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O bom senhor e a democracia racial: debate crítico com Paulo Freire

Por Marcos Morcego*


“É o pensamento feminista que me dá força para fazer a crítica construtiva da obra de Freire (da qual eu precisava para que, como jovem leitora de seus trabalhos, não absorvesse passivamente a visão de mundo apresentada), [continua bell hooks dizendo que] existem muitos outros pontos de vista a partir dos quais abordo sua obra e que me permitem perceber o valor dela, permitem que essa obra toque o próprio âmago do meu ser [...]. Encontrei Freire quando estava sedenta, morrendo de sede (com aquela sede, aquela carência do sujeito colonizado, marginalizado, que ainda não tem certeza de como se libertar da prisão do status quo), e encontrei na obra dele (e na de Malcolm X, de Fanon, etc.) um jeito de matar essa sede. Encontrar uma obra que promove a nossa libertação é uma dádiva tão poderosa”. [1]


Salve Salve família, suave? Marcos Morcego aqui, comunicador política da Caverna do Morcego, hoje com um conteúdo diferente daquilo que temos trabalhado. E o tema é Educação como prática da liberdade, livro do patrono da educação brasileira, Paulo Freire [2]. Hoje estabeleceremos um diálogo crítico com o capítulo 2 deste livro, em que o autor discute Sociedade Fechada e Democracia, mas entendendo que é um livro de 1965, que o próprio autor atualiza suas proposições, em diálogo permanente com sua proposta não só educacional, mas também pedagógica.


O intuito aqui não é descartar nem essa obra, que traz pontos fundamentais, mas no centenário de Clóvis Moura, Patrice Lumumba, Fanon, Malcolm X, os 90 anos de Lélia Gonzalez, além de uma luta permanente dos povos oprimidos e rebeldes do mundo todo pela sobrevivência e superação do sistema capitalista, é no mínimo importante destacar certos pontos, revelando o movimento dialético de entendimento, pesquisa e transformação, que muitas vezes atingem a gente, mas que podem ser superados, com Paulo Freire sendo um grande exemplo. Mas quando publiquei sobre esse capítulo, uma galera disse gostar do livro, e outra gostaria de entender melhor as críticas, então aqui a gente se esforça em trazer esses aspectos no espírito de fraternidade e crítica necessários.


Queria lembrar vocês de algumas coisas antes da gente começar:

1- Segue, curte, comenta e compartilha, aqui na Caverna também temos vídeos de leitura e discussão, playlists de debates e muito mais;

2- Além disso, pelo link no nosso perfil vocês podem acessar o nosso podcast: Caverna do Morcego, que conta, por exemplo, com um episódio sobre Paulo Freire e Gramsci, pra discutir humanismo e liberdade; [3]

3- A gente integra o quadro da revista Clio Operária, recomendo fortemente ler o texto das e dos camaradas também; [4]

4- Temos cupom na Autonomia Literária, com #Morcegonaautonomia, que te dá 20% de desconto [5]

5- Nosso livro foi Por uma implosão da Sociologia foi publicado pela Editora Terra Sem Amos, sim, ele tá gratuito no nosso drive, mas é barateza no site, e vcs apoiam um projeto mt brabo [6]

6- A gente tem aí as formas de apoiar a Caverna do Morcego, pelo apoio coletivo? apoia.se/cavernamorcego, e pelo pix, que é o email para contato: podcastmorcego@gmail.com, bora pro episódio?


25 anos depois do livro de Paulo Freire, Jacob Gorender publicava pela primeira vez A escravidão reabilitada [7], com um capítulo falando sobre “escravidão e abolição na perspectiva acadêmica”, em que destaca o prestígio que ainda tinham Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, em que, ambos defensores de um branqueamento, destacavam teorias sobre a formação social brasileira que carregavam “o caráter patriarcal excepcionalmente benigno da escravidão luso-brasileira e da vigência da democracia racial em nossa sociedade”. Na década de 70, eles tem seus postulados questionados, mas nos anos 80 eles retornam ao cânone.


Nesse ponto, a ideia de consenso, muito mais do que coerção, mais do que a força mesmo, se tornava a base da escravidão colonial, ainda que em certos círculos já se destacasse esse período até como um modo de produção próprio, que conectava a colonização com o que desembocaria no capitalismo.


Paulo Freire abre a discussão, buscando entender as nossas experiências democráticas, no momento em que a ditadura empresarial cívico-militar está começando, retornando à uma breve análise do período colonial. Porém, apesar de uma abertura muito interessante, ele se utiliza de Alexis Tocqueville para falar de democracia, e nesse ponto, falta, como apareceu para mim em uma conversa com a camarada, amiga e moderadora da Caverna, a análise da questão racial, que é fundamental, seja para entender o Brasil, seja os Estados Unidos. O defensor da liberdade diz que é com as próprias mãos que se faz a democracia, porém é importante lembrar de sua defesa sobre o extermínio indígena, e que o problema da escravidão negra não estaria na ausência de liberdade ou de democracia, mas no desgaste econômico e mudanças morais cristãs [8].



Só que nosso patrono, habilmente, coloca a posição em defesa de experiências de autogoverno (ainda que sem saber se é uma defesa nacionalista ou autônoma), ainda que não cite exemplos de resistência ao escravismo, como os Quilombos, pontua que quem estava no poder se distanciava de qualquer experiência democrática. Resgata então Gilberto Freyre para apontar para o domínio de grandes terras e de indígenas e africanos trazidos à força para cá. Porém ele parece pensar a possibilidade de “condições necessárias ao desenvolvimento de uma mentalidade permeável, flexível, característica do clima cultural democrático”, afirmando que “os nossos colonizadores não tiveram - e dificilmente poderiam ter tido - intenção de criar, na terra descoberta, uma civilização. Interessava-lhes a exploração comercial da terra”, parece aquela ideia de contrapor colonização por povoamento da colonização para exploração, quando, o ponto central é que qualquer uma dessas formas busca expandir a acumulação originária às custas de povos racializados, colocando-os na subalternidade, quando não são alvos de genocídio, “apenas”.


Não contente, Paulo Freire se apoia em Vianna Moog, mais especialmente na tese de que os portugueses deveriam ter integrado o que veio a ser chamado como Brasil, uma integração nas palavras de Freire, “com a terra nova”, “a de ficar sobre ela”. Porém Vianna Moog era desses que afirmava que o clima amazônico era impróprio pra civilização, ou seja, descartando os indígenas desse processo; ficando na mescla entre a admiração da civilização branca norte-americana (à custa de um enorme genocídio), mas seguindo a ideia de uma mestiçagem mirando o branqueamento [9].


Então Paulo Freire fala sobre a formação “da grande propriedade”, “da fazenda”, “do engenho”, “terras grandes, imensas terras”, e que quem ia morar na casa do proprietário era de certa forma “protegido”. Quem eram os inimigos? as “incursões predatórias dos nativos”. Segundo o autor isso são “as primeiras condições culturológicas em que nasceu e se desenvolveu no homem brasileiro o gosto, a um tempo de mandonismo e de dependência”.


Ou seja, e seguindo suas próprias definições, as relações de classe, entre nobres e plebeus, mas também entre senhores e escravos, se dava de forma macia, numa espécie de paternalismo, ou seja, ainda que não houvesse diálogo, os interesses dos senhores de certa forma cobririam, ainda que pelo falseamento ideológico, os interesses dos escravos.


O que faltava, segundo o autor, era o estabelecimento de uma “dialogação”, de responsabilidade social, ou seja, necessitava, nas minhas palavras, não ser colonização rs.


Se, segundo ele, “faltou-nos, na verdade, com o tipo de colonização que tivemos, vivência comunitária”, a gente sabe que foi o que aconteceu nos espaços de conflito com o sistema que se impunha, mas passou batido.


Ainda que sem condenar a colonização, ele não se propõe a explorar caso a colonização fosse diferente, se ela poderia ser democrática ou aberta, mas segue a ideia, em partes freyriana, de que existiam “alguns aspectos positivos, entre eles o da miscigenação, que predisporia o brasileiro para um tipo de democracia étnica”.


Bom, chega dessa parte né? Foi só pra vocês entenderem o choque, mas também a necessidade da gente apontar uma “educação como prática da liberdade”, ou, como ele apresenta, elementos pedagógicos em áreas para além, inclusive da pedagogia, que sejam estabelecidos pra além do sistema que se impôs, mas com o resgate daquilo que havia antes, das formas de resistência e alternativas fora de estruturas e instituições construídas a partir da colonização, sejam “democráticas”, sejam abertas”, seja o que forem.


Apesar de não ser o foco do autor aqui os negros e indígenas, sua escolha de caminhos para falar sobre poder, democracia e formação social, na ausência, também demonstra as linhas escolhidas. É uma linha, que como estabelece Clóvis Moura, observa do olhar dominante, um falseamento, o negro como “bom escravo” [10] e o indígena como o ser extraordinário e violento. É a ideia de que o ser escravizado aceitava sua situação, “sujeitando-se, social e ideologicamente, aos padrões impostos pelos seus senhores”.


Mas, e um dos pontos principais, esse olhar ignora as formas de desgaste do sistema e as possibilidades que podem acontecer a partir dali [11]. Não sendo uma particularidade de Paulo Freire naquele momento, mas “a maioria dos sociólogos e historiadores brasileiros pouco tem pesquisado neste sentido”.


O dilema da sociedade brasileira de um sistema de violência, espoliação, opressão e dominação foi maquiado pela ideologia branco, escamoteando ou cobrindo seus elementos, a ponto, inclusive, de se falar de uma suposta democracia racial. Resta aos povos oprimidos e rebeldes serem marginais e contestadores, buscando romper com essa ideologia e essa sociedade.


A ideia de democracia racial é um complemento dos ideólogos do branqueamento racial, o que não parece ser a posição de Paulo Freire nem neste momento, mas assusta, quando pra construir a história da colonização e do desenvolvimento da nossa não democracia, esses são os referenciais do autor. Mas também é a ideologia que se conecta com a ideia do “bom senhor”, descartando as múltiplas formas de escravização e dominação, mesmo as tidas como brandas, como a entrada dos jesuítas para desagregar os povos indígenas, até as violências como o estupro, o genocídio e a perseguição.


Ainda que não fosse o objetivo de Paulo Freire, nos diz Clóvis Moura sobre o tema: “essas duas racionalizações - do bom senhor e da democracia racial - foram habilmente arquitetadas para apresentar o senhor de escravos, como bom, motivo pelo qual a escravidão no Brasil teria características suaves. É, em última análise, uma tese justificatória da escravidão e de apelo indireto para que sejam conservados os seus remanescentes entre nós”, e aqui estaria a diferença, porque Paulo Freire, apesar de tomar isso como base, busca romper com essas ideias, mas apresentando elementos, ainda dentro do sistema - vale citar que é crucial, principalmente a partir dessa base, que em Pedagogia do Oprimido Marx e Fanon estejam na base do debate, principalmente Fanon, pois a concepção dessa dominação muda fortemente.


Ou seja, o que queremos levantar, é que a base de pensamento social explicitada neste momento por Paulo Freire, ainda que buscando a ruptura, apresenta base e elogios em um modelo que “foi tão brutal, desumano e violento como todos os tipos de escravidão”. Mas também pontuar que o que é visto unilateralmente, descarta outra ideia fundamental no pensamento moureano, de que o que havia era LUTA DE CLASSES [12].


Clóvis Moura aponta que não é a acomodação o elemento dinamizador durante o modo de produção escravista colonial, mas era a contradição. “São conflitos antagônicos ou parciais, conscientes ou inconscientes nas suas características de ação social”, protagonizado principalmente pelas forças negras e indígenas. A estrutura, o sistema levantado buscava, de toda forma o “equilíbrio social”, e boa parte disso era montado através de um projeto militar. Isso implica em assumir uma posição radicalmente oposta à de Paulo Freire de que se formava uma ideologia, nas camadas de baixo, de acomodação e que por isso aceitaríamos e continuamos aceitando o paternalismo. Se de um lado se dominava, do nosso havia “a desobediência do escravo, a malandragem, o assassínio de senhores e feitores, a fuga individual, a fuga coletiva, a guerrilha nas estradas, o roubo, o quilombo, a insurreição urbana, o aborto provocado pela mãe escrava, o infanticídio do recém-nascido, os métodos anticoncepcionais empíricos e a participação do escravo em movimentos da plebe rebelde”.


Só assim podemos passar a pensar na totalidade. Afinal, para o senhor, o escravo não era pessoa, no nível das relações sociais de produção, era mercadoria, propriedade. Era alienado, havia a situação de “coisificação social”. O olhar que explicitamos acima, então, era a negação dessa atividade, como diz o Fanon [13], resgatado posteriormente por Paulo Freire [14] (e que nesse mesmo livro começa a produzir esse pensamento), só na violência, nós, dominados, temos a chance de nos humanizar.


Quase como um apêndice, recomendamos a ida à Martín-Baró [15], sobre ele temos 4 episódios na Caverna do Morcego, podcast, em que buscamos enfatizar que “uma nova racionalidade demanda uma nova perspectiva para o nosso quefazer como cientistas sociais”. Aqui falo com os nossos, que pela própria vida, estão nas “maiorias oprimidas”, nossa ação e radicalidade deve partir dessa perspectiva. É a partir daí, como bem exemplifica as rebeliões de senzala, seja os quilombos, as insurreições ou as guerrilhas, entendemos como “a mudança de perspectiva modifica profundamente os esquemas estruturadores de nosso conhecimento científico, possibilitando ver outras faces da realidade ou mesmo outras realidades”.


É o rompimento com a ideologia dominante, passo que foi, pelo próprio movimento das coisas, dado por Paulo Freire, e nisso se encontra talvez nosso tom mais elogioso, uma incorparação da dialética viva. “A partir da perspectiva popular, a pesquisa deve nos oferecer não apenas o que nossos povos são de fato, mas, sobretudo, o que podem e querem chegar a ser”. Ainda segundo Martín-Baró, e pra dialogar com Paulo Freire, autor usado pelo nosso militante de El Salvador, “se o que queremos é contribuir verdadeiramente para o desenvolvimento da democracia, isto é, ajudar para que o povo governo a si mesmo, a primeira coisa que devemos fazer é assumir os seus interesses como interesses próprios. Somente então nossos olhos poderão descobrir não apenas os véus que obscurecem a consciência popular e impedem que eles assumam as rédeas de seu próprio destino, mas também os véus que cobrem nosso próprio conhecimento e não nos permitem contribuir significativamente,  às lutas populares por justiça, paz e democracia”.


A teorização, que como coloca Paulo Freire, não é sobre o vazio das palavras, mas é necessariamente a vinculação com a transformação, ou seja, práxis, assim como pra Martín-Baró e Clóvis Moura, se torna fundamental nessa redefinição. Pegamos então esse trecho de Paulo Freire pra encerrar assumindo a frente como o Marxismo Favelado [16], que se estabelece pelos vínculos comunitários, e pelo resgate de autodefesa e autogestão frente ao descaso do Estado, frente à sua violência genocida e opressora, frente ao sistema capitalista, que aqui teve como base o modo de produção escravista colonial.


O Marxismo Favelado então é essa memória, para que a nossa educação para a liberdade seja vinculada profundamente com nossas experiências de enfrentamento e luta! Só assim novos caminhos podem ser abertos, redescobertos, e poderemos realmente superar uma sociedade, que apesar do discurso de democracia, vive da violência contra as maiorias oprimidas, diretamente ou não.

 

Referências:

[1] Ensinado a transgredir: A educação como prática da liberdade. bell hooks. WMF Martins Fontes.

[2] Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz & Terra.

[4] Clio Operária: https://www.cliooperaria.com/

[5] Autonomia Literária (cupom: #morcegonaautonomia): https://autonomialiteraria.com.br/

[6] Por uma implosão da sociologia. Marcos Morcego. Editora Terra Sem Amos: Loja online de Editora Terra sem Amos

[7] Aqui usamos a edição da Expressão Popular: A escravidão reabilitada. Jacob Gorender

[8] Existem vários textos e artigos falando sobre, eu tive contato direto com seu livro no curso de Ciências Sociais, destacamos um aqui: <Prezar a liberdade, defender a escravidão - Le Monde Diplomatique>.

[10] O negro: de bom escravo a mau cidadão? Clóvis Moura. Editora Dandara.

[12] Dialética Radical do Brasil Negro. Clóvis Moura. Anita Garibaldi.

[13] Condenados da Terra. Frantz Fanon. Editorial Adandé.

[14] Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire. Paz & Terra.

[15] Critica e Libertação na psicologia: estudos psicossociais. Ignácio Martín-Baró. Editora Vozes (episódios no nosso podcast)

[16] Referências e bases do Marxismo Faelado: Pedagogia do Marxismo Favelado: Aliança Preta, Indígena e Popular https://share.google/zG7zxKOsXATrmZLdg 

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Roteiro/edição : Marcos Morcego

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*Marcos Morcego é comunicador político e educador popular, militante por Terra e Território das periferias de SP.

 
 
 
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