluxos de mais-valia. Sob o chão das cidades, o cano que deveria levar dignidade leva também a marca da exploração histórica.
O dilema estrutural
Desde o Planasa, nos anos 1970, até as políticas recentes, o saneamento no Brasil se move entre dois polos: o público endividado e o privado seletivo. O primeiro carece de recursos; o segundo, de compromisso social. Ambos compartilham um mesmo horizonte: a lógica da rentabilidade.
Os dados impressionam. Mesmo com R$ 40 bilhões mobilizados entre 2007 e 2012, o país chegou a 2021 com apenas 14% da população do Norte e 30% do Nordeste atendidos por rede de esgoto. Em outras palavras, mais da metade da população brasileira ainda vive fora do ciclo da cidadania hídrica.
Não se trata apenas de falhas técnicas, mas de uma paralisia política: a água limpa não gera manchetes, e o esgoto não vota. A invisibilidade do tema é, paradoxalmente, o terreno fértil da desigualdade. A precariedade sanitária, naturalizada, é a forma contemporânea da exploração — silenciosa, difusa, diária.
O subsolo da mais-valia
A teoria de Marx ilumina esse subterrâneo com precisão cirúrgica. A mais-valia — o valor excedente extraído do trabalho vivo — não se limita à fábrica. Ela se infiltra em cada estrutura que reproduz a vida social sob o signo da mercadoria.
No saneamento, o trabalho do encanador, da operadora de estação de tratamento ou da catadora de recicláveis é apropriado em sua forma social: o capital investe na infraestrutura, mas o retorno não vem da universalização do serviço — vem do excedente tarifário, dos contratos indexados, dos fundos de investimento. A água, que deveria circular como bem comum, passa a fluir como mercadoria, medida por metro cúbico e taxa de retorno. E o esgoto, símbolo da vida negada, se converte em indicador de “performance ambiental” no portfólio de uma empresa.
Assim, o que Marx chamaria de “mistificação das relações sociais” ganha aqui forma líquida: o cidadão se vê como cliente, e a dignidade, como produto.
Da alienação hídrica ao fetichismo da infraestrutura
A genealogia da mais-valia revela que a exploração moderna opera por meio do fetichismo da mercadoria — a inversão pela qual relações entre pessoas se apresentam como relações entre coisas.
No Brasil do século XXI, isso se manifesta no fetichismo da infraestrutura: tubos, estações e parcerias público-privadas aparecem como soluções neutras, técnicas, inevitáveis. Por trás dessa aparência, o que há é uma economia política da desigualdade.
O Plansab e programas como o Saneamento para Todos propuseram indicadores de desempenho e metas de universalização, mas raramente consideraram os custos de operação, manutenção e justiça tarifária. O resultado é perverso: redes são inauguradas com pompa, mas logo abandonadas à degradação — repetindo o ciclo do Planasa, cuja ênfase na construção, e não na operação, levou à deterioração dos sistemas e a perdas altíssimas de água.
Essa desconexão entre o investimento visível e o serviço efetivo é o ponto cego da política sanitária. O capital se realiza na obra concluída — não na água que chega ao morador. A mais-valia, aqui, não está apenas no trabalho não pago, mas no tempo social não devolvido à população.
A política como espelho do capital
Mesmo com marcos legais sólidos (Leis 11.445/2007 e 12.305/2010), o avanço é ínfimo. Entre 2008 e 2021, o crescimento no abastecimento de água foi de apenas 3,54%, enquanto o esgotamento cresceu 17% — muito abaixo das metas do milênio.
Por que tamanha estagnação? Porque o saneamento, no jogo das políticas públicas, é estruturalmente desinteressante ao capital eleitoral. Não há marketing na tubulação. A agenda política só se move quando há pressão social — e, nesse caso, o silêncio é lucrativo. A carência de saneamento é também uma forma de acumulação: a doença, a precariedade e o tempo gasto buscando água reproduzem a dependência econômica e a subordinação social. Marx talvez dissesse que essa é a mais-valia ampliada, onde até o sofrimento é rentável, pois mantém a engrenagem girando.
Água e mais-valia: convergências invisíveis
A analogia entre o ciclo do saneamento e o ciclo da produção capitalista revela convergências profundas e perturbadoras. No capitalismo industrial, a fonte de valor é o trabalho vivo, aquele que produz mais-valia na esfera da produção. Já no saneamento neoliberal, o que gera valor é a própria vida social, transformada em necessidade vital passível de exploração econômica.
A forma de extração também se modifica: se, na fábrica, o excedente é produzido pelo trabalho não pago, nas políticas de saneamento ele se manifesta por meio das tarifas, das parcerias público-privadas e do endividamento público, que deslocam o custo da reprodução social para os ombros da população. A aparência, em ambos os casos, mascara a exploração: no primeiro, surge como troca justa no mercado; no segundo, como serviço público eficiente. Mas a essência é a mesma — enquanto o capitalismo industrial se sustenta pela exploração e alienação, o saneamento neoliberal opera pela exclusão e mercantilização do comum, convertendo um direito básico em instrumento de acumulação.
O espelho rachado do desenvolvimento
Há, contudo, uma fricção teórica entre tudo isso: poderíamos apostar na integração institucional e na clareza regulatória como caminho para a universalização. Ou insistir na sustentabilidade financeira e ambiental dos investimentos. Há ainda quem bote as fichas no fortalecimento do ciclo de políticas e da participação social.Mas todos, de certo modo, permanecem dentro do paradigma da gestão. Marx, por outro lado, desloca o problema: não se trata apenas de como gerir o saneamento, mas a quem ele serve — e de onde vem o excedente que o sustenta.
O “déficit hídrico” é, em essência, um déficit político de redistribuição da mais-valia social. A água que não chega ao morador é a mesma que jorra no campo irrigado do agronegócio. O encanamento ausente é o prolongamento da cerca. O esgoto não tratado é o retrato do trabalho não reconhecido.
Uma revolução subterrânea?
Se Marx via na fábrica o palco da luta de classes, o Brasil do século XXI mostra um novo cenário: o saneamento como campo de batalha invisível. Enquanto o capital transforma o direito em mercadoria, o desafio é reverter o fluxo — fazer a água correr de baixo para cima. A universalização do saneamento não é apenas uma meta técnica: é a socialização do excedente. Cada litro de água limpa entregue a uma comunidade periférica é, também, a negação de um modelo que lucra com a escassez. A crítica da mais-valia, nesse contexto, torna-se um chamado à repolitização do comum — à recusa de que a dignidade humana seja contabilizada em planilhas de retorno financeiro.
E talvez o gesto mais revolucionário seja o mais simples: abrir uma torneira e ver a água correr — não como mercadoria, mas como prova de que a vida venceu o capital.
Referências
LEONETI, Alexandre Bevilacqua; PRADO, Eliana Leão do; OLIVEIRA, Sonia Valle Walter Borges de. Saneamento básico no Brasil: considerações sobre investimentos e sustentabilidade para o século XXI. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, p. 331–348, 2011.
TUROLLA, Frederico A. Política de saneamento básico: avanços recentes e opções futuras de políticas públicas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2002. (Texto para Discussão, n. 922).
RIBEIRO, Silvio Paula et al. Evolução das políticas públicas relacionadas ao saneamento básico no Brasil na definição de Agenda-Setting. Revista de Administração e Contabilidade da UNIFAT, v. 17, n. 1, 2025.
TEIXEIRA, Adriano Lopes Almeida et al. A genealogia da mais-valia: filosofia, economia e crítica da economia política. 2014. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR), Belo Horizonte, 2014.



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