Por Marcos Morcego*

Quando o antigo escravo, pregado na cruz pelo dono, contorcia-se num sacrifício indescritível, quando o servo desabava sob o chicote do capataz ou sob o fardo do trabalho e da miséria, pelo menos se escancarava o crime de um ser humano contra outro, da sociedade contra o indivíduo - indivíduo este exposto, terrível em sua nudez, clamando aos céus em sua brutalidade. O escravo crucificado, o servo torturado, morria com uma praga nos lábios, e seu olhar que se apagava, repleto de ódio, anunciando vingança, caía sobre seus opressores.
[...]
Apenas a sociedade burguesa é que retirou o horror do genocídio por tê-lo tornado cotidiano, embrutecendo os sentidos tanto das vítimas quanto dos verdugos, cobrindo o drama da existência humana com a trivialidade, o grito de um náufrago com a ária do realejo, o corpo de um morto em combate com o pó da cidade grande.
Rosa Luxemburgo, Apenas uma vida humana![1]
O ano de 2025 sem se diferenciar da situação que se desenhava, de avanço de um neoliberalismo tecnocrata e genocida, tanto uma perspectiva global, quanto nacional com um avanço sobre as condições sociais, já difíceis, que vive a população do Brasil. A necropolítica[2], necessária e estruturada ao redor da sociedade capitalista continua sua marcha sanguinária, enquanto no neoliberalismo todo e qualquer momento nos é roubado, roubando nossas energias, barrando nossa inventividade e nos encurralando, financeira, social e politicamente.
Há um novo avanço da extrema-direita, não só sendo impulsionados para serem líderes de estado (como presidentes), mas também enquanto uma tecnocracia neoliberal de controle das vidas, dos dados, de cada movimento nosso; além dos infinitos ataques às minorias sociais, trazendo a exploração, a expropriação e a opressão para um cotidiano normalizado, ou seja, retomam a construção do próprio Estado capitalista, como diz Fanon sobre o colonialismo, “é a violência em estado primitivo”[3].
Os constantes ataques
Uma forma de ataque vinda de forma sistêmica acontece: nos direitos sociais[4], humanos[5] e na destruição da qualidade da vida. O genocídio que o capitalismo tornou cotidiano vem de várias direções, roubando nosso tempo de vida, invadindo nossas casas, nos torturando e nos matando.
Como nos diz Nancy Fraser: Capitalismo, como argumentarei aqui, designa melhor algo maior, uma ordem social que autoriza uma economia movida pelo lucro a predar os apoios extra econômicos de que necessita para funcionar: a riqueza expropriada da natureza e dos povos sujeitados; as múltiplas formas do trabalho de cuidado, que enfrenta uma desvalorização crônica - isso quando não é inteiramente rejeitado -; os bens e os poderes públicos que o capital exige e, ao mesmo tempo, tenta restringir; a energia e a criatividade do povo trabalhador”[6].
Um desafio para a esquerda
Apesar de sempre reforçar que existem movimentos que efetivamente buscam construir alternativas, como as comunas venezuelanas, ou o espalhamento das retomadas indígenas no Brasil, os caracóis que se formaram nas lutas zapatistas, ainda enfrentamos um grande desafio. Não conseguimos sair, no momento atual, de trás do movimento protagonizado por uma esquerda liberal que a cada dia se distancia de um movimento de massas e com expressão de força; mas também não estamos prontos para nos mostrar alternativos buscando pensar a subversão fora do radicalismo da direita, que atualmente são a maior expressão.
Por isso, como diz Ademar Bogo, “a identidade, na atualidade, deve perseguir um projeto, em negação do projeto dominante e, sem ignorá-lo, ultrapassar os limites por ele impostos”[7]. Como Adam Curtis buscou apresentar em alguns de seus documentários (como hypernormalization e the century of self), nós deixamos de apresentar novas possibilidades de mundo, talvez nós mesmos tenhamos deixados de acreditar, demonstrado através da falta de impacto e invenção que somos capazes de produzir hoje em dia.
Devemos, portanto, nos distanciar da ideia reforçada todo dia, de que “estamos cercados, que devemos tomar posse de nós mesmos, corrigir a nós mesmos, permanecer em estado de emergência, como uma base permanente, decididos, determinados”, porém, “protegendo nada além de um direito ilusório ao que não temos”. Precisamos recolocar a abolição do capitalismo no nosso horizonte, “a abolição da sociedade que possa ter prisões, que possa ter escravidão, que possa ter salário e, portanto, não a abolição como eliminação de qualquer coisa, mas uma abolição como fundação de uma nova sociedade”. Portanto a negação e a destruição como necessidade de possibilidades e alternativas[8].
Vida além do trabalho e a Tarifa Zero: mudar o trabalho e as cidades
Dois dos grandes debates que cercaram as nossas vidas foram: o debate sobre Vida Além do Trabalho (e falo aqui enquanto ação, não falando especificamente sobre o Movimento VAT[9]), tendo como principal pauta o fim da escala 6x1, ou seja, entrou em rota o debate sobre trabalhar menos, sem redução dos salários, sendo o início de um movimento que pode se expandir. Sobretudo com um debate antigo, já que tivemos Lucio Gregori como secretário municipal de transportes durante a gestão de Luiza Erundina, mas que tem seu maior marco sendo o, ainda não resolvido pelas esquerdas, 2013.
A tarifa zero, a proposta de que o transporte seja universal, gratuito e público, que atenda a todos, mas não apenas isso, uma proposta que necessita repensar a cidade, abrindo o debate não só para o que temos, mas para o que queremos. Duas pautas que se conectam pela melhoria da qualidade de vida, que aumentam as possibilidades de, já agora, vivermos além do trabalho. Ambos os debates podem ser relacionados em nível nacional, com as particularidades locais, mas levando nós, subalternas e subalternos, exploradas e explorados, oprimidas e oprimidos, a estar na frente da luta política, com nossas demandas.
Mais um enfrentamento
Porém, as apostas na maioria das vezes são direcionadas à um enfrentamento parlamentar, como diz José Aricó ao abordar a perspectiva de Eduard Bernstein[10] que “situava o problema no terreno puramente eleitoral e no da democratização de certas instituições, e não no terreno da produção social”[11]. Para Rosa Luxemburgo não deveríamos focar na questão parlamentar, mas ela seria interessante “na medida em que permitam intensificar a luta de classes contra a burguesia”[12].
Portanto, não se trata de descartar a questão parlamentar, mas entender a sua complexidade e a sua realidade política enquanto estrutura da sociedade capitalista. Porém o que define a luta de classes não é quantas pessoas de esquerda temos eleitas, mas se “esta[mos] em condições, e com disposição, de mobilizar também diretamente o povo em defesa de seus direitos políticos”[13]. Ou seja, expandir as pautas não tem que acontecer só por acontecer, mas a comunicação entre nossas lutas, em um terreno que impacta o dia a dia traz uma possibilidade interessante de reverter as forças.
Ou seja, fortalecer as ruas, nossas pautas, para que não aconteça apenas uma vitória em cima de uma lei, mas para resgatar as possibilidades de imaginar cada vez mais, de fazer o enfrentamento se tornar algo diário, canalizar nossas forças e golpear o inimigo (não em termo literal).
Para Rosa:
A massa trabalhadora deve prefigurar no presente o futuro pelo qual ela luta, mediante práticas e projetos que confrontem a institucionalidade estatal delegatória e refratária à participação protagonista das classes subalternas e antecipem esses embriões de poder popular e autogoverno aqui e agora. Hernán Ouviña
E como diz Marta Harnecker:
Para a esquerda, a política deve consistir na arte de descobrir as potencialidades existentes na situação concreta de hoje para tornar possível amanhã o que no presente parece impossível. Marta Harnecker
E esse é um convite coletivo para uma reavaliação urgente, de necessidade de força frente aos avanços violentos na cidade pelas polícias, pelas forças militares contra povos indígenas, quilombolas e pessoas do campo, contra as necropolíticas promovidas pelos governos, contra o avanço das big techs. Como diz a própria Marta Harnecker, “são enormes os desafios colocados para os povos da América Latina e para a esquerda”, portanto, “torna-se urgente uma alternativa – socialista ou como se quiser chamar-lhe -, se não estivermos dispostos a aceitar essa cultura integral do desperdício”[14].
Se gritar, mostrar, apresentar não está funcionando, é necessário a ação. Inventar novos métodos de mobilização, de tomar as ruas, de inundar toda a sociedade. Construir possibilidades no agora que possibilitem vislumbrar o futuro. “Quando a classe trabalhadora chegar ao conhecimento e à conclusão de não mais permitir as guerras, então as guerras vão tornar-se impossível”[15].
Por Tarifa Zero!
Por vida além do trabalho!
Por novos e outros futuros possíveis!
*Marcos Morcego é editor e articulista da Clio Operária, comunicador político pela Caverna do Morcego, estudante de Ciências Sociais (FFLCH-USP), pesquisador sobre Identidade, Território e Organizações Políticas e autor do livro "Por uma implosão da Sociologia"
[1] Texto presente no livro: Rosa Luxemburgo – textos escolhidos (1899-1914) vol. 1, de Isabel Loureiro na Editora Unesp.
[2] Necrocapitalismo. Gabriel Miranda. Editora Lavrapalavra.
[3] Os Condenados da Terra. Frantz Fanon. Editorial Adandé;
[4] Formação de cartel para rastrear e observar trabalhadores e controlar salários: <Cade investiga 33 multinacionais por formação de c... | VEJA>;
[5] Tentativa de dificultar a legalização do aborto: <Dificultar acesso ao aborto legal é ataque às mulheres, às meninas e aos direitos humanos | Oxfam Brasil>;
[6] Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. Nancy Fraser. Autonomia Literária;
[7] Identidade e luta de classes. Ademar Bogo. Expressão Popular;
[8] Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro. Fred Moten e Stefano Harney. Editora Ubu;
[9] Para entender o Movimento Vida Além do Trabalho: <Vida Além do Trabalho: entenda o movimento que prega o fim da escala 6 por 1>;
[10] Eduard Bernstein foi um político e teórico político alemão. Foi o primeiro grande revisionista da teoria marxista e um dos principais teóricos da social-democracia. Membro do Partido Social-Democrata, e o fundador do socialismo evolutivo e do revisionismo;
[11] Trecho retirado a partir do livro: Rosa Luxemburgo e a reinvenção da política, de Hernán Ouviña pela Editora Boitempo, na página 107;
[12] Mesmo livro citado acima, porém agora com a frase de Hernán Ouviña;
[13] Trecho de Rosa Luxemburgo retirado no mesmo livro, na página 115;
[14] Os desafios da esquerda latino-americana. Marta Harnecker. Expressão Popular;
[15]. Texto: Discurso de defesa em 20 de fevereiro de 1914, presente em: Rosa Luxemburgo – textos escolhidos (1899-1914) vol. 1, de Isabel Loureiro na Editora Unesp.
Comments