A ilusão verde: é a vez da máscara ecológica
- Professor Poiato
- há 6 dias
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Por William Poiato

Em uma tarde cinzenta de setembro de 2015, engenheiros da Volkswagen receberam um alerta que mudaria tudo. Um simples teste rodoviário nos EUA acabara de expor uma mentira bilionária: seus carros a diesel, vendidos como "limpos", emitiam até 40 vezes mais poluentes do que o permitido. Enquanto executivos corriam para apagar rastros, uma pergunta ecoava: como uma empresa que se pintava de verde havia construído uma fraude tão perfeita?
Do outro lado do mundo, em um depósito da Kmart, pilhas de pratos plásticos amontoavam-se sob um selo mentiroso: "100% biodegradável". Anos depois, investigações provaram que aqueles produtos não se decomponham — apenas se fragmentavam em microplásticos, envenenando solos e oceanos.
Essas não eram falhas pontuais. Eram a prova de um sistema que transformou a sustentabilidade em teatro.
A máquina de lavar (e enganar)
O greenwashing não é um erro — é uma estratégia. Funciona assim: primeiro, empresas identificam um desejo coletivo (no caso, a culpa ecológica). Depois, criam uma ficção palatável: garrafas "feitas de oceano reciclado", combustíveis "neutros em carbono", roupas "que regeneram florestas". Por trás das campanhas, porém, a realidade permanece inalterada.
A Volkswagen não foi a primeira, apenas a mais ousada. Seu selo fraudulento era a metáfora perfeita: uma tecnologia que simulava virtude enquanto cuspia fumaça. A Kmart seguiu o roteiro, trocando química por marketing. E assim, enquanto consumidores pagavam mais por produtos "verdes", o planeta continuava a ser saqueado nos mesmos ritmo e escala.
O fetiche do selo verde
Há dois séculos, Marx já alertava: o capitalismo tem o poder de transformar relações humanas em transações, e valores morais em etiquetas. O greenwashing é o estágio final dessa lógica. Quando uma multinacional diz "compense sua pegada de carbono plantando árvores", ela não está vendendo sustentabilidade — está vendendo absolvição.
Para Marx, o fetichismo da mercadoria é um fenômeno que ocorre quando objetos produzidos pelo trabalho humano ganham uma aparência mágica, como se tivessem valor próprio, independente das relações sociais que os criaram. No capitalismo, as mercadorias — sejam celulares, roupas ou alimentos — parecem ter vida própria, com preços que flutuam no mercado como se fossem regidos por leis naturais. Essa ilusão esconde a verdade essencial: seu valor vem do trabalho humano, não de uma qualidade intrínseca. O que deveria ser uma relação entre pessoas (trabalhadores, donos de fábricas, consumidores) se transforma numa relação entre coisas (preços, marcas, oferta e demanda).
O fetichismo é, portanto, uma inversão perversa. Em vez de enxergarmos o suor, o tempo e as condições de quem produz, vemos apenas o produto final — brilhante, impessoal, descolado de sua origem. Marx compara isso a religiões primitivas, onde tribos atribuíam poderes sobrenaturais a ídolos esculpidos por suas próprias mãos. No capitalismo, o mercado é o templo, e as mercadorias, os deuses. Essa mistificação serve ao sistema: se as pessoas creem que "o preço justo" é uma força natural, e não resultado de exploração, a desigualdade parece inevitável, não uma escolha política. Daí a urgência da crítica marxista: desvendar o fetichismo é o primeiro passo para transformar a realidade que ele oculta.
O selo ecológico virou um amuleto moderno. Acredita-se que sua mera presença em uma embalagem possa purificar danos, como se logotipos fossem capazes de neutralizar toneladas de CO2. Mas os números não mentem: das 100 empresas responsáveis por 71% das emissões globais, 83% possuem "planos de neutralidade climática".
Essa dupla camada de ilusão explica a contradição chocante entre os "planos de neutralidade climática" e o fato de que poucas corporações dominam a maioria das emissões globais. O selo ecológico cumpre exatamente a mesma função mística que Marx atribuía às mercadorias - criar a fantasia de que valores abstratos (agora a "sustentabilidade") existem independentemente das relações materiais que os produzem. A diferença crucial é que, enquanto no século XIX o fetichismo servia para naturalizar a exploração do trabalho, hoje ele serve também para naturalizar a destruição do planeta.
O dilema: reformar ou desmontar?
Alguns acreditam que a solução está em regras mais duras. Afinal, depois do escândalo, a Volkswagen pagou US$ 30 bilhões em multas. Mas será que punir empresas depois do crime é suficiente? Enquanto governos discutem burocracia, o desmatamento e a poluição seguem em ritmo recorde.
Outros propõem uma saída mais radical: questionar um sistema que trata ar, água e florestas como "recursos" a serem explorados até a última gota. Se o problema é a lógica que tudo transforma em mercadoria, talvez a verdadeira sustentabilidade exija mais do que novas leis — exija novos mundos.
Epílogo: o que sobra quando a máscara cai?
Em 2023, pesquisadores encontraram partículas de plástico no sangue humano. Não vieram de lixões ou oceanos, mas de embalagens "biodegradáveis" como as da Kmart. Enquanto isso, os mesmos carros que a Volkswagen prometeu consertar continuam nas ruas, emitindo gases invisíveis.
A ironia é cruel: quanto mais o capitalismo tenta vender sustentabilidade, mais a crise se aprofunda. Resta saber se ainda há tempo para desacelerar a máquina — ou se, no futuro, os únicos verdes que sobrarão serão os das cédulas de dólar.
Referências
YANG, Zhi et al. Greenwashing behaviours: Causes, taxonomy and consequences based on a systematic literature review. Journal of business economics and management, v. 21, n. 5, p. 1486-1507, 2020.
DELMAS, Magali A.; BURBANO, Vanessa Cuerel. The drivers of greenwashing. California management review, v. 54, n. 1, p. 64-87, 2011.
DA ROSA CORRÊA, Paulo Rogério. A DIALÉTICA EM KARL MARX: O “FETICHE” DA MERCADORIA. Revista Enciclopédia de Filosofia, v. 4, 2015.
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