A visibilidade da mão invisível: nuances de um neoliberalismo em crise[1]
- Rafael Maranhão Torres

- 4 de mar.
- 10 min de leitura
Por Rafael Torres

Longos meses contraproducentes tomaram conta da minha rotina desde que publiquei meu último texto ainda na Clio Operária – revista que fiz parte por mais de dois anos –, mas quero, a partir desta data, garantir a mim mesmo o mínimo comprometimento com a produção.
Dito isso, sinto-me cada vez mais incumbido da ideia de que é necessário combater o neoliberalismo de todas as maneiras possíveis e matando suas sementes onde quer que estejam. Essa é a ideia desse texto, inicialmente.
Estamos inseridos em um contexto histórico, e enquanto historiador enxergo dessa maneira, muito peculiar. A propagação do neoliberalismo se faz mais presente e forte do que jamais foi. Enquanto modelo econômico-político, esse reforço dos mais primitivos de acumulação, ao passar por crises características do capital, ao contrário do que foi seu antecessor que não correspondeu às suas contradições, reforça-se e acirra seus métodos.
Começo pelo início: o neoliberalismo parte da premissa de que todos os indivíduos inseridos nesta bola de gás que flutua em uma infinita escuridão (a qual chamamos de Terra) são livres e autônomos, em seu sentido egoísta e individual. Marx parte da premissa contrária, não de que não somos livres por essência – apesar que, inseridos no capitalismo, não somos mesmo – mas que, somos seres sociais, e em sociedade construímos nosso eu, o intrínseco ao ser humano. De cara, temos então a missão principal do neoliberalismo, estando sua arma mor na possibilidade de desvincular e desunir o ser social.
Margaret Tatcher, ex-primeira-ministra britânica, expoente do neoliberalismo contemporâneo, disse: “Não há sociedade, apenas indivíduos e interesses”.
Sem dúvida temos todos interesses a nível pessoal, que não dizem respeito ao social, mas isso não significa que somos seres indubitavelmente individualizados. Esse próprio discurso ignora por completo a incapacidade e impossibilidade de certos objetivos. É algo muito próximo do que conhecemos como meritocracia. Ele serve, na verdade, para alienar e possibilitar maior exploração do homem pelo homem; é o tal do “sou meu próprio chefe”. Importante é retornar ao berço do nascimento disso, e aqui não irei me debruçar exclusivamente em Von Mises e Hayek, mas nos primórdios da prematuridade da falta de limitação aos poderes dos que exploram a força de trabalho.
No contexto histórico do século XVIII, onde a escravidão já era o modelo econômico vigente em todo o mundo, e as navegações que colonizaram a América, África e Ásia estavam consolidadas, o Estado ganha outra forma de agir e se molda para que os fins, que sempre justificaram os meios, passam a também legitimá-lo. O Direito e a Economia Política agora são detentores dos argumentos que validam a ilimitável ação estatal com a finalidade de atingir os objetivos – leia-se lucro acumulativo infinito – com maior facilidade. Por si só isso já mostra o pensamento liberal de que tudo, sem exceções, é válido para o sucesso pessoal. Veja, se o livre mercado, ou seja, a livre concorrência entre pessoas fosse algo natural, a limitação do poder na forma do Estado, para os liberais, é violar a naturalidade da razão humana; se o humano, enquanto indivíduo histórico, é detentor de um desejo de sobreposição ao seu outro, impor limites à ele é romper com a naturalidade da questão da vida desse sujeito. Mas, sem nos adentrarmos muito no conceito de Imperialismo tão bem descrito por Lênin, Rosa e tantos outros, em apertada síntese de conhecimento empírico, vemos o quão é desmedido e irresponsável tal argumento já que, não só o livre mercado não se autorregula, como é o inverso disso, ele desregula as ações e práticas sociais, afinal, como para Tatcher, nem sociedade existe aqui.
Ainda sobre o século XVIII, o liberalismo passa a se utilizar da norma jurídica e utilitária para limitar o poder do Estado, preferindo o interesse individual; nesse mesmo momento o Estado deixa de ser gerido através do argumento de Deus, sob alguém escolhido previamente por Ele (Absolutismo), e passa a ter como finalidade o interesse, e que fique bem claro que não o interesse dos trabalhadores, camponeses e desafortunados, mas a sua oligarquia, o seu burguês. Em outra de suas várias nuances, o liberalismo soma a ideia de que a única liberdade possível é a contratual, no sentido de que somos todos livres para gerar esses certos contratos e promover a riqueza pessoal, e aqui é um ponto de atenção. Ao alterar a realidade, e dizer que não somos livres, e que a única forma de alcançar tal estado de pureza dessa palavra é enriquecendo, produzem-se então corpos dóceis e úteis que, como cita Rubens Casara na sua obra “Contra a Miséria do Neoliberalismo”: “Fala-se nesses casos em psicopoder”. Ou seja, o poder não é apenas concebido da forma como Foucault bem analisou em Vigiar e Punir, mas agora é exercido pela auto exploração, é um recurso produtivo e não apenas repressivo.
“O foco do poder político não deve ser mais limitar a liberdade, mas produzir a liberdade útil aos interesses dos detentores do poder econômico, a partir de leis e dispositivos que favoreçam a liberdade da produção e de circulação” (CASARA, Rubens. Contra a Miséria do Neoliberalismo, pg. 80).
Pouco acima citei o conceito jurídico e utilitário para determinar ferramentas de manutenção do posicionamento liberal. A questão é: o que é o útil? Para quem ele o é? Ele o faz de forma coletiva ou individual? Essas questões, de acordo com as respostas obtidas, determinam quem é mais ou menos livre nesse horizonte. Quando falamos de Neoliberalismo é importante termos em mente que estamos falando do genocídio dos pobres, logo, o Neoliberalismo e a Necropolítica se entrelaçam numa coisa só. Quando falamos sobre privatizações, seja do que for (água, luz, saúde, transporte, tecnologia) estamos falando necessariamente da exclusão da maior parte populacional do nosso país da conta que compõem esses serviços, dessa somatória; é simples imaginar que, ao chegar ao SUS hoje temos como sair de lá com a mesma quantia de dinheiro que entramos, sem dever nada a ninguém. Brumadinho e Mariana também são ótimos exemplos do que se trata a política Neoliberal e como ela e a morte, seletiva e racista, andam lado a lado.
Ao passo que se utilizou o sentido de utilidade, também se fez uso do conceito jurídico para validar algo que está muito em uso, caro aos dias atuais: o modelo mercantil, o mercado, é também modelo de organização social e as relações existentes. Mas, para isso, o Estado passou a regular através de leis (legislativo) e executar (executivo) o direito à propriedade privada, garantindo o “livre” contrato. Mantendo a tradição contraditória, o liberalismo do século XIX passa a se utilizar do Estado para fortalecer suas amarras e garantir o funcionamento do maquinário exploratório. Esse é o modal: o Estado não intervenciona a favor de concessões visando o fim da propriedade privada dos meios de produção, mas sim, pela continuação do modelo de acumulação capitalista. Ele interfere quando é necessário soltar alguma medida que acalme os ânimos dos coveiros do capitalismo (como foi o caso da CLT), mas que permita que continuem sem organização coletiva e trabalhando efetivamente.
Acredito que fique cada vez mais evidente a contrariedade entre teoria-prática do liberalismo, e o século XIX, e início do XX deixou mais evidente a falácia. Menos Estado significa necessariamente menos políticas públicas, a fim de que se fomentasse a ideia de livre contrato, de que salário é um acordo entre duas partes iguais e com vontades individuais. Vale lembrar que, durante todo o século XIX e início do XX uma parcela considerável dos países europeus eram potências expansionistas e que estavam em guerra com outros países por territórios, e que só muito depois conseguiam finalizar essa “divisão”, como são os casos de França e Itália. Já no início do século XX, como bem sabemos, diversas crises – inclusive uma Guerra Mundial – atracaram na Europa e no mundo, e a participação do Estado se fez mais necessária do que nunca. Estamos falando da queda do modelo liberal clássico, que não pôde encontrar respostas para lidar com seus movimentos internos dialéticos; nesse sentido, se o capitalismo produz seu próprio coveiro, o liberalismo produziu uma obra cheia de páginas vazias que, ao final, estava escrito “e agora?” sem uma resposta. Nesse momento, entre os liberais que estavam zanzando como baratas tontas, surgem os intervencionistas, que defendem alguma participação do Estado, nesse reformismo do liberalismo, propondo realizar algumas concessões para o que eles chamam de “massa” – o que conhecemos como proletariado – e os que defendem ainda a natureza do livre contrato, como Spencer. Esses últimos acusam os primeiros, inclusive e ironicamente, de serem socialistas.
Quero me aprofundar nessa questão pois, de acordo com diversos estudiosos do tema, é uma das principais características desse modelo econômico-político. Além de toda a construção política das estruturas que fornecem base para o acúmulo de capital através da mercantilização, quero destacar aqui a construção de uma nova subjetividade, que agora atinge a vida de cada pessoa. O Neoliberalismo deve ser pensado como um processo de construção de ideologia, de subjetividade, e por isso foi cunhado o termo “Sociedade de Mercado” para dar conta de explicar sobre como a acumulação por espoliação atinge não só politicamente, mas agora afeta subjetivamente a vida das pessoas em esferas que antes estavam distantes da sombra mercantil. Quero destacar aqui algo que parece ser cômico a princípio, porém não é; recentemente me deparei com um vídeo de uma coaching financeira dizendo que, antes de iniciar um relacionamento com alguém, ela questiona a pessoa quanto ela faturou no mês anterior. Há quem diga, numa sátira, que é o relacionamento CNPJ. Então veja bem, aqui se mostra na forma mais pura e simples como a construção da subjetividade da ideia de que só posso me relacionar com quem consegue ganhar igual ou mais que eu (e, diga-se de passagem, várias frases criadas por essas pessoas validam isso, como “águia só anda com águia”); aqui está posto, da maneira mais crua que um relacionamento, outrora amoroso, torna-se objeto de manutenção da permanência da ideia mercantil nas esferas sociais. Mas essa subjetividade obviamente atinge também o ciclo empresarial.
A relação entre capital-trabalho, que já era desfavorável para qualquer proletário, se acirra e se transforma em relação empresário-empresário onde, teoricamente, são dois empresários – um dono de empresa e o outro dono de si – negociando esse trabalho. Mas, além do que foi citado acima sobre esse processo criar corpos úteis e dóceis, abre precedente para terceirização (ou até quarteirização) trabalhista: uberização, deterioração das condições e direitos dos trabalhadores etc. E quero destacar aqui a reforma interna que esse trabalhador faz de si onde, em qualquer momento mínimo de descanso ou simplesmente não fazer nada, culpa-se por não estar “empreendendo”. Logo, mas não irei me estender por mero desconhecimento da área psicológica, esse trabalhador desenvolve uma patologia pelo empreender.
“O Neoliberalismo torna-se, então, uma racionalidade, isto é, um modo de compreender e atuar no mundo, capaz de produzir mutações sobre tudo e todos. […] Assim, é possível, ainda que provisoriamente, definir o neoliberalismo como ‘uma forma particular de razão que reconfigura todos os aspectos da existência em termos econômicos”. (CASARA, Rubens. Contra a Miséria do Neoliberalismo. Pg 103).
Dentro desse cenário, deixarei aberto para um trabalho seguinte, mas quero que fique claro que: no horizonte neoliberal, as práticas democráticas do Estado impedem a eficiência e competitividade do Mercado a depender da finalidade dessas políticas do Estado, logo, a desdemocratização da governabilidade é completamente plausível e está sim dentre o hall de possibilidades. Não se trata aqui de acabar com tudo que o Estado produz no papel de interlocutor do capital para a classe trabalhadora, mas limitar quando e onde as intervenções estatais são necessárias, esse é um divisor de águas do liberalismo clássico para o neoliberalismo, e aqui um exemplo disso é a propagação da ideia de austeridade fiscal. O liberalismo não tinha grandes problemas com a veia interventora do Estado, haja visto o posicionamento de Keynes, mas no novo liberalismo – o neo – o Estado só pode representar os interesses dos detentores do poder econômico. Ele só pode intervir a favor da manutenção dessa riqueza. Caso o contrário ocorra, o recrudescimento e o uso do autoritarismo entram em ação.
Queria, para finalizar, em apertada síntese, demonstrar como a construção de uma racionalidade funciona como pilar de uma nova forma produtiva. Foi citado que o neoliberalismo alterou diversos conceitos para seu funcionamento (como o jurídico), dessa forma, estabelece novas razões em quem é atingido, logo, essa pessoa não cobra mais emprego, políticas públicas, transferência de renda, taxação de grandes fortunas. Se você não se sentir explorado, não é exploração. O neoliberalismo é sedutor, ele não reprime os desejos sórdidos de acumulação ilimitada de capital, ele na verdade o pressiona; ele não é opressor, ele é permissivo. Byung-Chul Han, em sua obra Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder, citado por Casara em sua obra, toca numa ferida da literatura marxista, mas que se faz necessário; resumidamente, Marx havia previsto que o capitalismo iria se desenvolver a tal nível onde não haveria outra solução que não a ruptura da classe trabalhadora com seu modelo opressor de exploração, mas o que na verdade ocorreu foi que, na subjetividade da razão, o que parou com a exploração do homem pelo homem foi o neoliberalismo, como disse, se não se sentir explorado, não é exploração. O homem passou de vender sua força para um burguês, para ser empresário de si, passou ele mesmo se explorar com o véu que cobre a perversidade disso tapando e o colocando como mais um concorrente do mercado.
Epílogo
Lula foi eleito em 2022 frente a ameaça contra a democracia e, agora comprovado, o risco iminente de um golpe militar. A vitória do petista foi amplamente comemorada, fosse entre a esquerda liberal ou entre a esquerda radical, porque representava a possibilidade concreta de melhoria na vida dos trabalhadores e trabalhadoras que passaram 4 anos em um governo que efetivamente matou pessoas durante uma pandemia. Era o momento decisivo da virada.
Nos decepcionamos. Lula colocou Fernando Haddad, ex-prefeito da cidade de São Paulo, para comandar o Ministério da Fazenda e ditar os rumos econômicos do país. Haddad, que já havia perdido a eleição de 2018 contra Bolsonaro, se mostrou um neoliberal de mão cheia; atacou o BPC, gerou crises e mais crises para o governo e nada fez para impedir que o país não atingisse uma alta na inflação que causasse a queda vertiginosa na popularidade de Lula. Nancy Fraser chama governos como o de Lula de “neoliberais progressistas”, que combina uma política econômica que financeiriza a vida, mas que reconhece alguns direitos para os trabalhadores, apenas para os manter dóceis (2019, pg. 18).
Lula decepcionou a classe trabalhadora e agora vê sua queda contínua em números. O cenário é que em 2026, quando haverá nova eleição presidencial, a extrema direita tenha um representante fortificado, e aqui não irei especular sobre quem será. Fato é que, em estreita análise, o neoliberalismo representa o sistema corruptivo que esvazia a vida de sentido para além do ganho pessoal e do acúmulo financeiro, e o período entre 2023-25 em nada alterou esse sentimento de disputa e competitividade social.
[1] Esse texto foi escrito entre janeiro e fevereiro de 2023, postado originalmente em meu perfil do Medium e pensado no contexto em que Tarcisio de Freitas, à época recém-eleito governador de São Paulo, prometeu privatizar a Sabesp. Pouco mais de um ano depois, ele a cumpriu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silvio. O que é o neoliberalismo. YouTube, 27/10/2021. Disponível em: https://youtu.be/sjG5JgpnzaA
CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal: racionalidade, normatividade e imaginário. São Paulo, SP. Autonomia Literária, 2021.
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo, SP. Autonomia Literária, 2019.


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