Tallis Gomes, Nikolas Ferreira e a contradição do Movimento Galt Brasil
- Rafael Maranhão Torres

- 16 de out.
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Por Rafael Maranhão Torres*
Uma das principais características desta classe (a baixa) é pensar e agir como indivíduos. Esta tendência foi, e é perpetuada pela classe dominante (capitalistas) em sua retórica [...].
Donald Lee Cox, a.k.a Field Marshall D.C.[1]
Tallis Gomes é fundador da G4 Educação e da Easy Taxi. Em 2024, diante de uma pergunta feita por um seguidor sobre se ele se relacionaria com uma mulher que fosse CEO, respondeu: “Deus me livre uma mulher CEO”. Nikolas Ferreira é mais conhecido, faz parte do núcleo central do bolsonarismo e agora luta por uma anistia muito circunstancial. Ambos utilizaram a morte de Charlie Kirk, o fascista norte-americano, para se promoverem. Nikolas Ferreira saiu acusando instintivamente a esquerda de tê-lo assassinado — até o momento em que o principal suspeito foi apontado como alguém da direita. A partir disso, o discurso mudou para: “extremistas o mataram”.
Introdução
Tallis Gomes, em um podcast de que participou, disse que não contrata “esquerdistas”, pois são “mimizentos” e não trabalham duro. Afirmou ainda que, em sua empresa, as pessoas trabalham até 1h da manhã e que quem não faz 70/80 horas semanais de trabalho não constrói nada na vida. Já Nikolas Ferreira passou a divulgar em suas redes nomes de pessoas que, segundo ele, comemoraram a morte do fascista Kirk. Isso inspirou Gomes, que já tinha alinhamento ideológico com o deputado bolsonarista, a lançar o Movimento Galt Brasil.
Movimento Galt Brasil
O Movimento Galt é uma iniciativa do empresário para que companhias demitam “extremistas” — o que, lido com clareza, devemos compreender como “demitam pessoas de esquerda”, algo que, como vimos, o próprio já havia dito. Entretanto, ele foi investigado pelo Ministério Público após a primeira declaração, já que é proibido por lei demitir uma pessoa por motivação política. Por isso, o texto do Manifesto é muito vago, eliminando a possibilidade da mesma acusação.
John Galt dá nome ao movimento, pois é o personagem do livro A Revolta de Atlas, em que lidera uma rebelião contra o Estado em um levante dos milionários. Sintomático.
A carta de adesão afirma que o Manifesto é um pacto de construtores, um acordo entre empresários, empreendedores e líderes para banir quem prega o ódio e a violência nas empresas. É aqui que começam as contradições.
As contradições do neoliberalismo
Precisamos traçar onde estão as bases do individualismo filosófico. Atilio Borón, marxista argentino, em sua obra O feiticeiro da tribo: a farsa de Mario Vargas Llosa e do neoliberalismo na América Latina, revisita criticamente a tese desenvolvida por Bernard de Mandeville em A fábula das abelhas, onde expressa que fraude, luxo e orgulho são atitudes e sentimentos moralmente aceitáveis, que validam o desejo de aproveitar os benefícios de uma vida regada a vantagens. Portanto, são virtuosos os homens que carregam essas características. Para Borón, essa foi a essência teórica que fez do individualismo o princípio ideológico da sociedade do capital[2]. O neoliberalismo é o individualismo elevado à máxima potência e às suas consequências. Isso porque o neoliberalismo é capaz de fazer crer que os sujeitos não são sociais, mas corpos individuais, cuja única semelhança é ambicionar o sucesso. O capitalismo se aproveita disso e torna esses sujeitos servos voluntários que se enxergam como livres, retirando todos os limites morais e humanos de seu horizonte ético. Esse processo resulta na exploração involuntária e inconsciente desses sujeitos que se creem livres.
Byung-Chul Han chama isso de “poder inteligente”, uma manifestação de poder que “não age contra a vontade dos sujeitos subjugados, controlando suas vontades em seu próprio benefício. É mais afirmador do que negador, mais sedutor do que repressor. Ele se esforça em produzir emoções positivas e explorá-las. Seduz, em vez de proibir”[3].
Não existem mais trabalhadores, mas empreendedores. E, se todos são empreendedores, também não existe mais o sentimento de pertencimento a uma determinada classe — logo, não existe antagonismo com a outra classe, pelo menos verticalmente e de baixo para cima. Para Byung-Chul Han, a luta de classes se transfigura em luta interior[4]. Em apertada síntese, não há confronto nem questionamento das injustiças sociais; afinal, o fracasso é também individual. Não à toa, a depressão é uma das patologias do século.
Essa submissão é inconsciente. A condição submissa é, segundo o autor sul-coreano, permissiva. Os instintos de posse e o anseio de conquista são inflados para que pareça alcançável e palpável a equiparação social e econômica com os bilionários. Retomando brevemente o objeto principal deste texto, Tallis Gomes diz também que só contrata quem é fã de bilionário; se você é fã, você materializa, ainda que inconscientemente, aquela situação para si. Leandro Konder traça um paralelo entre ideologia e psicanálise e explica, através de Freud, que, para este, as massas anseiam por uma autoridade que seja admirável, que as dirija e, finalmente, as maltrate[5]. Gomes parece aproveitar essa submissão patológica das massas de Freud para explorar ao máximo seus funcionários.
A proposição hayekiana (de Von Hayek, um dos pais do neoliberalismo) é que a construção social da ordem vigente foi cimentada pela História, e não por agentes sociais, e, por isso, repele todas as críticas. Como se isso fosse possível.
Como isso se liga ao Movimento Galt?
O The Intercept publicou uma matéria que expõe a lista de assinaturas do acordo do movimento. A lista é composta por nome, empresa, cargo e data de assinatura. Diversas assinaturas constam como “autônomo”; uma delas traz, no campo da empresa, “não tenho”, e, no cargo, “em breve vou abrir”. Mesmo policiais assinaram. Em maior número estão pessoas que têm um MEI para operar um mercadinho de bairro ou uma empresa da qual possivelmente elas mesmas são o único funcionário.
Essas pessoas, que assinaram um acordo de empresários para empresários, se enxergam também como empresários. O ato de ter um MEI ou mesmo um CNPJ, no limiar do neoliberalismo, já eleva essa pessoa moral e socialmente. Interiormente, ela não se reconhece como trabalhadora — mesmo que, se parar de trabalhar agora, vá passar fome em menos de um mês. Tallis Gomes não; ele já não trabalha.
Essa façanha sem tamanho do neoliberalismo — de retirar o sentido de luta de classes — precisa ser combatida. Precisamos compreender que a luta de classes existe e precisamos entender a qual classe pertencemos. Sem isso, trabalhamos (in)voluntariamente a favor da classe possuidora, enquanto somos despossuídos.
Citando a grande obra de Glauber Rocha, Terra em Transe: “Olha, imbecil, escute, a luta de classes existe! Qual é sua classe? Vamos, diga!”.
*Rafael é editor-geral da Clio Operária, historiador e especialista em Serviço Social, Ética e Direitos Humanos. Também é pesquisador sobre neoliberalismo e educador popular pela rede de cursinhos Confluências.
Referências
[1] parte do texto “O que é ultrademocratismo” publicado no jornal O Pantera Negra, em 2 de fevereiro de 1969. Donald Lee Cox se juntou ao Partido dos Panteras Negras em 1967 e recebeu o apelido de Field Marshall D.C, ou Marechal do Campo.
[2] BORÓN, A. O feiticeiro da tribo: a farsa de Mario Vargas Llosa e do neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
[3] CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
[4] HAN, B-C. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. São Paulo: Editora Âyiné, 2018.
[5] KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Expressão Popular, 2020




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