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Biopirataria: uma questão de soberania

Foto do escritor: Professor PoiatoProfessor Poiato

Por William Poiato


Imagine que uma fruta, usada por séculos por comunidades indígenas como alimento e remédio, se torna uma moda global. O açaí é vendido por bilhões de dólares em todo o mundo, mas o que aconteceu com as comunidades que preservaram esse conhecimento? Imagine isso como milhares de produtos. Quem paga o preço para que um produto chegue até nós?


Por trás da aparência refinada dessas mercadorias, esconde-se uma história de exploração e desigualdade. Esse fenômeno, conhecido como biopirataria, é muito mais do que uma questão ambiental ou econômica; ele escancara uma realidade de neocolonialismo em pleno século XXI. Para um país como o Brasil, detentor de uma das maiores biodiversidades do mundo, a biopirataria desafia não apenas a justiça ambiental, mas também o direito à soberania nacional.


Biopirataria: Uma Herança Colonial 


Desde o período colonial, a exploração de recursos naturais brasileiros tem sido uma constante. O pau-brasil, o guaraná, a mandioca e tantas outras riquezas foram retirados do território e transformados em mercadorias altamente lucrativas para potências europeias. Essa lógica não mudou: o que antes era saque explícito agora é camuflado por mecanismos de mercado, patentes e acordos desiguais de pesquisa e desenvolvimento.


O exemplo emblemático do açaí: consumido há séculos por povos indígenas e comunidades ribeirinhas tanto como alimento quanto como remédio. Hoje, essa fruta movimenta uma indústria bilionária em países como os Estados Unidos, com marcas que chegam a vender potes a US$10. Enquanto isso, as comunidades que cuidaram da floresta por gerações muitas vezes continuam sem acesso básico à infraestrutura, saúde e educação, mostrando como o sistema ignora sua contribuição. Casos como esse são reflexos de um sistema global que converte a biodiversidade em lucro, ignorando os direitos e saberes das comunidades tradicionais.


Entre a Retórica e a Realidade


O conceito de soberania nacional, tão central ao discurso político brasileiro, se revela frágil diante da biopirataria. Embora o Brasil tenha a Lei da Biodiversidade e o SisGen, que regula o acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados no Brasil, promovendo a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua exploração, enquanto o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado é a plataforma que centraliza o registro e monitoramento dessas atividades. Sua aplicação esbarra na falta de fiscalização e na complexidade burocrática, que dificultam o acesso das comunidades locais aos mecanismos de proteção e repartição de benefícios.


Essa situação reflete uma contradição profunda: como exercer soberania sobre a biodiversidade quando as regras internacionais de propriedade intelectual favorecem grandes corporações e potências estrangeiras? Segundo a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO), a minoria das patentes globais envolvendo biodiversidade são registradas por países do Sul Global, deixando a maior parte dos lucros concentrados em países desenvolvidos.


O capitalismo, como apontaram Marx e Engels, transforma tudo em mercadoria – da floresta amazônica aos saberes indígenas. Isso significa que os recursos naturais e os conhecimentos tradicionais são explorados para gerar lucro, muitas vezes sem considerar os impactos sobre as comunidades que os preservam. Ou seja, natureza e cultura viram meras mercadorias. Nesse contexto, a biopirataria não é apenas um crime ambiental; é uma manifestação do imperialismo contemporâneo.


A Luta pela Soberania Ambiental como Resistência Nacional


Se a biopirataria enfraquece a soberania nacional, combatê-la exige uma redefinição mais ampla e profunda do que entendemos por soberania. Não basta restringir o conceito a um controle territorial ou jurídico; é imprescindível incluir nele a preservação dos recursos naturais e culturais que definem a identidade e a autonomia de uma nação. Essa soberania renovada deve reconhecer e valorizar os saberes ancestrais como patrimônios vivos, protegendo-os não apenas contra a exploração externa, mas também contra o abandono interno. Garantir o protagonismo das comunidades locais na gestão e no uso sustentável desses recursos é não apenas uma questão de justiça, mas também de eficiência ecológica e econômica, já que essas comunidades são as verdadeiras guardiãs da biodiversidade.


Os movimentos sociais têm desempenhado um papel central nesse processo, enfrentando a biopirataria em múltiplas frentes. Organizações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) denunciam os abusos cometidos por grandes corporações e governos estrangeiros, enquanto pressionam por regulamentações mais eficazes. Contudo, a resistência não pode se limitar à denúncia. É fundamental ir além e construir alternativas concretas que assegurem a repartição justa dos benefícios e o respeito às comunidades tradicionais. Parcerias éticas entre ciência e povos locais, aliadas a uma educação ambiental que promova a conscientização popular, são caminhos essenciais para fortalecer a capacidade do Brasil de enfrentar a exploração predatória de seus recursos.


Esse esforço, no entanto, só será eficaz se acompanhado de um fortalecimento significativo das políticas públicas voltadas à proteção da biodiversidade e ao reconhecimento dos direitos das populações tradicionais. Ferramentas como as já citadas (SisGen e a Lei da Biodiversidade de 2015), embora representem avanços importantes, enfrentam obstáculos estruturais.


Por isso, o combate à biopirataria deve ser entendido não apenas como uma defesa do patrimônio ambiental, mas como uma batalha pela emancipação nacional, em que a soberania sobre os recursos naturais é um instrumento de resistência ao imperialismo econômico e de construção de uma identidade nacional independente e justa.


O que está em jogo?


O Brasil enfrenta um dilema histórico e urgente: assumir o papel de líder global na preservação ambiental ou permanecer como uma colônia moderna, onde as riquezas naturais e culturais são sistematicamente exploradas em benefício de interesses estrangeiros.


Essa escolha, longe de ser trivial, reflete as tensões estruturais entre o avanço da globalização neoliberal e o projeto de um país soberano e sustentável. Liderar essa luta não significa apenas proteger florestas ou espécies em extinção; trata-se de reafirmar a capacidade do Brasil de decidir sobre o uso de seus recursos e do futuro de seu território, em um contexto em que a biopirataria ameaça não apenas a biodiversidade, mas também a integridade cultural e social do país.


Resgatar o controle sobre nossos recursos naturais vai além de uma questão ambiental. É, acima de tudo, um debate sobre identidade, autonomia e justiça social. Sob uma perspectiva marxista, a exploração dos recursos naturais brasileiros está profundamente conectada às dinâmicas de expropriação capitalista, nas quais as comunidades tradicionais são despojadas de seus saberes e territórios em nome da acumulação de capital. Essas comunidades – indígenas, quilombolas e ribeirinhas – não são apenas vítimas dessa exploração; elas são as verdadeiras guardiãs da biodiversidade e os atores centrais na construção de um modelo alternativo de desenvolvimento. Reconhecer e valorizar seus saberes é uma maneira de romper com o ciclo de dependência e exploração que caracteriza a posição periférica do Brasil na economia global.


A luta contra a biopirataria é também uma luta pela emancipação política, social e econômica do Brasil. A soberania sobre os recursos naturais deve ser parte de um projeto de nação que combine justiça ambiental com justiça social, priorizando a distribuição equitativa dos benefícios gerados pela biodiversidade. Isso exige não apenas políticas públicas mais robustas e fiscalização eficiente, mas também uma mobilização coletiva que coloque a preservação ambiental e o respeito às comunidades tradicionais no centro da agenda nacional. Ser uma potência ambiental significa liderar pelo exemplo, demonstrando que é possível construir um modelo de desenvolvimento que respeite a natureza e os direitos humanos.


O Brasil entre a Resistência e a Rendição


A biopirataria não é apenas um problema ambiental; é um reflexo das contradições de um sistema global que coloca o lucro acima das pessoas e da natureza. Enfrentar essa realidade exige uma ação coletiva que una ciência, movimentos sociais e Estado em torno de um objetivo comum: proteger a biodiversidade e garantir que seus benefícios sejam distribuídos de forma justa.


Que legado queremos deixar como nação? A resposta está nas escolhas que fazemos hoje – e cada escolha é uma chance de transformar o Brasil em um país que respeita sua riqueza natural, seu povo e sua soberania.


Gostou do assunto? Veja mais neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=4jEuSVNdQcg


Referências


DA SILVA, Matheus Moreira; RIBEIRO, José Pedro Machado; FERREIRA, Rogério. Biopirataria e explorações ocorridas no Brasil: um relato-denúncia de práticas criminosas contra povos indígenas. REAMEC-Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, v. 9, n. 1, p. e21031-e21031, 2021.DE SOUZA, Laiane Pereira et al. Exploração ilegal de plantas medicinais: um olhar sobre a biopirataria. Inovações em Pesquisas Agrárias e Ambientais-Volume IV.2024


Vigevani, T. (2004). Notas sobre a questão nacional no Manifesto Comunista, em Marx e no marxismo. Lutas Sociais, (4), 33–54. https://doi.org/10.23925/ls.v0i4.18869


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