Por Marcos Morcego*
“As ciências sociais do capitalismo em geral, e em particular sua economia política, são mitologias que foram elaboradas a fim de tornar estes fatos invisíveis ou de apresentá-los de forma distorcida. É importante não cair na armadilha e saber o que estes mitos realmente implicam”.
(Abdullah Öcallan, Nação Democrática)
No ano do centenário de Clóvis Moura, intelectual do povo, militante e ferrenho lutador pela emancipação humana, resgataremos o debate sobre a academia, mais especificamente sobre a institucionalização da sociologia. Com isso não só buscamos fomentar uma crítica sociológica que, no fim, culmina na sociologia crítica, mas também estabelecer um debate que coloca a atuação de instrumentos políticos que buscam a superação do sistema capitalista no centro daquilo que seria definido enquanto sociologia da práxis.
Se com Marx tivemos, na tese onze[1] a ideia da filosofia para a transformação, que ganha uma grande continuidade com Gramsci conceituando o que é chamado de filosofia da práxis[2], com Clóvis Moura e Florestan Fernandes temos, não só, a sociologia próxima do socialismo, mas separadas duas perspectivas, uma que busca a manutenção do status quo, uma sociologia institucionalizada e parada. A outra, a sociologia da práxis, é a do movimento e a da superação, uma sociologia feita por uma outra intelectualidade, por e pelos debaixo, sem depender da academia, mas colocando suas forças e energias na transformação.
Embora pareça uma negação da filosofia da práxis, acredito que se encaixe melhor em uma tradução, no sentido gramsciano - uma adaptação mais próxima da nossa realidade social -, por isso se fixando mais próximo das categorias moureanas e de uma análise, como ambos autores classificam, de uma produção feita pelos subalternos, ou seja, pelos grupos sociais que são marginalizados pelo capitalismo, servindo para o controle e para a acumulação do capital, mas que se encaixam em uma classe que também é chamada para a superação da nossa sociedade, nossa estrutura econômica, política e social.
A Teoria Sociológica
A teoria sociológica, basicamente falando, é a "compreensão global das realidades sociais que se inserem num contexto estruturado de controvérsias e de pretensões ideológicas em conflito"[3]. Portanto, surge muito antes de sua matéria oficial existir, em meados do século XIX. Mas se torna uma ciência, de tentativa dessa compreensão global, mas também como pretensão de controle global. A própria criação da Sociologia tem por base um elemento fundamental crítico, então boa parte das linhas teóricas se constroem quase em uma base teológica, eurocêntrica e também androcêntrica[4].
A sociologia tem como objetivo fazer o ser humano resgatar o próprio ser humano, em um sentido intimamente pedagógico, que busca trazer a reflexão e a autoconsciência, um processo dialético entre a realidade e a teoria. Mas com a construção de um curso que apresenta "apenas a literatura sociológica universal", a própria existência dela fica jogada de lado, para formar pessoas que são "simples alfabetizado[s] em sociologia". A redução sociológica da qual Guerreiro Ramos se preocupa, é justamente a "superação da sociologia nos termos institucionais e universitários em que se encontra"[5].
A Universidade
Florestan Fernandes olhava para as universidades, principalmente durante a ditadura empresário cívico-militar, em que busca explicar os processos da USP, em que professores entregavam professores para os militares, ou ainda, e aqui lembrança nossa, de que o Conjunto Residencial, abreviadamente, CRUSP, foi espaço de reunião de guerrilheiros e de estudantes. Uma universidade, que assim como boa parte dos projetos mais antigos, "das elites e para as elites", sendo um excelente modelo. Após 1964, o que se esperava era uma reforma, porém o que aconteceu, e tinha como ideia a conservação dos moldes que a sociedade se projetava, foi "a antirreforma, obscurantista, terrorista, repressiva e fascista em muitos de seus aspectos". Mas, sendo uma instituição conectada ao governo, ou mais ainda à manutenção e à reprodução do Estado, do sistema da forma como se segue, não pode superar seus limites.
Com a contrarreforma, Florestan busca demonstrar que ela ficou incapacitada de construir além do que se seguia, "seja a fórmula oligárquico liberal de 'grande universidade'", seja seu limite mais radical "a fórmula democrático-burguesa de defesa da escola pública e da universidade crítica"[6]. Não buscamos aqui negar que o acesso por parte de pessoas negras, indígenas, trans e outras pessoas oprimidas, reprimidas, exploradas e discriminadas, que ali surgiu uma possibilidade de ascensão, mas o entendimento de que essas políticas só foram conseguidas através de diversas lutas, elas que possibilitaram uma expansão do espaço universitário, que soube se adequar, e mais ainda, que busque restringir e impedir que a crítica vire ação, que se forme a práxis (assunto ao qual voltaremos).
O mundo europeu moderno, e posteriormente o americano, são os exemplos eternamente existentes, o processo de homogeneização ocidental. Assim se fundamenta a base da construção do pensamento sociológico acadêmico, que "não é universal", mas uma perspectiva "branca, eurocêntrica, racista, opressora". Quando entendemos isso na construção da sociedade capitalista estamos observando aquilo de mais profundo, os fenômenos sociais, que não estão suspensos no ar, mas "inseridos em uma totalidade social que se manifesta histórica e socialmente de forma concreta", portanto faz parte do desenvolvimento de momentos históricos que formaram e foram formados, para a concretização da estrutura que se apresente, e diante de nós, eis o horror capitalista. Na sociologia temos pesquisadores reféns de "uma dupla carga alienadora", uma ideológica pelo próprio elitismo das universidades, de outro, pela falta de financiamento[7].
O intelectual quando subversivo, não é aquele que busca ampliar e mudar a universidade, mas aquele infiel à mesma. Não é a busca de apropriação deste novo espaço, de um suposto novo teto, mas "querem estar no mundo, no mundo com os outros, e fazer o mundo de novo". Fred Moten e Stefano Harney abordam o planejamento fugitivo, a ideia de circular por baixo dos sistemas, carregando informações, mas sempre colocando em cheque a estrutura capitalista. Se a Universidade se apresenta como um lugar em que se pode buscar certos esclarecimentos e até se refugar, devemos "abusar de sua hospitalidade, contrariar sua missão, nos juntar à sua colônia de refugiados"[8], ainda ficando em suspenso como estar lá e não ser parte.
Florestan Fernandes no caminho de responder essas questões, diz que "se, e enquanto, a universidade for monopolizada socialmente por uma classe ou por uma minoria que contempla somente as famílias mais ou menos privilegiadas de vários extratos de duas classes, ela não será uma universidade liberada dos controles externos que a aprisionam e a limitam". E como ele mesmo diz, "liberação na sociedade para que haja liberação na universidade", basicamente tomar as instituições nas nossas mãos, só quando a revolta social acontecer essas instituições serão destruídas com os muros do sistema capitalista, com a sua capilaridade que invade toda nossa vida social, a ponto de que novas formas já sendo constituídas de antes, ou novas, surjam.
Sociologia combina com socialismo?
A sociologia pode ser superada enquanto matéria acadêmica, refém dos muros institucionais, ou se fará presente toda vez que for posto por "um grupo social" projetos alternativos aquilo que está a sua volta? Se além de questionar, existir a partir da análise crítica, a sociologia também for propositiva, apresentar um novo projeto de existência? Uma ideia totalizadora, rompendo com a perspectiva da própria academia enquanto o centro intelectual, que as soluções estão todas sendo produzidos lá, mas também rompendo com a perspectiva de nos mantermos na ilusão de que as coisas, necessariamente, devem partir de decisões vindas de cima, mas que nós podemos tomar em nossas mãos a possibilidade de criar nossas próprias formas de viver. A luta contra o capitalismo é também maximizar o conceito de sociologia, acontecerá quando pretendemos "ser sujeitos de um destino próprio"[9]. É quase como se a subversão de Gramsci houvesse retornado a história, buscando uma análise para "além do próprio nariz", buscando o que é utópico, olhando o que é, mas buscando aquilo que podemos ser.
Florestan Fernandes consegue apontar que a separação das ciências (voltando seu olhar para as humanas), foi o que permitiu a separação, dentro de seus conteúdos da teoria e da prática, seguindo a ideia weberiana de que "tomar uma posição política militante é uma coisa, e analisar as estruturas políticas e as posições partidárias é outra". A sociologia se distanciou da luta política, quando ainda não era necessariamente sociologia, para se tornar um acessório, uma "arma demagógica de propaganda dirigida". Se a ciência, ou, algo dito em nome da ciência pode se tornar "o reduto do pensamento reacionário", ou ainda mais, "a base material da opressão", para Florestan, "a verdadeira ciência começa, então, com a pergunta: como enfrentar e destruir, da maneira mais rápida possível, essa ordem social?"[10].
Por mais que academicamente você possa sim, ser um sociólogo, o ponto central é no conflito no meio da sociedade, o rumo da revolução social são o centro da sociologia. Mas, aqui que as coisas se transformam, esse é o centro do debate da luta de classes, portanto, a sociologia só é reconhecida enquanto tal academicamente, porém, onde está o centro da luta de classes e quem está tensionando? Muito longe de ser dentro da universidade, por mais que, sim, a revolução também a atravesse, os exemplos mais recentes apontam para outros rumos[11].
Novamente, o acesso à universidade e os caminhos que ela abre, não estão em cheque. Mas caso se busque sair do confinamento intelectual, deve buscar "um novo enlace com o movimento socialista", dessa forma, não só ele avança, mas o próprio movimento passa a possuir uma "sociologia verdadeiramente crítica e militante". Entendendo, inclusive, que esporadicamente surgem "modas", que a própria lógica acadêmica entra, usando da estética, das palavras. O socialismo necessariamente penetra nas áreas da sociologia, não podendo ser isolado um do outro, se retroalimentado, ele "que põe a sociologia em interação com a transformação real da sociedade e infunde à investigação sociológica uma dimensão prospectiva e política".
Palavras Finais
"Os modelos apresentados pela Sociologia acadêmica prendem-se mais a formações
abstratas, pois refletem apenas a forma dos fatos, fenômenos e processos sociais".
Clóvis Moura[12].
O próprio Lenin, de acordo com Clóvis Moura, aponta o olhar que a sociologia faz sobre esses fenômenos, demonstrando como o materialismo histórico dialético conseguiu destacar as relações de produção, também lembrando da vinculação entre essas questões. Se a luta de classes está presente em todos os níveis da estrutura, faz muito sentido a academia também se colocar nos limites de pensar grandes planejamentos políticos, vinculados à melhoria do sistema, quase como uma reforma do sistema capitalista.
Lutar pela superação da ordem, ser aquilo que Martin Luther King Jr reivindicava, como os sociólogos a serviço do status quo diriam, que somos desajustados. E ser desajustado para o sistema é o que indica nossa chance de fuga. Pensar a realidade social e lutar pela transformação é o que nos coloca na possibilidade de rompimento com esse grande estado de alienação e mal-estar presente no dia a dia.
Espero que esse apanhado de ideias nos permita refletir sobre a relação da sociologia com o socialismo, ou de pensar os movimentos sociais, as organizações e instrumentos políticos como base dessa análise, crítica e construção. É o rompimento não só com o academicismo, mas também com o individualismo e a construção do ego. Coletivo e territórios no centro da construção de novos mundos e novas realidades.
Como Tiaraju Pablo D'Andrea nos diz, "contar a própria história é insuficiente. O objetivo principal deve ser mudar a história, no sentido mais amplo, para então mudar a história"[13]. É a defesa de um marxismo favelado, periférico, dos debaixo. Um marxismo que deixa de ser homogêneo, mas se faz enquanto movimento diversa na luta pela emancipação, sociologia e socialismo construindo novos mundos.
*Marcos Morcego é editor e articulista da Clio Operária, comunicador político pela Caverna do Morcego, estudante de Ciências Sociais (FFLCH-USP), pesquisador sobre Identidade, Território e Organizações Políticas e autor do livro "Por uma implosão da Sociologia"
[Indicação Bônus] Por uma implosão da sociologia. Marcos Morcego. Editora Terra Sem Amos.
[1]"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo", trecho retirado do site marxists: <Teses sobre Feuerbach>.
[2] Uma das referências é o livro publicado pela Expressão Popular: Gramsci e a verdade efetiva das coisas: <Gramsci e a verdade efetiva das coisas - Expressão Popular>.
[3] Introdução crítica à sociologia. Margaret A. Coulson e David S. Riddel. Zahar Edições.
[4] A teoria sociológica para além do cânone. Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha. Editora Funilaria e Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
[5] A Redução Sociológica. Guerreiro Ramos. Editora UBU
[6] A questão da USP. Florestan Fernandes. Editora Lutas Anticapital.
[7] Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. Dennis de Oliveira. Editora Dandara.
[8] Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro. Fred Moten e Stefano Harney. Editora UBU.
[9] A Redução Sociológica. Guerreiro Ramos. Editora UBU.
[10] A sociologia no Brasil. Florestan Fernandes. Editora Vozes.
[11] Como as vitórias das ocupações no Pará entre indígenas, quilombolas, camponesas e camponeses, professoras e professores. Ou em Pernambuco, na vitória contra os empreendimentos eólicos.
[12] A sociologia posta em questão. Clóvis Moura. Livraria Editora Ciências Humanas.
[13] A formação das sujeitas e dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tiaraju Pablo D'Andrea. Editora Dandara.
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