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Nos braços da justiça

Foto do escritor: Vinicius Souza Fernandes da SilvaVinicius Souza Fernandes da Silva

Por Vinicius Souza Fernandes da Silva*



A sobreposição da morte pela vida, tem um papel fundamental para a identidade histórica da sociedade moderna e contemporânea. É o marco abraâmico da vida eterna, quando o poder da morte sobre nós, passa a constituir apenas uma etapa transitória, um passo a ser empenhado no horizonte da infinitude, se for possível provar o próprio valor diante do julgamento divino. É seguro dizer que desde a balança de Anúbis até o apogeu neopentecostal, a vida eterna é o mito que busca curar a angústia inevitável da experiência humana - o tempo. Esse símbolo da finitude da experiência, o elemento que domina o empreendimento da felicidade e do prazer. Por isso, quando Jesus Cristo, no Evangelho de João, ordenou ao cadáver de Lázaro que se levantasse, não foi simplesmente o homem morto que venceu a morte, mas a felicidade venceu o sofrimento. 


Em “Eros e Civilização", Herbert Marcuse expõe como o tempo é um instrumento de dominação social e econômica, efetivo meio de controle do capitalismo, necessariamente pelo medo inconsciente da morte, sendo o tempo o caminho até o derradeiro fim. O que todo ser humano quer é poder contar a história da sua vida e ter tempo para realizar essa história, ou seja, não caminhar para a morte. O medo da morte é o mecanismo que anula a plenitude de todo prazer. A humanidade vive para andar em oposição à morte. Mas como viver, qualquer felicidade possível na sociedade contemporânea, quando esta sociedade te mata a cada 23 minutos[1]? Em um país no qual as forças de segurança pública mataram no ano de 2023 6.395 pessoas, sendo 82,7% negras, 71,7% de 12 a 29 anos e 99,3% do sexo masculino[2]? 


O Carnaval de 2025 marcou profundamente o povo brasileiro, além de ser a maior festa do país, foi marcado pela primeira vitória da história do país no Oscar, célebre prêmio concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. O Brasil conquistou três indicações históricas, sendo elas para melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz, levando a segunda categoria. O filme premiado, “Ainda estou aqui”, longa metragem dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, de forma intimista narra a trajetória de Eunice Paiva, advogada indigenista que na década de 1970, teve o seu marido, o deputado trabalhista Rubens Paiva, preso, brutalmente torturado e assassinado pela Ditadura Militar. Até os dias de hoje, não há um desfecho oficial do que houve com o corpo de Rubens, desaparecido pelos militares. O filme, só no Brasil, alcançou 4 milhões de espectadores nas primeiras 12 semanas de exibição[3]. Provocou o país a refletir sobre os horrores vividos pós golpe de 1964 e com o Oscar, fez o mundo todo olhar para a história brasileira. Foi um carnaval histórico para o Brasil. 


Foi logo após a premiação deste filme que retrata o terror da violência do Estado e durante o decorrer do maior carnaval do mundo, que simboliza um culto a vida, nas ruas das cidades e nas avenidas dos sambódromos, que uma operação policial em Salvador resultou em uma chacina que vitimou 12 pessoas na madrugada da terça-feira de carnaval. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, essa é a 100ª chacina em Salvador e região metropolitana desde 2022. Deste número, 67% das chacinas, envolvem as forças de segurança pública do estado, acumulando 261 mortes[4]. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Polícia da Bahia é a mais violenta do Brasil, uma vez que no ano de 2023 matou 1699 pessoas. 


Em um estudo que comparou as polícias dos países integrantes do G20, foi apontado que a polícia da Bahia matou 5,5 vezes mais do que as polícias dos Estados Unidos inteiro. No quadro geral, a polícia brasileira mata 36 vezes mais do a dos outros países da cúpula[5]. Um relatório do Instituto Fogo Cruzado apontou que em janeiro, no intervalo de 7 dias, ocorreram 4 chacinas no estado nordestino, sendo cerca de 75% delas, ocasionada por intervenção da polícia. Não é coincidência que a Bahia é o território mais negro no Brasil[6]. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[7], a população baiana é composta em 80,8% por pessoas autodeclaradas pretas e pardas. É um projeto na qual a razão necropolítica do Estado produz a morte em forma de genocídio, potencializado na morte de jovens negros. 


Enquanto a força policial da região mais negra do país matava 12 pessoas, neste mesmo carnaval a Acadêmicos do Tatuapé, vice-campeã do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo, desfilou no Anhembi trazendo uma alegoria que expunha a estátua da justiça com um jovem negro nos braços. Segundo o último Atlas da Violência[8], em 2022 46 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, deste total 35 mil pessoas eram negras e a metade desses homicídios vitimou pessoas de 15 a 29 anos. Foram 62 jovens mortos por dia. Em 10 anos (2012-2022), o Brasil matou  321.466 jovens. São dados de guerra. A sociedade brasileira é um cemitério de jovens negros. E esses corpos e seu sangue, seguem nos braços da justiça.


Clóvis Moura aponta em seu clássico “Sociologia do negro brasileiro” que a origem do autoritarismo brasileiro está no processo empenhado durante o século XIX que teve como razão aparelhar o Estado Brasileiro em nome da manutenção da sociedadde como ela era, escravista. Em resposta à pressão inglesa para desarticular a economia da escravidão no mundo e impulsionar o capitalismo industrial, o Império brasileiro sancionou a Lei nº 581 de 1850, proposta Ministro da Justiça - Eusébio Queiroz. A legislação proibia a continuidade do Estado Brasileiro no tráfico internacional de pessoas escravizadas. Contudo, apesar do caráter supostamente moderno da lei, os burocratas e dirigentes do Estado, seguiram aparelhando as instituições e agindo à margem da legalidade para manter o tráfico transatlântico de escravizados, com participação da própria família real, além de políticos, delegados, militares e demais servidores públicos. 


Esse caráter nacional no qual a norma jurídica da sociedade é constantemente sobreposta pelos interesses da classe dominante, faz parte central do desenvolvimento do Estado Brasileiro, está  no ethos desta civilização. Em “genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, Abdias Nascimento mostra como desde o colonialismo português, normas oficiais, supostamente, modernas para o seu tempo , como a Lei do Indigenato que vendia para o mundo um suposto colonialismo benevolente, mas que na verdade se tratava de uma sociedade regulada pela força do saque de terras e povos inteiros e a pserguilão da suas culturas, resultando na desumanização completa. Epistemologicamente, o Estado Brasileiro é desenvolvido pela lógica de normas oficiais que nomeiam as relações sociais, no entanto, é a força em nome dos interesses da classe dominante que regulam esta sociedade. 


Quando se trata da violência, exploração, opressão e morte dos povos racializados que compõem o que são as classes subalternas no Brasil, a exceção já está vigente, ela compõem a centralidade da sociedade. É assim que 46 mil jovens são mortos no país que possui a “constituição cidadã”, assim chamada a Constituição Federal de 1988 por Ulysses Guimarães, desta forma que o país que possui o avançado Estatuto da Criança e Adolescente convive com mais de 321 mil jovens mortos em um período de 10 anos. Quando se trata do genocídio negro e indígena, o Estado de exceção existe na norma, na democracia e na Constituição. 


Esse tema demonstra ainda o limite do campo progressista brasileiro e mal chamado de esquerda. É o caso da Lei nº 11.343/2006, que foi criada com o objetivo de reduzir o encarceramento por porte de drogas, mas a sua margem de interpretação por parte dos agentes de segurança pública, fez disparar o encarceramento em massa da população negra no Brasil[9]. A lei criada e sancionada durante o governo Lula 1, foi um passo fundamental para o Brasil chegar aos níveis de encarceramento que possui hoje - a terceira maior população carcerária do mundo, além de ter disparado o encarceramento de mulheres. Segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, o Brasil possui mais de 850 mil pessoas presas, sendo 94,5% homens e 70% negros[10]. A semelhança com o perfil de quem é massivamente assassinado no Brasil, como um raio cintilante em um céu já em tempestade, constata mais uma das diversas frente do genocídio negro que dura 500 anos no Brasil.


É gritante, além da legislação do cárcere de 2006 e nada ter sido feito em Lula 2 e Dilma 1 para reverter seus efeitos nefastos, o patrocínio político e ideológico prestado por Lula as Unidades de Polícia Pacificadora, as famosas UPP’s implementadas no Rio de Janeiro, se tornando uma forma de sitiar as favelas e garantir a presença constante das armas apontadas as populações negras, faveladas e periféricas. As mesmas UPP’s que Marielle Franco, corajosa lutadora em defesa do povo favelado do Rio de Janeiro, criticou em sua dissertação de mestrado intitulada “UPP - A redução da favela em três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”[11], foi extremamente elogiada pelo Presidente Lula a ponto de ser falado em nacionalização desta política de extermínio[12]. A Bahia, estado com a polícia que mais mata negros no Brasil, é  governo há 18 anos pelo partido de Lula. 


A direita que sempre demonstrou explicitamente a sua predileção por chacinas e policiamento de morte em suas gestões estaduais ao longo do Brasil Democrático, tem hoje um dos seus maiores expoentes compondo o governo Lula 3, Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente do Brasil, adversário histórico do próprio Lula, esteve à frente do estado de São Paulo por três mandatos, acumula uma denúncia Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, pela desocupação do Pinheiro, episódio no qual a polícia sob seu comando cometeu mais de 1.800 violações de direitos humanos, apontada em relatório do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana, o que envolveu estupro, tortura e desparecimento de pessoas[13]. Na tendência de militarização das gestões municipais, Guilherme Boulos, deputado federal pelo PSOL, que foi o candidato do campo progressista à Prefeitura de São Paulo em 2024, fez uma campanha prometendo manter a Guarda Civil Metropolitana armada e dobrar o seu efetivo[14], seguindo a tendência nacional dos prefeitos de direita de municipalização da segurança pública[15].


Se a Constituição Federal parece não bastar, se marcos jurídicos extremamente sofisticados de defesa e promoção de direitos não são o suficiente, se dos progressistas à direita e extrema-direita, a segurança pública parece seguir em uma única tendência em diferentes níveis de radicalização, é crucial que um novo marco de desenvolvimento epistemológico de projeto de sociedade seja construído no Brasil. Os pressupostos civilizatórios do colonialismo português e do modo de produção escravistas devem ser superados no conjunto do seu ethos e o próprio consenso de mundo consolidado pelo liberalismo durante as revoluções burguesas entre os séculos XVI e XVIII, demandam serem superados, como outrora foram pela Revolução Haitiana que radicalizou a ideia de direitos universais dos cidadãos estendo esse entendimento aos negros e como a própria experiência da República de Palmares, que anterior a estes processos históricos que havia culminado em uma sociedade radicalmente antiescravista, igualitarista e baseado em ampla participação em sua gestão. Aquilo que nos mecanismos existentes na atual formulação do Estado e da sociedade não podem ser superados, demandam a construção de um novo modelo.


*Vinicius Souza é historiador, cientista social, especialista em Direitos Humanos e Lutas Sociais. Editor e coordenador do Conselho Editorial da Clio Operária, estuda e escreve sobre os temas da filosofia política e história social brasileira. Tradutor e curador do livro “Há uma Revolução Mundial em andamento: discursos de Malcolm X” (LavraPalavra Editorial). 



[1] Alusão a introdução histórica da música “Capítulo 4, Versículo 2” do álbum “Sobrevivendo ao Inferno” do Racionais Mc’s, lançado em de 1997, que narra na voz de Primo Preto os dados gritantes das condições de vida e morte da população negra no Brasil.


[2] Dados retirados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf.


[3] “'Ainda Estou Aqui' bate 4 milhões de espectadores no Brasil”. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2025/01/31/ainda-estou-aqui-bate-4-milhoes-de-espectadores-no-brasil.ghtml.


[4] “Ação policial que matou 12 pessoas durante Carnaval é 100ª chacina em Salvador, diz Instituto Fogo Cruzado”. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/03/05/acao-policial-que-matou-12-pessoas-durante-carnaval-e-100a-chacina-em-salvador-diz-instituto-fogo-cruzado/.


[5] “Policiais brasileiros matam mais do que os de 15 países do G20 somados”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/12/18/dados-policia-letalidade-g20.htm.


[6] “Bahia registra 4 chacinas em 7 dias; ações da PM somam 75% dos casos”. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/bahia-registra-4-chacinas-em-7-dias-acoes-da-pm-somam-75-dos-casos/.


[7] “Panorama Censo 2022”. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/.


[8] Dados retirados do Atlas da Violência 2024. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/81f69453-baf0-4e6a-9f61-f4f6950b1317.


[9] “Guerra às drogas, guerra aos negros”. Disponível em: https://ponte.org/guerra-as-drogas-guerra-aos-negros/


[10] Dados retirados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos. Disponível em: https://observadh.mdh.gov.br/.


[11] FRANCO, M. UPP - A redução da favela em três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Niterói: UFF, 2024. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/2166/Marielle%20Franco.pdf?sequence=1.


[12] “Lula defende que UPPs sejam expandidas pelo Brasil”. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/lula-defende-que-upps-sejam-expandidas-pelo-brasil-2916256.


[13] “Nova secretária de Direitos Humanos da gestão Doria elogiou ação da PM em Pinheirinho”. Disponível em: https://ponte.org/eloisa-arruda-e-pinheirinho/.


[14] “Vamos garantir que a GCM tenha armamento adequado e câmeras corporais, diz Boulos”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/09/03/vamos-garantir-que-a-gcm-tenha-armamento-adequado-e-cameras-corporais-diz-boulos.htm.


[15] Segundo dados do Anuário da Segurança Pública de 2024, o orçamento investido na segurança pública pelos municípios cresceu em 13,2% em comparação ao investido pelos estados que cresceu 3,6% e pela União em 8,7%. 


Referências 


MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.


NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.


SILVA, V. S. F. Quilombagem um tratado político negro para uma alternativa de poder. São Paulo: UNIFESP, 2020. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/server/api/core/bitstreams/a14f6493-3419-4e6a-8f29-dcfb271b68e8/content






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