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Capital e a natureza se recriam nas ruas

Atualizado: 4 de ago.

Por William Poiato


No meio de uma avenida caótica de São Paulo, onde carros buzinam sem parar e o ar parece pesado com partículas invisíveis, um jovem urbanista segura um drone na mão. Ele o usa para mapear áreas verdes esquecidas, telhados abandonados, vielas que poderiam virar hortas comunitárias. Seu objetivo? Transformar a cidade em um lugar mais sustentável. Mas ao mesmo tempo, ele sabe que seu trabalho é lido por investidores que querem “valorizar” esses mesmos espaços — e expulsar os moradores que lá vivem.


Esse gesto sintetiza o dilema contemporâneo: como pensar a relação entre sociedade, natureza e capital em um mundo cada vez mais urbano?


As grandes cidades modernas são lugares onde a "segunda natureza" (a realidade socialmente construída) domina o horizonte visível, e onde a crise ambiental se manifesta de formas complexas, desafiando as fronteiras entre rural e urbano, entre o que é "natural" e o que é "social".


O mapa e o rio: duas formas de ler a cidade


Imagine que você está andando pelo centro de qualquer metrópole brasileira. As calçadas são quentes, o sol reflete nas janelas dos prédios, o barulho do trânsito parece fazer parte da paisagem. Você vê uma árvore plantada numa calçada estreita, cercada de concreto, tentando sobreviver. Do lado oposto, há um shopping center com ar-condicionado, cheio de luzes e consumismo. Esses dois elementos — a árvore e o shopping — representam duas formas de entender o que chamamos de meio ambiente.


O meio ambiente não é a natureza em si, nem a ideia que fazemos dela . É aquilo com que interagimos diretamente. No caso do pedestre, pode ser o calor do asfalto, o som do trânsito, o cheiro do poluente. Para o shopping, o meio ambiente é o fluxo de pessoas, o consumo constante, o controle de temperatura. O meio ambiente é relacional, dinâmico e depende de quem o vive.


O  meio ambiente urbano também  é produto de uma história específica: a da produção de mercadorias e da abstração que ela gera. A cidade, nesse sentido, é o laboratório da segunda natureza — um mundo feito de regras sociais, de trocas monetárias, de relações de estranheza recíproca entre pessoas que convivem sem realmente se reconhecerem.


A abstração real nas ruas da cidade


Vamos voltar à cena inicial. O urbanista com o drone está lidando com algo mais profundo do que planejamento urbano. Ele está imerso em uma realidade abstrata: mapas digitais, dados geográficos, algoritmos de valorização imobiliária. Tudo isso é resultado de uma série de processos sociais que começaram há muito tempo — com a invenção da moeda, com a separação entre o uso e o valor das coisas, com a transformação da terra em propriedade.


Isso é a abstração real: a capacidade do capital de suspender o uso concreto das coisas enquanto elas circulam. Um terreno vazio, por exemplo, não serve para plantar, habitar ou brincar enquanto está à venda. Ele existe apenas como valor potencial, esperando ser negociado. E quando é vendido, sua função social é definida por quem compra — e muitas vezes não pelos que ali vivem.


Essa abstração se espalha pela cidade como água em um sistema de canalização subterrânea. Ela define quem tem acesso ao transporte público, quem pode circular por certos bairros, quem respira ar limpo e quem sofre com a poluição, etc, etc, etc. Ela define, enfim, quem tem direito ao meio ambiente urbano.


Natureza e ambiente nas favelas urbanas


Mas e aqueles que vivem fora dessa lógica? Nas favelas, por exemplo, o conceito de meio ambiente é outro. Ali, o ambiente é a rua que dá nome ao bairro, o rio que corta a comunidade, o barraco que foi erguido com tijolos reaproveitados. A natureza não é algo externo — é parte da vida cotidiana. Uma criança brinca embaixo de uma mangueira que cresce no meio da ladeira; uma família planta hortaliças em garrafas pet penduradas na frente da casa.


Nesses contextos, a natureza (primeira natureza) ainda se faz presente de maneira concreta. O ambiente é a forma como essa natureza é percebida e integrada à cultura local. E o meio ambiente é a própria rede de relações sociais e naturais que sustenta a comunidade.


Desta forma educação ambiental não pode ignorar essas diferenças. Ensinar "sustentabilidade" com imagens de florestas tropicais e discursos sobre neutralidade ecológica é ignorar que, para milhões de pessoas, o meio ambiente é a cidade, é o beco, é a laje improvisada com plantas.


A crítica que vem da arte urbana


Se a cidade é o palco da segunda natureza, também é o lugar onde artistas tentam romper com essa abstração. Pense nos grafites que cobrem muros de viadutos, nas intervenções que ocupam ruas vazias, nas performances que invadem praças públicas. Essas expressões artísticas não são apenas estéticas — são políticas.


Assim como no passado a arte transformadora buscava unir razão e sensibilidade, hoje os artistas urbanos tentam reunir cabeça e mão, pensamento e prática. Um mural não é só uma imagem bonita — é um apelo à memória histórica, à justiça territorial, à resistência cultural.


Além disso, eles questionam o modelo linear da cidade: centro/periferia, rico/pobre, formal/precário. Em vez disso, oferecem uma leitura mais fluida, em movimento — como a corrente de um rio que não segue um mapa, mas escolhe seu próprio caminho.


Quem protege o meio ambiente?


Voltando à frase que abre tantos protestos ambientais: “Salvem o meio ambiente!”. Agora, sabemos que essa frase carrega mais perguntas do que respostas. Qual meio ambiente? De quem? Como?


Na cidade, a resposta não está apenas em tecnologias verdes, aplicativos de mobilidade ou parques lineares. Está em reconhecer que o meio ambiente é plural . Que a cidade não é apenas uma máquina de produzir capital, mas também um território de lutas, de encontros, de resistências.


Proteger o meio ambiente urbano significa:

  • Garantir acesso equitativo aos recursos naturais (água, ar, energia)

  • Respeitar a diversidade cultural e ecológica

  • Democratizar a tomada de decisões sobre o espaço público

  • Combater a gentrificação e a privatização do comum


Significa, em última instância, redefinir o que entendemos por natureza, ambiente e meio ambiente.


O Antropoceno é Urbano


Diz-se que vivemos no Antropoceno, uma era em que a atividade humana deixou marcas permanentes na Terra. Mas talvez devêssemos dizer que vivemos no Metropolitanoceno — a era da cidade como motor da crise ambiental e, ao mesmo tempo, como campo de possibilidades para enfrentá-la.


A cidade é o lugar onde a abstração do capital se torna concreta, onde a natureza é reconfigurada como ambiente e onde o meio ambiente é disputado diariamente por diferentes classes, culturas e modos de vida.


Se queremos mudar o mundo, precisamos começar pelas cidades — e por uma nova linguagem-ação que permita nomear com precisão e agir nas brechas  do que está em jogo. Porque não existe meio ambiente sem sujeitos que o percebam, o compreendam e o transformem. Quer ajudar? Aqui está o mapeamento popular de Hortas Urbanas pelo Brasil, entre e encontre uma próxima a você e se conhece hortas ainda não mapeadas, só clicar em inserir marcador e marcar endereço, não esqueça de colocar a rede social ou contato dos responsáveis.


Referências:


RIBEIRO, Job Antonio Garcia; CAVASSAN, Osmar. Os conceitos de ambiente, meio ambiente e natureza no contexto da temática ambiental: definindo significados. Góndola, Enseñanza y Aprendizaje de las Ciencias, v. 8, n. 2, p. 61-76, 2013.


SOHN-RETHEL, Alfred. As Características Formais da Segunda Natureza. Tradução Rodrigo Gonsalves. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2019/10/17/as-caracteristicas-formais-da-segunda-natureza/

 
 
 

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