A quem serve o Leviatã?
- Vinicius Souza Fernandes da Silva

- 9 de jun.
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Por Vinicius Souza Fernandes da Silva*

A representação imagética mais complexa na expressão do que é o Estado Moderno, sem sombra de dúvidas, é o Leviatã que compõe a capa do clássico da Ciência Política, publicado por Thomas Hobbes em 1651. Um gigante que, portando coroa, espada e cetro, sintetiza as bases fundamentais do poder - a monarquia, a segurança e o poder absoluto de todas as expressões políticas do Estado em uma côrte. Para Hobbes, a busca pela segurança é o centro de gravidade daquilo que legitima o Estado Absolutista, a necessidade de uma força global que regulamente a vida entre os homens e cria normas na forma da lei que atravesse as relações sociais e impeça o caos característico de um estado primário de organização. Esse é o fardo do soberano que acompanha o direito divino dos reis, a segurança ao seu povo.
É na tradição do contratualismo que se encontra a percepção teórica de Hobbes dividindo trincheiras intelectuais com nomes como John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Ao que pese todo contrato ser celebrado entre partes que estão em oposição e buscam conciliar os seus objetivos a partir de concessões, essa corrente do pensamento político moderno foi fundamental para a consolidação da constituição das forças políticas que se levantaram outrora em movimentos anticoloniais de libertação e independência e em lutas nacionais quando agarradas pela raiz.
A questão que se apresenta frente aos desafios evocados pela realidade brasileiro e os problemas do Leviatã no trópicos desafiam a própria base epistemológica do contratualismo. Chama atenção que de todas as características da capa da obra de Thomas Hobbes, a mais importante é o corpo da besta que é composta pelo povo, a base teórica do poder até mesmo no absolutismo. Ocorre que se fosse desenhado, o Leviatã que representa o Estado brasieiro, no seu corpo jamais seria o povo, mas todos os diretores financeiros, ceos e presidentes do capital financeiro, os representantes do cartel bancário que tem como refém o povo brasileiro e faz da sua espada, o próprio Estado.
O Leviatã brasileiro rasgou o contrato, a nova cláusula estabelecida é a de exceção de mercado, o estado de sítio dos bancos. A democracia deu lugar à ditadura do rentismo, o orçamento que certa vez foi direcionado a resolver as grandes questões da sociedade, agora não passa de uma torneira aberta enchendo as combucas dos bancos e acionistas privados. O Estado soberano que um dia prometeu segurança e bem-estar, hoje preza pelo uso legítimo da sua estrutura burocrática para resguardar o lucro. O céu se rendeu aos fariseus e, desta vez, não há perdão, pois eles sabem o que fazem. A cruz carrega a fome, a precarização da vida, a escravidão por aplicativo, a insegurança alimentar, a carestia, a insegurança pública, a situação de rua, a ausência de acessos.
Não há dúvidas de que o cetro na mão do Poder Executivo, além das prerrogativas legais, é o Orçamento Público da União. Não se executa políticas públicas sem dinheiro para que elas se realizem. Uma das políticas de assistência social mais populares do Brasil é o auxílio financeiro para pessoas e famílias de baixa renda em situação de vulnerabilidade social, o Bolsa Família. No ano de 2024, o Governo Federal repassou 168,3 bilhões de reais para o funcionamento desta política. Sem este dinheiro, uma política pública fundamental não existiria. Em um exemplo mais abrangente, o Sistema Único de Saúde. O SUS é uma das políticas mais sofisticadas que distinguem o Brasil do resto do mundo. Para o funcionamento do SUS, no ano de 2025, o orçamento aprovado no Congresso Nacional para a Saúde é de 233 bilhões. Sem isso, as políticas não funcionam.
A questão que se apresenta é - Quanto do orçamento público vai para as principais demandas do povo brasileiro? Qual é o papel da sociedade civil organizada (movimentos e organizações sociais) na construção do orçamento? Afinal, a quem serve o Leviatã brasileiro?
Em 2024, cerca de 40% do orçamento público foi destinado a juros da dívida, isso significa mais de 2 trilhões saindo dos cofres públicos e para as contas bancárias do cartel banqueiro hoje representados pela gestão de Gabriel Galípolo no Banco Central do Brasil. A PLOA de 2025 previu, saindo direto da Casa Civil para o Congresso Nacional, cerca de metade do orçamento para a dívida pública. A execução de 2025 prevê 1,7 trilhões para refinanciamento da mesma dívida.
Por outro lado, o Banco Central, através do copom, segue em aumentos constantes da taxa de juros no Brasil e o Arcabouço Fiscal (leia-se teto de gastos, a mesma política que em outro governo chamamos de PEC da morte) cria uma minúscula margem de 2,5% acima da inflação para o investimento público, incluindo a correção do salário mínimo e, por consequência, da previdência social, bolsa família e BPC.
Ao mesmo tempo, segundo levantamento feito por um dos grupos de pesquisa que estão na linha de frente da luta contra a ausência de política de moradia no Brasil, o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua de Rua da UFMG, o número de pessoas nesta situação em São Paulo chegou a 96 mil em março de 2025. Quase 100 mil pessoas em uma situação limite de total perda de direitos.
Ocorre que estamos calejados no debate a respeito das causas da situação de rua - a escravidão, o racismo, a miséria enquanto produto fundamental do capitalismo, a especulação imobiliária que faz do direito a moradia uma mercadoria. O fato é que esse acontecimento da sociedade contemporânea é uma das expressões mais violentas e cruéis do genocídio negro, esse fenômeno produzido pela sociedade de mercado que afeta majoritariamente homens negros, sozinhos, com seus laços familiares desfeitos e mal remunerados pelo trabalho realizado.
A discussão que nos desafia e a luta que se anuncia, agora é sobre o sequestro do Estado Brasileiro por parte de um cartel financeiro que sangra o orçamento público enquanto campos de concentração e extermínio são preenchidos diariamente no asfalto das vias públicas deste país. Ao mesmo tempo em que o Brasil possui favelas gigantescas como o Sol Nascente (DF) e o Complexo da Rocinha (RJ), um momento no qual o agronegócio nacional tem total liberdade tributária para exportação e especulação de moeda, em que setores estratégicos são constantemente alvos de precarização para posterior privatização, em que mais de 45 mil pessoas são assassinadas por ano, o Leviatã segue empunhando a espada dos bancos. Não há caminho possível na democracia brasileira, sem a tomada do orçamento público por parte do povo brasileiro em nome dos seus anseios e necessidades históricas.
*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e coordenador do Conselho Editorial da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).



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