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Caro Fela Kuti, feliz aniversário!

Por Márcio Paulo*

Espero que essa mensagem sobre sua vida e obra te encontre no Orun. Aqui, continuamos tentando ser melhores do que ontem e menos piores no amanhã. Obrigado por sua contribuição — você não será esquecido. Onde quer que esteja, feliz aniversário de 87 anos!


“Colonial Mentality” (1977)


São as mesmas pessoas que construíram a África que agora a destroem


No coração da pulsante Nigéria, em 15 de outubro de 1938, nascia Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti — ou, popularmente, Fela Kuti — aquele que transformou o seu ritmo em revolução. Filho de uma família militante, sua mãe, Funmilayo Ransome-Kuti, foi uma das principais lideranças da luta feminista anticolonial e a primeira mulher a dirigir na Nigéria. Seu pai, reverendo e educador, fez com que Fela crescesse entre os sons religiosos e o grito de libertação do povo africano. Som e libertação se tornaram armas para sua vida.


Nos anos 1950, foi enviado a Londres para estudar medicina, mas Kuti seguiu seu próprio caminho: a música. No Trinity College of Music, mergulhou no jazz, estudou trompete e descobriu o jazz norte-americano — Charlie Parker, Miles Davis, John Coltrane. Ao mesmo tempo, sentia um incômodo: a genialidade daquelas músicas não refletia a alma africana. Então vieram os questionamentos e a busca incessante por um som verdadeiramente africano, nascido das dores e alegrias de seu povo.


Quando voltou à Nigéria, nos anos 1960, o continente fervia. As independências políticas se multiplicavam, porém a liberdade ainda era incompleta. Governos locais foram instalados, mas com a mão do colonizador atuando por todo o continente — reféns de uma lógica ocidental e serviçais do imperialismo. Nesse contexto, Fela começou a construir sua resposta: o afrobeat.


O afrobeat não é apenas um gênero musical — é uma filosofia. É jazz, mas não só jazz; é funk, mas não só funk; é yorubá, mas não só yorubá. São os sopros das ruas de Lagos e o som que ritma as independências de vários países africanos. É som, dança, transe e recado.


Com sua banda Africa '70, Fela criou músicas que podem durar vinte, trinta minutos — cheias de percussão nas mãos do genial Tony Allen, de sopros e de letras afiadas. Em “Zombie”, comparou os soldados nigerianos a zumbis, obedecendo cegamente às ordens de um governo autocrata. Em “Water no get enemy”, cantou a fluidez e a resistência da vida africana.


Suas músicas são mais que atos de protesto: são rituais políticos e sociais. Kuti transformou o palco em trincheira de luta e o microfone em arma — sempre apontada para os covardes. Seus shows, cheios de vitalidade e força, eram puro Fela Kuti em cena.


Cansado de sobreviver sob um regime militar opressor, Fela fundou, em Lagos, a Kalakuta Republic, uma comunidade autônoma — um Estado dentro do Estado. As regras eram a liberdade: sexual, religiosa e política. Um laboratório de vida e arte, onde a música era o governo e a justiça, o ritmo.


A criação incomodava o poder. Em 1977, o exército nigeriano invadiu o local com brutalidade: espancaram Fela quase até a morte, destruíram o estúdio e jogaram sua mãe pela janela — ela morreria dias depois. A resposta de Fela foi musical e simbólica: levou o caixão da mãe até a sede do governo militar, denunciando o regime diante de todo o país.


Fela Kuti foi também um pan-africanista radical. Lutou contra o imperialismo ocidental, a corrupção e a alienação cultural. Foi uma das vozes mais firmes na busca pela espiritualidade africana — e não pela encomendada pelos ocidentais. Abandonou o cristianismo e o islamismo, que via como importações coloniais, e mergulhou no universo iorubá, nos orixás e na ancestralidade. Sua religião era o som. Seu templo, o palco.

“A música é a arma do futuro”, dizia ele — e, para Fela, tocar era lutar.

Fela viveu entre prisões, perseguições, shows, discos e exílios. Foi detido mais de duzentas vezes, espancado, censurado — mas nunca silenciado. Cada prisão rendia um novo som; cada golpe, um novo disco.


Em 1984, foi preso por contrabando de moeda estrangeira. Mas o mundo já o conhecia. Sua influência atravessava oceanos — da Nigéria ao Harlem, de Gana a Londres — e sua luta pelos direitos civis e pela sonoridade negra ecoava.


Fela Kuti nos deixou em 2 de agosto de 1997, aos 58 anos, em decorrência de múltiplos problemas de saúde. Sua morte foi política: o sistema de saúde nigeriano foi negligente no seu funeral. Mais de um milhão de pessoas marcharam pelas ruas de Lagos. O enterro de seu corpo trouxe consigo sua imortalidade.


Todo 15 de outubro, o mundo celebra a vida de Fela Kuti — símbolo da insubmissão africana. Na Nigéria e em outros lugares, o dia se tornou o festival Felabration. Lagos vira um carnaval, e no Brasil — em Sergipe, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro — também acontecem celebrações.


A obra de Fela atravessa gerações. Seus filhos, Seun e Femi, mantêm o legado e o afrobeat vivo nas pistas e festivais. Nomes como Burna Boy e Erykah Badu reverenciam sua força. Fela não é apenas o inventor de um estilo musical — ele moldou a forma como a arte é parte fundamental da luta: uma postura de não recuar e de nunca deixar de acreditar na própria força.


Fela Kuti é um ponto de inflexão contra um sistema corrupto, que o prendeu, cerceou, agrediu e tentou silenciá-lo de inúmeras formas. Sua determinação e coragem inspiram a lutar por uma vida vivida à própria maneira. Em um continente silenciado, ele fez de sua obra o grande grito pela liberdade do povo africano. Quando Fela escreve, canta ou toca seu trompete, ele ensina e mostra o quanto somos potentes enquanto seres pensantes. Lembrar dele em seu aniversário é fundamental para que as próximas gerações tenham em quem se inspirar — e é nosso papel escrever sobre ele, para que não seja esquecido, mas eternamente lembrado.

*Márcio Paulo é historiador, especialista em música negra e marxismo negro, comunicador, colunista e apresentador do Ponta de Lança Podcast, onde analisa cultura, política e sociedade africana sob uma perspectiva afrocentrada.

 
 
 

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