Contra o partido de brancos
- Vinicius Souza Fernandes da Silva
- 14 de abr.
- 6 min de leitura
Por Vinicius Souza Fernandes da Silva*

O marxismo, enquanto campo científico de interpretação dos rumos tomados pela história humana e a suas contradições materiais implicadas pela centralidade do modo de produção como fator determinante das contradições que compõem as relações sociais, econômicas, sociais e culturais, se realiza no seu compromisso fidedigno de análise do processo histórico. No pleno desenvolvimento do seu método, a sua capacidade de apreensão da realidade reside no atento processo de observação dos fatores objetivos que configuram o desenvolvimento de uma sociedade. Portanto, não poderia o marxismo, jamais, se tornar positivista do ponto de vista da sua aplicação e se transformar em um espelho das suas próprias experiências do ponto de vista da ciência, muito menos da transformação do mundo. Narciso morreu afogado por tentar tocar a própria imagem na água.
É neste espírito de invocar a mais fiel tradição do marxismo que Moses Kotane, em 1934, enviou uma carta ao Comitê Distrital do Partido Comunista de Joanesburgo. O escrito, poderoso e tão provocativo quanto necessita ser, denuncia um partido comunista que, ao invés de profundamente ligado aos interesses de classe e nacionais dos trabalhadores da África do Sul, era ideologicamente europeu, ou seja, branco. Sem compromisso com a construção de instrumento organizativo da classe trabalhadora local que responda aos seus anseios históricos e esteja profundamente enraizados nos seus desafios, o autor denuncia um Partido Comunista que sonhava ser europeu, que se preocupava com os dilemas do socialismo na Europa e tinha, tão somente, interesses europeus.
Kotane, um dos mais importantes e respeitados militantes comunistas da história da África do Sul, servindo até mesmo como Secretário-Geral do partido, travou uma batalha que, essencialmente, se mostra nas fileiras da esquerda brasileira, inclusive entre os comunistas. Não é incomum, partidos com dirigentes majoritariamente brancos em um país, como o Brasil, que possui a maioria da sua população negra, não é incomum formulações políticas e programas que não consideram a centralidade do roubo do território e genocídio indígena e da desterrotiralização e escravidão africano na formação dos antagonismos de classe do país. Um marxismo que não compreende a centralidade das formas históricas que o capitalismo se manifesta, é um marxismo que falhou enquanto ciência pelo narcisismo racial dos seus quadros.
Situação ainda mais destruidora é que o comunista brasileiro, branco ou negro, ao se olhar no lago e tentar se ver ver europeu, não morre por admiração a própria beleza, mas pula para morte para agarrar o que não é.
Pela africanização do partido
Por Moses M Kotane[1]
Caros camaradas,
No meu último relatório, prometi compartilhar as conclusões a que cheguei a partir das minhas observações recentes. O que aprendi com o meu estudo recente reforçou ainda mais as minhas antigas conclusões (conhecidas apenas por alguns elementos importantes do nosso Partido) de que o nosso Partido sofreu e continua a sofrer por ser demasiado europeizado. Que o Partido está para além do reino das realidades, somos simplesmente teóricos e a nossa teoria está menos ligada à prática. Se alguém investigar a ideologia geral dos nossos membros do Partido (especialmente os brancos), se for sincero, não deixará de ver que eles subordinam a África do Sul aos interesses da Europa. De fato, ideologicamente, não são sul-africanos, são estrangeiros que nada sabem e que são os menos interessados no país em que vivem atualmente, mas sim valentes "servidores" da Europa. São "revolucionários" e "bolcheviques", os seus hobbies são "a situação alemã e o Comintern, Stalin e Trotsky e os erros de vários partidos comunistas".
Mas tal concepção é exatamente o oposto do bolchevismo. Vivemos em uma África culturalmente atrasada[2] — a África é cultural ou economicamente atrasada. Os povos oprimidos e explorados da África não têm os 150 anos de tradição organizacional da classe trabalhadora europeia. A linguagem europeia (o termo europeu é usado em seu sentido correto — não como sinônimo de branco) não é, portanto, aplicável cegamente à África do Sul. Na Europa, a autoconsciência (de classe) desenvolveu-se imensamente, enquanto aqui a opressão, a discriminação e a exploração nacionais confundem a luta de classes, e a maioria da população trabalhadora africana tem mais consciência nacional do que de classe.
Socialismo, a revolução proletária para nossa população rural (a maioria) é apenas uma expressão vaga que soa mais como um sonho do que uma realidade, para eles soa como a "terra de Canaã", que pode ser "alcançada somente após a morte".
A República Nativa Independente, que em essência significa uma república burguesa, mas que a África do Sul (devido às condições objetivas) deve necessariamente pressupor uma república democrática operária e camponesa, tem premissa, linguagem e atitude diferentes daquelas da ditadura do proletariado e da revolução socialista, e é precisamente aqui que o cerne da nossa argumentação necessariamente "gira". É a partir dessa premissa que o autor baseia seus argumentos: a propaganda geral de uma república democrática operária e camponesa não pode ser idêntica à da ditadura do proletariado. A identidade ou a identificação dos dois estágios históricos diferentes nada mais é do que oportunismo grosseiro, uma minimização da nossa tarefa atual. Criamos uma burocracia imaginária às vezes onde ela não existia, mas apenas porque nossos camaradas europeus estão lutando contra a burocracia real. Às vezes, seguimos frases e terminologias da Correspondência da Imprensa Internacional neste país. Devemos aprender com nossos irmãos europeus, mas não devemos perder de vista o fato de que a Europa difere histórica, política e economicamente da África do Sul.
Comecei minhas observações em Queenstown entre os intelectuais africanos, elementos hostis ao comunismo. Mas sua hostilidade se deve mais à ignorância. Entre eles, encontrei alguns nacionalistas convictos, pessoas que não têm paciência para com os brancos, mas são forçados a isso pela sua posição econômica dependente. Desde então, tenho trabalhado entre a parte não intelectualizada do povo nativo. Eles são os mais interessantes de todos. São revolucionários, mas ainda não aprenderam a arma da organização e alguns deles são enganados por ministros; são religiosos; todos acreditam na existência de Deus e na Bíblia, mas desaprovam a venalidade dos líderes das igrejas. Eles encontram provas para tudo o que dizem na Bíblia. Pessoalmente, são bastante nacionalistas, mas até agora sempre consegui trazê-los ao meu ponto de vista, por exemplo, na questão dos brancos pobres.
O Congresso Nacional Africano Independente (CNAI) está profundamente entrincheirado nestes distritos, Cradock e Tarkastad, e seus líderes são extremamente populares. Seria simplesmente falta de tato denunciar Tonjeni neste momento. Ele conquistou a confiança de seus seguidores e muitos o admiram. Até agora, encontrei dois grupos dos seus seguidores. O primeiro na quarta-feira, dia 14 (12 pessoas), e na quinta-feira, dia 22 (10 pessoas), reunindo-me novamente com alguns na noite de segunda-feira (26 pessoas). Estou muito satisfeito com esses dois grupos até agora e ficaria muito satisfeito em ver pessoas tão sérias entre os nossos supostos membros do Partido.
Acho que é hora de encerrar meus argumentos "sofisticados" e apresentar algumas sugestões. Minha primeira sugestão é que o Partido se torne mais africanizado ou afrikanizado, que o CPSA dedique atenção especial à África do Sul, estude as condições neste país e concretize as demandas das massas trabalhadoras a partir de informações de primeira mão, que falemos a língua das massas nativas e conheçamos suas demandas. Que, embora não deva perder sua fidelidade internacional, o Partido deve ser bolchevique, tornar-se sul-africano não apenas teoricamente, mas na prática, deve ser um Partido que trabalha pelos interesses e para o povo trabalhador da África do Sul e não um partido de um grupo de europeus meramente interessados em assuntos europeus.
Com saudações revolucionárias.
*Vinicius Souza Fernandes da Silva é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e coordenador do Conselho Editorial da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial).
[1] Moses Kotane foi um revolucionário e político sul-africano, compôs o Congresso Nacional Africano e foi Secretário-Geral do Partido Comunista Sul-Africano por quase três décadas. É um dos políticos sul-africanos mais respeitados de seu tempo.
[2] A noção de “atraso cultural” utilizado pelo autor, não se refere a lógica eurocêntrica que opõe a cultura europeia enquanto superior a do colonizado, mas se refere a cultura política organizativa da classe trabalhadora, apesar de ainda centrado na experiência europeia de luta no mundo do trabalho.
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