Por Giovanna Cobellis

Esta será uma breve jornada de três partes, procurando em cada uma delas entender sob quais mentalidades o Brasil foi e está sendo escrito. Este pode parecer um conteúdo óbvio, mas acredite, até mesmo o óbvio precisa ser dito para que não continuemos caindo no esquecimento da História, estudo esse que mal consegue acompanhar tantas disputas e desdobramentos mundo afora.
Estudar História do Brasil sempre pareceu leitura de um conto, cheio de passagens que beiram a ficção, com personagens pontuais e com “começos, meios e fins” para cada período desses 525 anos eurocentrados. A cada capítulo da nossa História um herói aparece e a partir dele a narrativa se constrói, com o auxílio das icônicas gravuras desses heróis estampadas nas páginas dos livros didáticos — gravuras que nem minimamente serviriam de fonte histórica — porém, a questão aqui é entender: quem são esses “heróis” escolhidos para o Brasil?
Mas afinal, o que é o herói? No dicionário, encontramos o termo entendido por: “he-rói sm. 1. Homem extraordinário pelos feitos guerreiros, valor ou magnanimidade. 2. Protagonista de obra literária.”
Seriam então nossos heróis os guerreiros que defenderam essa terra das invasões? Pessoas que lutaram por liberdade frente à imposição escravocrata? Brasileiros que não se submeteram à ausência de direitos e lutaram contra um sistema repressivo? Ou seriam esses heróis apenas personagens intencionalmente escolhidos para compor o grande enredo da nossa História?
Respondendo a esses questionamentos, levanto outro: quem são esses heróis impostos a nós?
Reconhecidos e estampados nos livros escolares estão Marechais, Imperadores, Comandantes, Marqueses, Almirantes, Barões, Padres e outros religiosos, militares de alta patente — são poucos os soldados (povo) reconhecidos como heróis — e quiçá Presidentes. Figuras politizadas e de posse de seus títulos, que afastam do “homem comum” a capacidade de se reconhecer nesta persona, mas que inconscientemente acaba por aceitar essa figura, além de elas estarem presentes no nosso cotidiano e no decorrer do nosso crescimento. Elas (figuras), como na mágica de um conto, escapam aos livros didáticos e invadem as comemorações de feriados nacionais, os nomes de ruas, avenidas e rodovias e se transformam em imponentes estátuas espalhadas pelas cidades. A escolha desses heróis sempre se tratou da incorporação da figura do homem branco, europeu, salvador da terra e dos interesses do povo que nela habita, mas claro, desde que você não seja indígena, negro ou pobre. Nessa altura do texto alguém poderia dizer: mas nós temos heróis comuns como Tiradentes. Falemos então sobre ele.
O herói de aparência desconhecida, mas que ficou gravado em nossa memória conforme as representações oficiais idealizadas por uma figura de vestes simples, cabelos longos e um rosto coberto por bigode e barba por fazer, sugerindo um personagem santificado assim como o Jesus Cristo europeu.

A construção de sua imagem se mostra mais importante que as próprias ações do herói, conforme aponta Furtado:
Ele plantou a semente da liberdade, era um ativista, embora entre os planos dos inconfidentes não estivessem temas como a libertação dos escravos. Tiradentes tinha três deles quando foi preso, e os demais inconfidentes também eram donos de muitos escravos. (FURTADO, 2002)
Sobre heróis indígenas: temos Clara Camarão, potiguara e líder de um pelotão feminino durante as invasões holandesas em Recife, foi uma heroína indígena batizada com nome europeu e catequizada por padres jesuítas, sendo assim, não era tratada como uma nativa selvagem, pois havia sido batizada conforme os desígnios do catolicismo, e Sepé Tiaraju, guarani e guerreiro considerado santo popular declarado e missioneiro rio-grandense, foi um herói indígena que se voltou contra o Estado, conhecido por lutar por seus direitos e que recebeu apenas homenagens discretas e negligenciadas como forma de desautorizar os movimentos sociais que atualmente abraçam sua figura.
E nossos heróis negros? Uma minoria entre o panteão, mas vou citar Machado de Assis, que até os dias de hoje têm sua figura embranquecida pela História positivista; João de Deus, Luís Gonzaga, Manoel Faustino e Lucas Dantas, heróis da Revolta dos Búzios (raramente mencionada entre as revoltas coloniais); Luiz Gama e Francisco José do Nascimento, heróis e líderes abolicionistas; e um dos mais reconhecidos: Zumbi dos Palmares, que na história recente foi duramente atacado por entidades públicas (voltaremos nesse ponto). O período da escravidão, as leis abolicionistas e o enraizamento da tortura do negro que até hoje se faz presente na nossa sociedade nos leva a mais um grande conto desse livro de histórias, o conto da “heroína” Princesa Isabel, que em 13 de Maio de 1888 assinou a Lei Áurea, que aboliu – sob muitas pressões internas e externas - formalmente a escravização no Brasil.
A lei que se limitou a ficar no papel é um grande exemplo de como a História vista pela perspectiva de datas e personalidades tem sérios problemas, pois apresenta um contexto visto de cima, não abrangendo a história das minorias que de fato foram impactadas pelo ocorrido.
Após a assinatura da lei, fato que só ocorreu por conta da incessante pressão da Inglaterra para que o Brasil — até então o único país da América que ainda não havia abolido a escravização — o fizesse (exceto pelos estados de Amazonas e Ceará, que já haviam abolido a escravidão) e pelo crescimento do movimento abolicionista no Brasil, e não por desejo, benevolência ou caridade do governo do Imperador. Foram mais de 300 anos de escravização, sem que houvesse nenhum tipo de apoio aos libertos ou indenização pelos anos de trabalho forçado e tortura.

Mulher, branca e da família real portuguesa, a “Isabel do Brasil” mesmo após 137 anos da assinatura da tal lei e após tantos estudos sobre escravizados e libertos, que em conjunto com pessoas pobres lutaram efetivamente pelo fim da escravidão muito antes da vigência dessa lei, ainda aparece como protagonista deste capítulo que apaga de forma cruel e premeditada reais abolicionistas como Luiz Gama, Francisco José do Nascimento — o Dragão do Mar — já aqui mencionados, mas também Dandara dos Palmares, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Adelina Charuteira, Mariana Crioula, Zacimba Gaba, Zumbi dos Palmares e tantos outros negros e negras.
É preciso exigir no plano educacional que se trate desde o nível básico o conhecimento e estudo das minorias, a luta de pessoas como Zumbi dos Palmares, atividade que parece distante quando nos lembramos que em 13 de maio de 2020, data simbólica da Abolição da Escravatura, o então Presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, repudiou Zumbi publicamente através da entidade pública que dá nome à instituição.
A instituição, que tem por objetivo promover a igualdade racial e dar suporte à luta contra o racismo, publicou uma série de artigos que tratam Zumbi como uma figura criada e idolatrada pela “esquerda alienada”, bem como o comunismo, a negritude e o movimento negro e colocam a data de sua morte — quando se comemora o dia da Consciência Negra (20/11) — como uma data imposta pelo movimento negro em virtude da não aceitação da “verdadeira realizadora do fim da escravidão”, apagando toda luta e resistência do povo negro. Mas também o que esperar de uma pessoa que nega a existência do racismo no Brasil, que chamou o isolamento social feito por conta do Covid-19 de “imbecilidade”? Mas quer saber, se chegamos no ponto “pandemia”, deixo a continuação dessa análise para o próximo texto.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI Escolar. O minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FURTADO, João Pinto. O Manto de Penélope — História, Mito e Memória da Inconfidência Mineira de 1788–9. São Paulo: Companhia das letras, 2002.
MELO, Itamar. Conheça a história de Sepé Tiaraju, o índio que pode virar santo. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/02/conheca-a-historia-de-sepe-tiaraju-o-indio-que-pode-virar-santo-ck6chg9js0f6a01mv4rrqmvln.html/>. Acesso em: 14 mai 2020.
Senado Federal. 45 heróis e heroínas da Pátria. Disponível em: <https://senadofederal.tumblr.com/post/66681987378/45-her%C3%B3is-e-hero%C3%ADnas-da-p%C3%A1tria/>. Acesso em: 14 mai 2020.
Catraca Livre. 17 mulheres negras brasileiras que lutaram contra escravidão. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/17-mulheres-negras-brasileiras-que-lutaram-contra-escravidao/>. Acesso em: 14 mai 2020.
Fundação Cultural Palmares. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/>. Acesso em: 14 mai 2020.
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