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O Krill e a Totalidade: Uma Crítica Dialética da Crise Antártica

Imagem | National Geographic
Imagem | National Geographic

No silêncio gélido do Mar de Weddell, um enxame de krill antártico se agita em movimentos sincronizados, seus corpos translúcidos refletindo a luz que mal penetra a superfície. Dois observadores os estudam: um cientista com sensores que medem seu impacto no ciclo do carbono; um pescador que vê neles o sustento de uma indústria global. Entre eles, uma contradição palpável — o mesmo organismo que sustenta ecossistemas e regula o clima é também um recurso a ser explorado.


Essa cena sintetiza um dilema importante das fontes analisadas: o krill como engrenagem biogeoquímica e como elo vulnerável de uma teia de vida. Para entender a crise antártica, é preciso ir além da ecologia e mergulhar na ontologia do ser social, onde trabalho, totalidade e contradição revelam que a ameaça ao krill é, em última instância, uma crise da humanidade consigo mesma.  


Mapa da nature de risco dos Krill
Mapa da nature de risco dos Krill

A Dialética do Krill: Entre Natureza e Sociedade 

O trabalho é o fundamento do chamado ser social, o ato que transforma a natureza e, ao mesmo tempo, transforma o homem. O krill, nessa perspectiva, não é apenas um animal — é um objeto de práxis humana. Sua pesca industrial, seus ciclos biogeoquímicos mapeados por satélites, até mesmo os tratados que regulam sua captura são produtos de uma mediação social complexa. Cientistas reduzem o krill a uma "bomba biológica" de carbono, um sistema a ser otimizado; o veem como um nó em uma rede de interdependências. 


O krill antártico (Euphausia superba) desempenha um papel biogeoquímico fundamental no Oceano Austral, atuando como um "engenheiro climático" em miniatura. Suas migrações verticais diárias — entre a superfície, onde se alimenta de fitoplâncton, e as profundezas, onde libera fezes  — funcionam como uma "bomba biológica", transportando carbono orgânico para as camadas abissais, onde fica sequestrado por séculos. Além disso, seu metabolismo recicla ferro, um nutriente limitante nas águas antárticas, liberando-o de forma biodisponível e estimulando novas florações fitoplanctônicas, que por sua vez absorvem CO₂ atmosférico. Suas fezes, ricas em partículas carbonadas, afundam rapidamente, contribuindo com até para os fluxos biogeoquímicos profundos. Assim, esse pequeno crustáceo não só sustenta a teia alimentar polar, mas também regula ativamente os ciclos globais de carbono e nutrientes, tornando-o um tipo de "plâncton guardião" do clima terrestre. 


Mas há um alerta: nenhuma dessas visões escapa à contradição entre essência e fenômeno. A ciência que decifra o krill como sequestrador de carbono (essência) coexiste com a indústria que o trata como commodity (fenômeno), e essa cisão é a raiz da crise.  


A Totalidade em Colapso 

O Oceano Austral é um laboratório da dialética. Quando o krill migra para águas mais profundas para escapar do aquecimento  ele não apenas altera o ciclo do ferro — desencadeia efeitos em cascata que vão da fome de pinguins à liberação de CO₂. Aqui, a totalidade social se revela: a pesca do krill não é um ato isolado, mas um elo em uma cadeia que conecta subsídios governamentais, hábitos de consumo asiáticos e a erosão de solos antárticos. A CCAMLR,  (Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos) regula a pesca de krill visando equilibrar exploração econômica e preservação ecológica,  sem integrar plenamente os modelos climáticos, opera na lógica da sociabilidade pura do capitalismo — onde relações contingentes (o mercado) se sobrepõem às necessidades orgânicas (a preservação).  


A Fenda Ontológica: Ciência vs. Saber  

Podemos distinguir a resposta animal (reações instintivas) da resposta humana (mediação consciente). A ciência ocidental, ao quantificar o krill em toneladas de carbono ou quotas pesqueiras, oferece uma resposta — mas é suficiente? A ironia é amarga: quanto mais a tecnologia avança (satélites, modelagem biogeoquímica), mais óbvia se torna a necessidade de saberes que Lukács chamou de generidade consciente — uma ética que supere a particularidade do lucro em nome do todo.  Ou que olhe este pequeno animal como parte do todo, assim como a si mesmo, render o real (imaginado) ao Real (vivenciado).


 O Antropoceno como Questão Ontológica  

O krill antártico é um microcosmo do paradoxo humano: dominamos a natureza para entendê-la, mas esse domínio nos aliena dela. As fontes científicas revelam a urgência, mas é a totalidade quem aponta o caminho. Se o trabalho humano criou a crise (pesca, CO₂), só uma práxis transformadora — que enxergue a sociedade como totalidade — pode revertê-la. A pergunta final não é técnica, mas política: Quem responderá pelo krill? Os modelos da CCAMLR, que trata o oceano como tabuleiro de xadrez econômico? Ou uma aliança entre ciência e saberes tradicionais, capaz de ver no enxame não apenas carbono, mas um pulsar de vida que nos lembra: não há ser social sem natureza.  


Sobre o gelo que derrete, um satélite ajusta seu foco para medir a biomassa de krill. Abaixo, uma baleia cruza a água turva, sua barbatana cortando a superfície como um aviso — ou um último chamado à consciência.


Referências


CAVAN, E. L. et al. The importance of Antarctic krill in biogeochemical cycles. Nature communications, v. 10, n. 1, p. 4742, 2019.


FLORES, Hauke et al. Impact of climate change on Antarctic krill. Marine Ecology Progress Series, v. 458, p. 1-19, 2012.


LUKÁCS, Georg. A reprodução da sociedade como totalidade. Estudos de Sociologia, v. 1, n. 1, 1996.

 
 
 

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