Por Murillo Otavio
“Muitas vezes fui acordado pelos gritos mais angustiantes de uma tia minha, a quem ele [escravista] costumava amarrar a uma trave e chicotear as costas até que ficassem cobertas de sangue. Ele a chicoteava para fazê-la gritar, e chicoteava para que se calasse; só quando era tomado pelo cansaço ele parava de usar a chibata, já coberta de sangue. Eu nunca a esquecerei dessa cena.”
Essas palavras foram escritas por Frederick Douglass, um dos principais abolicionistas da diáspora africana, em sua obra Frederick Douglass: Autobiografia de um escravo, lançada em 1845. Ele descreve cenas de violência no sul dos Estados Unidos, onde convivia com o único elo familiar que possuía até então.A escravidão lhe tirou não apenas o nome e a cidadania, mas também a cultura e o amor próprio. A violência física, embora intensa, era o menor dos problemas. Por esses motivos, a origem exata de Frederick é desconhecida.Naquela época, era comum que os escravistas separassem filhos de suas mães negras para vendê-los. É provável que essa tenha sido a história de Douglass.Curiosamente, foi durante sua venda que ele descobriu o caminho para a liberdade: a leitura.Aos 11 anos, Frederick foi enviado a Baltimore para trabalhar com um casal branco, novato na escravidão. Embora a violência ainda não fosse parte da rotina, ele foi surpreendido quando a senhora decidiu ensiná-lo a soletrar.
Em uma das aulas, o senhor interrompeu abruptamente, dizendo que “a educação prejudica o bem-estar das pessoas escravizadas.”Foi nesse momento que tudo mudou. Douglass ouviu essa conversa e percebeu que o analfabetismo era uma ferramenta da escravidão. Para conquistar a liberdade, ele sabia que precisava aprender a ler e escrever.Já adulto e acreditando piamente em seu novo caminho, ele passou a ler toda e qualquer coisa que estivesse escrita à sua frente. Mas uma leitura específica foi essencial para mudar o rumo de sua vida.
O jornal The Liberator (O Libertador, em tradução livre) mostrou-lhe que a escravidão não era a única forma de um negro viver. Uma luz no fim do túnel, um prato para um faminto, chame como quiser. O fato é que Frederick descobriu que era possível ser livre.
Perceber somente na fase adulta que a escravidão não era a única forma de vida para um negro resume bem a dimensão do quanto o sistema escravista pisoteava a vivência negra nos Estados Unidos e no mundo.
O The Liberator foi o periódico abolicionista mais influente antes da Guerra Civil e foi publicado entre os anos de 1831 e 1865. Criado por William Lloyd Garrison, um jornalista radical contra o aprisionamento dos negros, o jornal desempenhou papel fundamental na luta abolicionista. Apesar de ser um homem branco e livre, recomendo buscar mais informações sobre ele.
A leitura do jornal fez com que Frederick se redescobrisse enquanto homem negro. Confiante, ele passou a desafiar as regras que lhe eram impostas. Inclusive, a melhor parte do livro é a descrição de quando ele trocou socos (e saiu vencedor) com um escravista.
Frederick conseguiu fugir da escravidão com a ajuda de outros negros já libertos. Casou-se com uma mulher negra, com quem teve três filhos. A partir daí, dedicou sua vida à libertação de toda a população negra, tornando-se um dos principais abolicionistas da diáspora.
O que sua história ensina hoje
É difícil imaginar uma forma de viver no Brasil nos dias atuais sem a leitura. Veja, Frederick Douglass percebeu que a escravidão não era a única maneira de viver, e foi a leitura que ampliou sua visão de mundo.
E é exatamente isso que precisamos, nós, pessoas negras: ampliar nossos horizontes. E temos grandes intelectuais para nos ajudar nesse processo, como Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento.
Não são apenas pensadores. Jornais, assim como aconteceu com Frederick, podem nos mostrar realidades a partir do olhar negro. Alma Preta e Mundo Negro são exemplos disso.
Antes de me formar em jornalismo, passei a ler compulsivamente. Assim como Frederick, lia qualquer coisa, sobre qualquer assunto, até que uma luz no fim do túnel me mostrou que não precisava me apequenar.
No começo, pode ser difícil e até dar sono, mas somente a leitura fará com que a população negra evolua. Claro, é preciso mais do que isso, mas nenhuma dessas ações terá êxito sem a leitura.
Há uma passagem no livro muito interessante. Trabalhando no campo, Frederick pregou uma página do jornal na parede para não deixar de ler enquanto realizava os afazeres que a escravidão lhe impunha.
Esse é o nosso caminho! Onde quer que estejamos, seja da forma que for, leia, porque até no lixão nasce flor.
Viva Frederick Douglass.
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