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O impacto: quando a avaliação ambiental serve ao capital e não à nação

À beira de uma rodovia recém-inaugurada na Amazônia, homens engravatados aplaudem. Uma faixa anuncia: “o progresso está chegando”. Ao redor, o verde dá lugar ao barro.


Pequenas placas indicam que a obra possui “licença ambiental aprovada” — como se aquele pedaço de floresta tivesse sido negociado diretamente com a natureza. Mas quem, de fato, concedeu essa permissão? E em nome de quem?


A cena sintetiza um paradoxo moderno: enquanto o discurso ambiental se institucionaliza, as estruturas que deveriam proteger os ecossistemas são, muitas vezes, capturadas por interesses que pouco têm a ver com soberania nacional — e tudo a ver com a lógica do capital globalizado.


A ilusão do controle técnico


A Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) surgiu como uma promessa: permitir que obras públicas e privadas fossem planejadas considerando seus efeitos sobre o meio ambiente. Um instrumento aparentemente técnico, neutro, científico.


Com o tempo, no entanto, a AIA se transformou em um ritual burocrático que, mais do que prevenir danos, legitima decisões previamente tomadas. O problema não está apenas em como a AIA é feita — mas no que ela esconde. Ao fragmentar o território em parcelas analisáveis, ao dividir impactos em “positivos” e “negativos”, e ao tratar o meio ambiente como um conjunto de variáveis isoladas, a AIA despolitiza o debate. Transforma conflitos sociais em dados, desloca decisões estratégicas para o terreno da técnica e omite a pergunta central: a serviço de que projeto de país essa obra está sendo realizada?


A questão nacional como ausência


O marxismo latino-americano desenvolveu uma reflexão potente sobre o papel da nação em contextos periféricos. Diferentemente do centro capitalista, onde o Estado historicamente atuou como agente do capital nacional, nas periferias — como o Brasil — a construção do Estado moderno ocorreu sob forte dependência externa. Isso gerou projetos nacionais contraditórios: ora em nome da soberania, ora como pontes para o capital transnacional.


Nesse cenário, a natureza passou a ser tratada como ativo estratégico. Não mais como bem comum, mas como recurso a ser convertido em valor. E é aqui que a crítica à AIA se aprofunda: ela não serve à defesa do território nacional, mas sim à sua integração subordinada ao mercado global.


Quando uma empresa estrangeira obtém uma licença para extrair minérios da Serra dos Carajás, não estamos apenas diante de um “empreendimento com impacto controlado”. Trata-se de uma decisão sobre o uso de um território estratégico, tomada com base em critérios empresariais, não por uma política de desenvolvimento autônomo. A AIA, nesse contexto, atua como escudo legal — legitimando um modelo de desenvolvimento que compromete a própria ideia de soberania.

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A política disfarçada de ciência


Muitos ainda acreditam que a AIA é uma ferramenta técnica, acima das ideologias. Mas essa crença é, em si, profundamente ideológica. A noção de que a natureza pode ser “compensada”, de que os danos podem ser “mitigados”, e que os projetos são “ambientalmente viáveis” mesmo em territórios sensíveis, parte de uma racionalidade essencialmente utilitarista: é o pensamento do capital travestido de ciência.


Ao desconsiderar contradições de classe, conflitos territoriais e relações de poder, a AIA mascara as disputas reais em torno do território. Ignora, por exemplo, que uma hidrelétrica considerada “viável” pode significar a expulsão de povos ribeirinhos, a destruição de modos de vida e o aprofundamento da desigualdade regional. Avaliações baseadas em modelos computacionais e indicadores ambientais não levam em conta a justiça social nem a autodeterminação dos povos.


Impacto, sim — mas sobre o quê?


O conceito de “impacto” tornou-se uma abstração. Raramente se pergunta: quem vai sofrer o impacto? Quem vai lucrar com ele? Esse impacto fortalece ou destrói um projeto nacional autônomo?


Uma rodovia no Cerrado pode, sim, facilitar o escoamento da soja para a China. Mas também pode dizimar territórios camponeses, comprometer aquíferos estratégicos e acelerar o avanço do agronegócio sobre comunidades tradicionais. Que tipo de nação se constrói assim?


A ausência da questão nacional nos debates ambientais revela uma miopia perigosa. Ao dissociar o meio ambiente de soberania, corre-se o risco de transformar o país numa mera paisagem para investimentos. A floresta passa a ter valor como “serviço ecossistêmico”, mas não como espaço de vida, cultura, história e resistência. Seus povos são convertidos em “populações impactadas” — expressão que esvazia seus direitos e suas lutas.


Soberania ou subordinação?


A crítica à AIA não é que ela seja mal feita — é que ela serve a um projeto errado. Um projeto que transforma o território em zona de sacrifício para alimentar a máquina do capital, ao invés de defendê-lo como espaço político, coletivo e soberano.


Um país que exige licenças ambientais para conceder terras a mineradoras estrangeiras, mas reprime comunidades que tentam defender seus rios, não é soberano — é cúmplice. Um Estado que calcula impactos sem considerar os interesses populares não está planejando — está cedendo. E um povo que não debate que tipo de nação quer construir, apenas sobrevive às decisões que outros tomam.


O futuro como disputa


Criticar a AIA não é negar a ciência nem rejeitar a regulação. É reivindicar a politização radical da gestão ambiental. É preciso recolocar a questão nacional no centro do debate ecológico. Não há projeto ambiental sério que ignore:

  • a dependência externa,

  • a concentração fundiária,

  • a desigualdade social,

  • e a lógica predatória do capital transnacional.


A avaliação de impacto deveria começar com uma pergunta essencial: este empreendimento contribui para um projeto nacional justo, autônomo e ecológico? Ou está a serviço de reforçar as correntes que nos mantêm subordinados?


Talvez o verdadeiro impacto da AIA não esteja no meio ambiente — mas na forma como ela nos impede de imaginar outro país possível.



Referências



MENEGUZZO, Isonel Sandino; CHAICOUSKI, Adeline. Reflexões acerca dos conceitos de degradação ambiental, impacto ambiental e conservação da natureza. Geografia (Londrina), v. 19, n. 1, p. 181-185, 2010.  


SPADOTTO, Claudio Aparecido. Classificação de impacto ambiental. Comitê de Meio Ambiente, Sociedade Brasileira da Ciência das Plantas Daninhas, p. 1-4, 2002.


Vigevani, T.. Notas sobre a questão nacional no Manifesto Comunista, em Marx e no marxismo. Lutas Sociais, (4), 33–54. [https://doi.org/10.23925/ls.v0i4.18869]  2004


 
 
 

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