A água como construção social: repensando o ciclo hidrológico e os impactos do ciclo hidrossocial
- Professor Poiato
- 19 de mai.
- 5 min de leitura

Recentemente, uma notícia chamou a atenção das redes sociais e pareceu, à primeira vista, algo inofensivo, quase poético: ‘Studio Ghibli no ChatGPT: 216 milhões de litros de água viram fumo digital’. Sim, você leu certo. A quantidade absurda de 86 piscinas olímpicas de água foi consumida em apenas uma semana para sustentar a última tendência viral da internet. Para muitos, isso pode soar como um preço pequeno a pagar, afinal a água simplesmente volta para atmosfera e chove de novo, certo? Mas essa visão simplista ignora as complexidades da relação humana com a água — uma relação que vai muito além da ciência e entra no campo das construções sociais, culturais e políticas.
A água além da ciência
A água é frequentemente retratada como um elemento puramente natural, cujo movimento segue um ciclo previsível e universal: evaporação, condensação, precipitação e escoamento. Esse modelo, conhecido como ciclo hidrológico, é amplamente ensinado em escolas e utilizado como base para políticas públicas de gestão de recursos hídricos.
No entanto, essa representação não é uma verdade científica imutável, mas sim uma construção histórica e geográfica específica. O ciclo hidrológico moderno, tal como o conhecemos hoje, foi formulado no século XX, particularmente nos Estados Unidos durante a Grande Depressão, como justificativa para grandes projetos de engenharia hidráulica.
Essa representação técnica do ciclo hidrológico, embora útil em certos contextos, carrega consigo um viés histórico e geográfico que merece ser questionado. Para compreender melhor essas limitações, é necessário olhar para a origem desse modelo e como ele foi moldado por condições específicas de tempo e lugar.
O ciclo hidrológico como invenção moderna
O ciclo hidrológico moderno reflete as condições de sociedades temperadas do hemisfério norte, onde a água é relativamente abundante e bem distribuída ao longo do ano. No entanto, essa visão simplificada não se aplica a regiões áridas, semiáridas ou tropicais, onde a variabilidade hidrológica é significativa. A generalização do ciclo hidrológico como um fenômeno universal internaliza um viés geográfico e histórico que desconsidera as experiências de muitas comunidades ao redor do mundo.

Além disso, o ciclo hidrológico foi instrumentalizado pelo Estado para justificar grandes obras de infraestrutura, como barragens e reservatórios. Essa abordagem tende a ignorar as complexidades locais e as necessidades específicas de diferentes comunidades, muitas vezes exacerbando desigualdades sociais e ambientais. Como resultado, a água passa a ser vista não como um bem comum, mas como um recurso a ser controlado e manipulado.
O caso da Tapera: quando o progresso fragiliza
A comunidade quilombola da Tapera, em Petrópolis (RJ), ilustra vividamente as consequências de intervenções externas na gestão hídrica. Até 2011, a comunidade mantinha um sistema autogestionário de abastecimento de água, baseado em valas, canaletas de bambu e mangueiras. Esses sistemas não apenas garantiam o acesso à água, mas também fortaleciam laços comunitários e práticas culturais.
Após deslizamentos de terra causados por chuvas intensas em 2011, a comunidade foi reassentada e recebeu um "sistema moderno" de abastecimento, incluindo caixas d’água centralizadas e o represamento de uma única nascente. Embora tecnicamente a água ainda estivesse disponível, sua invisibilização e a perda do controle comunitário sobre o recurso geraram dependência e vulnerabilidade. O contato visual com a água, que antes era parte do cotidiano, foi substituído por torneiras e tubulações. Antes da intervenção, a água era mais do que um recurso físico; ela era um símbolo de autonomia e resiliência. Os sistemas tradicionais de abastecimento, como valas e canaletas de bambu, eram geridos coletivamente, fortalecendo laços comunitários e garantindo que todos tivessem acesso equitativo. Com a implementação do sistema moderno, no entanto, esses laços foram enfraquecidos. A invisibilização da água e a perda do controle local transformaram um recurso comum em uma mercadoria administrada por terceiros, aumentando as desigualdades já presentes
Esse exemplo demonstra como a transição de um ciclo hidrológico para um ciclo hidrossocial pode ser disruptiva. A água, antes um elemento visível e compartilhado, tornou-se um recurso administrado por terceiros, transferindo o poder de decisão para fora da comunidade. Além disso, o impacto ambiental foi significativo, com a redução da vazão do rio principal e o risco de seca do córrego represado.
O ciclo hidrossocial: uma alternativa crítica
O conceito de ciclo hidrossocial surge como uma resposta às limitações do modelo hidrológico tradicional. Ele reconhece que a água não é apenas um recurso físico, mas uma teia de relações humanas, ecológicas e políticas. Ao integrar dimensões sociais e culturais ao movimento da água, o ciclo hidrossocial oferece uma abordagem mais contextualizada e socialmente consciente para a gestão hídrica.

A água é um recurso natural central, ao redor do qual se organizam diferentes dimensões que influenciam sua gestão e uso. Essas dimensões incluem práticas materiais e práticas físicas (como infraestruturas e tecnologias), práticas sociais e linguagem (como grupos atores e práticas representacionais), e práticas discursivas (como modelos ideológicos e práticas epistemológicas). Cada uma dessas esferas interage com a água de maneira dinâmica, refletindo como as decisões humanas e as estruturas sociais moldam o fluxo e a distribuição desse recurso vital.
Também se destaca o papel dos grupos atores — indivíduos ou coletividades que intervêm no ciclo hidrossocial — e como eles são mediados pelas instituições burocráticas e pelos processos ideológicos . Isso demonstra que a gestão da água não ocorre de forma neutra, mas é influenciada por interesses, poderes e narrativas sociais. Por exemplo, na comunidade quilombola da Tapera, a intervenção externa que introduziu sistemas modernos de abastecimento alterou não apenas o acesso à água, mas também os laços comunitários e a autonomia local. O ciclo hidrossocial, portanto, permite compreender essas transformações como parte de um processo complexo de interação entre recursos naturais e realidades sociais.
Para quem flui a água?
A crise hídrica global não é apenas uma questão de escassez física ou infraestrutura inadequada; ela é, acima de tudo, uma crise de poder e justiça social. O caso da Tapera nos lembra que a gestão da água não é apenas uma questão técnica, mas uma questão de justiça social. Enquanto soluções modernas continuarem sendo impostas sem considerar as práticas e saberes locais, comunidades como a da Tapera continuarão a enfrentar vulnerabilidades crescentes. Repensar nossa relação com a água exige reconhecer sua dimensão social e política, valorizando saberes tradicionais e promovendo uma gestão mais inclusiva e sustentável. No fim, a pergunta mais importante não é técnica, mas política: de quem é a água que chega até você?
Referências
- LINTON, Jamie. Is the hydrologic cycle sustainable? A historical–geographical critique of a modern concept. Annals of the Association of American Geographers, v. 98, n. 3, p. 630-649, 2008.
- IMBELLONI, Ana Caroline Pinheiro; FELIPPE, Miguel Fernandes. Ciclo Hidrossocial e o reabastecimento social das águas: uma experiência na comunidade quilombola da Tapera (RJ). GEOgraphia, v. 22, n. 48, p. 260-269, 2020.
TSUTSUI, H. K. O Ciclo Hidrossocial como Ferramenta de Análise: Uma Proposta Metodológica e Aplicação às Dinâmicas Territoriais da Tríplice Fronteira (Mato Grosso do Sul - Paraná - São Paulo). Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal do ABC, Planejamento e Gestão do Território, São Bernardo do Campo.2019


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