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A segunda entrevista apresentada no livro A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura

Por Marcos Morcego*


Falar sobre as prisões é também destacar os abusos e as violências. Sendo uma instituição que também se constrói sobre a noção de raça, ou reafirma essa construção social, Angela Davis também procura destacar quem está, no dia a dia, implicando as ações abusivas.


O exemplo da autora, pela época da entrevista, é a “notória prisão de Abu Gharib, em Bagdá”, e as informações públicas sobre “torturas, abusos e violência sexual”, com os EUA metidos no meio. Dizendo que “Assim como é difícil ver as fotos de tortura tiradas em Abu Ghraib [sendo que hoje as prisões que o exército de israel coloca palestinas e palestinos sequestrados assume a mesma forma], horripilantes como elas devem parecer - principalmente para as pessoas deste país que têm dificuldade em acreditar que uma mulher jovem e branca da Carolina do Norte pode ser uma autora ativa das torturas apresentadas -, essas práticas abusivas não podem ser descartadas como anomalias. Elas emanam de técnicas de castigo altamente incrustadas na história da instituição da prisão”.

No episódio de hoje, vamos para a segunda entrevista apresentada no livro A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura [1], abordando a violência, as torturas e a coerção sexual, pensando toda a estrutura histórica na qual se monta a prisão.

Sou Marcos Morcego, comunicador político, aqui na Caverna do Morcego, e esse é um projeto que atravessou minha vida, tanto enquanto militância, quanto em trampos com editoras que apareceram, geralmente também vinculadas às lutas. Além desse quadro, aqui no nosso canal também temos o projeto de Leitura e Discussão, que são vídeos semanais, lendo e disponibilizando o pdf. Também temos nosso podcast: Caverna do Morcego, disponível em quase todos esses aplicativos que da pra ouvir coisa.


Não se esqueçam de: curtir, comentar e compartilhar. Também sigam nossas redes sociais: @morcego_marcos_ no instagram e marcosmorcego.bsky.social, no bluesky.


Agora os agradecimentos:

Autonomia Literária, em que temos o cupom #MorcegonaAutonomia rolando, que garante 20% de desconto em todos os produtos do site [2];

Clio Operária, nossa revista maravilhosa, em que produzo artigos e sou editor e que conta com uma equipe muito pesada [3]; Contando com uma coisa muito especial, agora os roteiros da nossa série sobre Lei de Drogas, Encarceramento em Massa e Violência policial, serão publicados no nosso site eihn!?

E Editora Terra Sem Amos, editora pela qual publiquei meu livro: Por uma implosão da sociologia [4]. Lembrando que todo nosso roteiro será disponibilizado no site da Clio Operária.


Então, o que baseia essa entrevista da autora é entender essa violência como um processo padronizado dentro da nossa sociedade, pensando a partir da Democracia, já que é isso que o governo norte-americano diz defender, enquanto “deseja tratar os seres humanos como lixo”. Mas também se preocupa em como nos colocamos frente à isso, já que a escravidão existiu e persiste, já que a violência nas instituições prisionais existe, nós só nos colocaremos quando surgirem imagens o suficiente para nos chocarmos? E ainda mais, a partir disso, “as imagens em si foram esmagadoramente entendidas no contexto da necessidade de explicá-las em relação à democracia”, com isso, “a preocupação em resgatar a democracia norte-americana [e cabe perguntar qual democracia] deslocou o sofrimento dos prisioneiros para o segundo plano”. Com isso, a justificativa, a explicação, a necessidade quase de se defender pega o protagonismo, “em vez de um compromisso com o significado contemporâneo da tortura e da violência”.


E aí a autora traz uma reflexão importante sobre “a economia particular dentro da qual das imagens são produzidas e consumidas”, como no caso de Rodney King, em que o vídeo mostra a violência policial, mas o vídeo é utilizado para desenvolver a ideia de que, o operário agredido era na verdade o agressor. E quando muito, o que vemos, principalmente pelo sistema de justiça, pelas instituições de poder e pela mídia hegemônica é outro deslocamento, de que “esses atos de tortura e coerção sexual só são concebíveis como trabalho de indivíduos anômalos”, principalmente no que se refere à branquitude socialmente construída, enquanto os setores que são destacados são, num geral, perigosos.



Voltamos então para os linchamentos, que não era uma política “legal”, e tinha uma realização entre cidadãos e aqueles que não eram considerados, no máximo, e numa expressão muito utilizada por militantes da negritude brasileira, “cidadãos de segunda classe”. “Os linchamentos desempenharam um forte papel, estabelecendo um ambiente condizente com a transformação das constituições estaduais favoráveis à subordinação ao aparato legal, visando às necessidades do racismo”. O modelo econômico, político e social, abria passagem para essa prática grotesca, e ela realizada dessa forma extralegal, ajudou na “consolidação de Jim Crow”, o regime segregacionista.


Se a morte de um negro era mais facilmente justificada, hoje na pena de morte, mas também quando a polícia entra na favela, demonstram que existe uma continuidade histórica na forma de controle e de relação entre Estado, cidadão e aqueles [nós] que estamos na lata de lixo da sociedade. “Ao mesmo tempo, devemos manter em mente que, quando tais processos se institucionalizaram, os corpos dos brancos também podiam suportar o impacto dessa violência racial”. Aquela vítima, individualizada, a pessoa negra, se torna ideologicamente o grupo inimigo.


“Claro que a punição, ao longo da História, passou de espetáculo público a formas mais escondidas de violência, especialmente com a criação dos presídios. Presídios militares, da forma como existem atualmente, incorporam os regimes e as práticas desenvolvidas dentro do sistema carcerário doméstico. Quando a supremacia do aprisionamento aumentou e os linchamentos diminuíram sob esse impacto, a dimensão pública do aprisionamento começou a dar lugar a formas ocultas de violência”.


Embora o destaque seja dado às populações negras, as histórias racializadas são muitas, e o Estado não se define só no racismo anti-negro, não em uma lógica hierarquizada, mas em uma lógica multidimensional e uma estrutura que se adapta, desde o “ataque genocidaàs populações indígenas”, até “o racismo abastecido pela “guerra contra o terror”, que “é um processo muito complicado de racialização, pois, segundo se alega, tem em mira originários do Oriente Médio, mas isso, até mesmo como uma categoria geopolítica, é suspeito”. As comunidades que “praticam o islamismo” “no sul e no suldeste da Ásia”, por exemplo, também foram alvos no governo Bush, é o resgate do Samuel Hunttintong, um invasor norte-americano que é usado como referência na ciência política brasileira [5].


Então, a nossa própria identidade pode ser mobilizada, tirada do senso estático, sim, o racismo é histórico, mas também é social. “As variedades do racismo que definem o nosso período atual estão profundamente firmadas em estruturas institucionais e tão complexamente mediadas, que agora parecem ter sido removidas das pessoas que elas ferem com sua violência”.


“Tendemos a refletir sobre a tortura como um evento aberrante. A tortura é extraordinária e pode ser claramente distinta de outros regimes de punição. Mas, se levarmos em conta as diversas formas de violência ligadas à prática de aprisionamento [inclusive policial e nos tribunais] - circuitos de violência que se interligam -, então começamos a ver que o extraordinário possui alguma conexão com o ordinário. Dentro do movimento radical em defesa dos direitos das mulheres detentas, a rotineira revista nas cavidades sexuais é vista como uma forma de agressão sexual”. A violência dos presídios é estreitamente ligada com a violência do dia a dia. São formas relacionais do sistema impor sua dominação, às vezes sadismo, às vezes lucro, às vezes controle e poder.


Inclusive, conforme o debate da Davis, isso separa tipos de violências em cada caso, o que em certos espaços é aceitável, em outros não são. “Fanon uma vez levantou a questão de que a violência paira sempre sobre o horizonte do racismo. Em vez de contar com uma taxonomia dos atos que são definidos como tortura e os que não são, pode ser mais revelador examinar como um aparato de práticas institucionalizadas na realidade possibilita o outro”.


Importante salientar que dentro disso, essas instituições de violência, que reforçam, alimentam e abastecem o capitalismo, também abastecem uma dominação patriarcal e racista, sem, de forma alguma, isso querer dizer que apenas homens brancos que tocam seus projetos. Colin Powell mesmo “disse que as forças armadas eram a instituição mais democrática da nossa sociedade e criou um contexto no qual as pessoas poderiam fugir das restrições de raça e, podemos acrescentar hoje, também de gênero”, e isso é perigoso, já que “dentro de instituições que dependem das ideologias do domínio masculino, as mulheres podem facilmente ser levadas a cometer os mesmos atos de violência esperados dos homens - assim como os negros, em virtude de serem negros, não estão imunes à acusação de promoverem racismo”.


Essa forma hierárquica, é, segundo Powell, “o epítome da democracia”, ou seja, uma representação. E nisso nós encontramos, também, os limites das nossas lutas acerca dos direitos, afinal, não é sobre todes podermos ser do exército, mas é sobre o fim das guerras e de uma instituição que lucra com a morte.


E aí também é preciso falar sobre homens e mulheres, já desde Simone de Beauvoir, mas ganhando um impulsionamento com a luta do “feminismo das mulheres de cor”, e das pessoas trans, mas também num quadro que marca o trabalho acadêmico, e tudo isso dentro e fora do mundo ocidental, já é reconhecido que “a categoria mulher é uma unidade falsa”, ainda que continuemos na “tendência a utilizar noções essenciais sobre o que as mulheres fazem e não fazem e sobre o que os homens fazem e não fazem. A noção de que os homens têm uma inclinação natural para cometer violência sexual e de que essa é a raiz de toda a injustiça é algo que a maior parte das boas feministas abandonou há muito tempo”.


Além de seguir uma ordem biologizante, em outros trabalhos de Angela Davis e de muitas e muitos militantes negres, vimos como isso também é utilizado para reforçar a ideologia racista. “Uma abordagem mais produtiva seria refletir mais precisamente sobre as formas de socialização e institucionalização e sobre o grau em que esses moldes e estratégias misóginas estão disponíveis para as mulheres, assim como para os homens[...]. Volto, portanto, à questão daqueles circuitos de violência estabelecidos nos quais tanto as mulheres quanto os homens tomam parte, às técnicas de racismo praticadas não apenas pelos brancos, mas também pelos negros, latinos, americanos nativos e asiáticos. Hoje, podemos dizer que a todos nós tem sido oferecida uma oportunidade igual de perpetuar o domínio e o racismo masculinos”.


E isso é a análise feminista de Davis, entender relação e totalidade, superando as disciplinas e as categorias divisórias.


E dentro de tudo isso, relacionado com o livro, precisamos discutir as engrenagens do “complexo industrial-prisional”, que não são só os presídios, mas também as cadeias feitas nos territórios dos povos originários, os centros de detenção que capturam imigrantes, as prisões militares, mas também tudo que alimenta esse sistema, como a indústria das armas, as terceirizações e privatizações dos serviços, percorre toda a sociedade.


“As ideologias têm um papel central ao consolidar o complexo industrial-prisional - por exemplo, o marketing da ideia de que os presídios são necessários à democracia e que são o maior componente para a solução dos problemas sociais”, quando a gente vê que desde as invasões policiais nas favelas e nas periferias, as apreensões de drogas e o próprio aprisionamento funcionam como ferramentas do sistema pra tudo continuar rodando. Inclusive, essa permissão que o governo dos Estados Unidos continua a ter de enviar imigrantes para prisões em outros países, como é o caso de El Salvador esse ano [6], funciona nessa mediação punitiva. Acontecendo, segundo Angela Davis explica, a “prática do tráfico de prisioneiros pelas fronteiras estaduais, bem como o tráfico pelas fronteiras nacionais”.


E por isso, o abolicionismo. Que seguiremos longas palavras de Angela Davis:

 “Ao exigirmos a abolição das prisões, não imaginamos o desmantelamento isolado das instalações que chamamos de presídios e cadeias. Não é esse o projeto da abolição. Nós propomos a noção de um complexo industrial-prisional para refletir o grau com que as prisões são profundamente estruturadas pelas condições socio-político-econômicas de forma que essas mesmas condições sejam desmanteladas. Então pode-se dizer que a abolição das prisões é uma forma de discutir os problemas da versão particular de democracia representada pelo capitalismo norte-americano [...].


O capitalismo - especialmente em sua forma global contemporânea - continua a gerar problemas que nem ele nem suas prisões são capazes de solucionar. Desse modo, a abolição das prisões exige que reconheçamos o grau em que a nossa atual ordem social precisará ser radicalmente transformada”.


Pobreza, desigualdade e racismo alimentam toda essa cadeia do sistema, que lucra e domina a partir disso, enquanto esses modelos e essas instituições de ordenamento social, reforçam a pobreza, a desigualdade e o racismo. E por isso, “democracia da abolição”, por um lado é desmantelar o sistema, por isso, e Davis resgata Du Bois, também é a construção do novo. Segundo ele, “para abolir completamente as condições opressivas produzidas pela escravidão, novas instituições democráticas teriam de ser criadas”.


Se o que vemos é uma “modernização sem transformação”, como disse Clóvis Moura ao olhar como as instituições brasileiras mantêm viva a base colonial, assim como todo o sistema capitalismo [7], nós não escapamos então dessa sociedade que começa a se enraizar com a dominação colonial, racista, patriarcal, classista. “E essa herança não nasceu apenas com os prisioneiros negros, mas também com os prisioneiros latinos, americanos nativos, asiáticos e brancos pobres”. 


E por isso a autora usa “abolição das prisões”, que talvez ainda falte uma relação melhor pro Brasil, talvez no quadro da “abolição das polícias”, mas também chegando no ponto da “abolição da propriedade privada”. Se não conseguimos chegar em todas as classes, partiremos daqueles que tão ao nosso lado, despossuídos, subalternos. Construir um projeto que possibilite “reimaginar as instituições, ideias e estratégias, e criar novas instituições, ideias e estratégias que tornarão os presídios obsoletos”.


Para a autora, “cabe a nós insistir na obsolescência do encarceramento como forma dominante de castigo dominante de castigo, mas não podemos fazer isso brandindo machados e investindo literalmente contra os muros dos presídios [ainda que também], mas sim reivindicado novas instituições democráticas [pensadas e construídas por nós] que discutam os problemas que nunca são discutidos pelos presídios de maneira produtivas”.


FIM

Referências:


[1] A democracia da abolição, para além do império, das prisões e da tortura. Angela Davis. Difel: <https://www.livrariasimples.com.br/produtos/a-democracia-da-abolicao-para-alem-do-imperio-das-prisoes-e-da-tortura-angela-davis-difel/>.

[2] Site da Autonomia Literária: https://autonomialiteraria.com.br/

[3] Revista Clio Operária: https://www.cliooperaria.com/

[4] Site da Editora Terra Sem Amos: https://tsaeditora.com.br/ / Drive com o livro gratuito https://mega.nz/folder/UYNwQZZS#rCNoahoz13hVy7Elyc4Ymg

[5] Teoria e ação libertárias. Maurício Tragtenberg. Editora Unesp

[7] Sociologia do negro brasileiro. Clóvis Moura. Perspectiva.


*Marcos Morcego é comunicador político e educador popular, militante por Terra e Território das perifeiras de SP


 
 
 
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